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“Listamos cerca de 200 embarcações-prisão na ditadura militar”, revela historiadora

21 de dezembro de 2023

A historiadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Vera Lucia Vieira passou as últimas décadas dedicada ao estudo da repressão do Estado sobre os movimentos sindicais e políticos no Brasil. Entre as pesquisas desenvolvidas por ela e seus orientandos, encontra-se a do navio Raul Soares, que serviu como prisão flutuante, nos primeiros meses da ditadura militar de 1964, no porto de Santos. Leia abaixo a entrevista da historiadora ao Voz Humana.

A senhora tem como um dos focos de seus estudos as