STM ignora denúncias de tortura e coação e condena liderança do PCB por reorganizar partido
Liderança do Partido Comunista Brasileiro (PCB), o carioca Fernando Pereira Christino foi condenado em 27 de março de 1979, pelo Superior Tribunal Militar (STM), a 2 anos e 5 meses de reclusão. A pena se deu mesmo com indicativos frágeis de sua suposta participação em um encontro de reorganização do partido no Paraná, e com suas próprias denúncias de que foi torturado e coagido a assumir o ato. O julgamento, porém, não foi unânime.
A condenação se dá na esteira da edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em que o PCB se resguarda da repressão que recai contra as organizações de esquerda, como a Ação Libertadora Nacional (ALN), dissidência dirigida por Carlos Marighella que, influenciado pela experiência cubana, havia decidido por outro caminho, o da guerrilha.
Com um voto divergente, o STM manteve a condenação encaminhada pelo Ministério Público Militar junto à 5ª CJM (Circunscrição Judiciária Militar) com base no artigo 43 da Lei de Segurança Nacional (Decreto-Lei 898/69), por tentativa de reorganizar o PCB no Paraná.
O voto vencido foi o do ministro general do Exército Rodrigo Octávio Jordão Ramos, que apontou as inconsistências do processo. Os argumentos trazidos pelo juiz iam ao encontro da argumentação da defesa, elaborada pelos advogados Antonio Modesto da Silveira e Aurelino Mader Gonçalves.
O julgamento da Apelação 41.703 foi realizado em 29 de novembro de 1978, no Paraná, tendo como presidente o ministro almirante de esquadra Hélio Ramos de Azevedo Leite, e como relator, o ministro dr. Gualter Godinho.
O processo
Fernando Pereira Christino foi acusado de participar de uma reunião do chamado Partidão— fundado em Niterói, entre 25 e 27 de março de 1922, sob o impacto da revolução socialista de outubro de 1917, na Rússia — e auxiliar na organização do partido na casa de Ubirajara Moreira, em 1975, onde estariam mais 64 pessoas, arroladas como corréus em seu processo.
A denúncia contra o réu e outros 64 acusados foi ofertada pelo Ministério Público Militar junto à Auditoria da 5ª CJM, de Curitiba. Por estar preso no Rio de Janeiro e impossibilitado de comparecer à audiência de inquirição das testemunhas, em 17 de agosto de 1976, Christino teve seu processo separado pela Comissão Permanente de Justiça.
A defesa tentou evitar essa separação, mas o provimento foi negado. Então, na oportunidade de seu interrogatório, Christino rechaçou as acusações, alegando que morava no Rio de Janeiro, de onde não havia se ausentado nos últimos 11 anos.
Disse ainda que “em maio de 1975, foi preso no Rio de Janeiro e submetido a torturas inomináveis; que transportado para a cidade de São Paulo foi interrogado, o mesmo ocorrendo nessa Capital (Curitiba), em fins de julho e princípios de agosto do mesmo ano; que em São Paulo como em Curitiba não sofreu torturas, sofrendo apenas ameaças, ficando ‘num estado de coação irresistível’”, como consta no texto da Apelação.
A defesa buscou frear o avanço desse processo, opondo exceção de litispendência, o que significa afirmar que o réu já respondia a acusação semelhante perante a 2ª Auditoria da Aeronáutica da 1ª CJM (Rio de Janeiro e Espírito Santo).
Pelo Código de Processo Penal Militar, havendo dois processos de mesmo litígio, os autos novos deveriam se juntar aos anteriores. No entanto, o Conselho Permanente de Justiça negou o provimento.
As testemunhas da acusação então foram ouvidas e o MPM formalizou a denúncia, com base no artigo 43 do DL 898/69, com pena mínima de dois anos, se não houvesse agravantes ou atenuantes. Mais uma vez a defesa arguiu a exceção de litispendência, o que novamente foi negado.
Em seu parecer, a procuradora Marly Gueiros Leite afirmou que, embora o texto legal se refira a um sujeito ativo, “as denúncias enredam uma sociedade criminosa, referindo-se aos 64 corréus. Seria exigir muito, convenhamos, outro tipo de prova, num caso como o de que tratamos nos autos”, finalizou a procuradora.
Inquérito e tortura
Os advogados Antonio Modesto da Silveira e Aurelino Mader Gonçalves entraram com recurso contra a pena de 2 anos e 5 meses estabelecida na primeira instância, alegando que a decisão se apoiou na fase indiciária. Ou, seja, apenas em seu depoimento na fase de inquérito.
Recorrendo ao disposto no artigo 309 do CPPM (Código de Processo Penal Militar) lembraram que a confissão é retratável e divisível: “O fato de alguém ter contestado alguma coisa não o impede de se desdizer total ou parcialmente. Claro e evidente que que o Juiz não está obrigado a aceitar a sua confissão instituindo mesmo a segunda parte do supracitado artigo que o livre convencimento se dará fundado no exame das provas em conjunto”.
Testemunhas da acusação
Entre os argumentos do STM para rechaçar o pedido estão os depoimentos de três funcionários da Secretaria da Segurança Pública do Estado do Paraná, que disseram ter acompanhado a assinatura de confissão dos mais de 60 detidos no encontro do PCB no Paraná em 1975.
Em síntese, disseram que os depoentes não foram presos, nem algemados ou coagidos, e que concordavam com o que estava escrito ou não falavam nada e assinavam. Um deles afirmou não saber se os acusados leram as declarações antes ou depois de assiná-las e também não soube informar se os textos já estavam prontos ou foram datilografados na hora. Outro não soube precisar a identificação dos depoentes.
O STM disse, porém, que “a retratação do apelante, em Juízo, não é suficiente, por si só, sem a indicação de provas” para elidir a confissão feita na fase extrajudicial, levando-se em conta o depoimento do próprio réu e de corréus.
A Corte Militar argumentou, ainda, que Christino disse, em depoimento, já ter sido condenado pelo mesmo tribunal a dois anos de prisão, com base na Lei 1.802/53, com pena prescrita em 1973, e que respondia a dois processos pelo artigo 43 da Lei de Segurança Nacional.
O réu também contou, segundo o STM, que em 1961 ficou cerca de 30 a 40 dias em Moscou (na então União Soviética), onde participou do 5º Congresso Sindical Mundial, financiado por uma Federação Sindical Mundial.
Dessa forma, Christino foi condenado à pena de reclusão de 2 anos e cinco meses. O processo foi encerrado em 27 de março de 1979.
Em 20 de novembro de 1979, Fernando Pereira Christino teve sua pena extinta. O anúncio foi feito pelo Juiz Auditor da Auditoria da 5ª CJM. A razão dessa mudança de rumos era a Lei nº 6.683/79, a Lei da Anistia.
Em seu voto vencido, o ministro general do Exército Rodrigo Octávio Jordão Ramos afirmou:
“Dei provimento ao apelo de Fernando Pereira Christino, para absolvê-lo do crime previsto no artigo 43 do DL 898/69, com fundamento na letra e do artigo 439 do CPPM, já que a prova é insuficiente para justificar uma condenação, pois se baseia na confissão feita pelo apelante, ainda na fase policial (fls 24/37), mas retratada em Juízo pelo acusado em seu interrogatório (fls 109/113), onde alegou ter sofrido torturas e sevícias de toda a ordem, para fazer tal confissão.
Do restante da prova trazida aos Autos, nada incrimina o Recorrente, e os depoimentos dos policiais, que teriam assistido a confissão do mesmo, não possuem força para ensejar uma decisão condenatória, pois os Agentes da Polícia Osvaldo Gomes Ferreira (fls 325/328) e Eloi Deodoro de Lima (fls não sabem precisar nem o nome ou a figura do recorrente, afirmando ambos terem vaga lembrança de sua presença, durante o interrogatório policial.
É o meu voto.”
Engajamento no movimento estudantil
Filho de imigrantes portugueses nascido no Rio de Janeiro em 11 de julho de 1924, Fernando Pereira Christino engajou-se na política ainda no colégio, no ensino fundamental, juntando-se a colegas que tiveram seus pais presos após participação na chamada Intentona Comunista, ocorrida entre 23 e 27 de novembro de 1935, e liderada por Luís Carlos Prestes, cuja articulação era feita pela Aliança Nacional Libertadora (ANL), independentemente do PCB.
O Partidão via o movimento com reservas e só aderiu em junho de 1935, quando Prestes, aclamado presidente de honra da ANL, lançou o documento “Por um governo popular nacional revolucionário”. Um mês depois, a aliança foi declarada ilegal e colocada na clandestinidade por Getúlio Vargas.
Em 1942, Christino aliou-se a outro grupo de jovens no Rio que lutava contra o integralismo e incentivava o envio de Pracinhas à Segunda Guerra para combater o nazi-fascismo.
Sua entrada no Partido Comunista Brasileiro se deu em 1944, época em que trabalhava em uma tecelagem. Nas fábricas por onde passou, ajudou a defender os direitos dos trabalhadores, a ponto de ser demitido de uma delas após participar de greve. Desempregado, foi acolhido pelo Partidão, em 1952, como funcionário.
Desacertos entre as direções estadual e municipal em Santa Catarina levaram Carlos Marighella e Diógenes de Arruda Câmara a enviar Christino a Florianópolis, como interventor da direção estadual.
Na capital catarinense, ele comprou a livraria Anita Garibaldi, muito conhecida na cidade como um ponto de encontro da esquerda, mas principalmente por causa de Salim Miguel, escritor de renome e um dos proprietários, ao lado de Armando Carreirão. O militante também organizou greves de trabalhadores de minas de carvão em Criciúma e foi redator do jornal Folha Catarinense, do PCB.
Fogueira de livros
Na véspera do Golpe Militar de 1964, Christino, então conhecido pelo pseudônimo “Cláudio”, foi retirado de cena às pressas, pois o PCB temia que, diante da tensão crescente, o dirigente se tornasse alvo dos militares. Assim, “Cláudio” primeiramente se escondeu na casa do desembargador José do Patrocínio Gallotti.
Enquanto preparava sua fuga da cidade, um grupo invadiu a livraria Anita Garibaldi e começou a retirar “todos os livros de literatura marxista”, segundo o jornal “A Gazeta”, solidário ao Golpe Militar. E então, “puseram fogo em plena via pública sob os aplausos da multidão que acorreu ao local”.
A livraria estava fechada desde 1º de abril e foi atacada dois dias depois. Um dia antes do ataque, em 2 de abril, o ex-proprietário Salim Miguel havia sido preso enquanto tomava um café no Ponto Chic. Foi levado ao quartel do Comando Geral da Polícia Militar, onde ficou preso durante 48 dias junto a um grupo de 55 pessoas tidas como subversivas. Salim Miguel era um simpatizante do PCB, no qual sua mulher, Eglê Malheiros, militava.
Enquanto isso, “Cláudio” conseguiu fugir para Curitiba, mas teve que deixar para trás sua mulher e seus sete filhos. Eles só puderam se reencontrar tempos depois, no Rio de Janeiro.
Torturas
Em 1967, Christino se tornou secretário do Comitê Central do Partido. Em maio de 1975 foi preso no Rio de Janeiro e levado ao DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna) do IIº Exército, em São Paulo (SP), onde sofreu torturas inomináveis.
Christino, por sua posição dentro do Partido, foi alvo proeminente da repressão. O governo de Ernesto Geisel intensificou a caça aos integrantes do Comitê Central, levando à tortura seguida de morte de ao menos dez pessoas, entre elas David Capristrano, que por um tempo foi tido como desaparecido.
Ao ser entrevistado em 2001, aos 77 anos, Christino afirmou ainda ter sequelas da tortura, precisou implantar próteses na bacia que tornaram impossível o movimento de se abaixar para calçar meias ou sapatos.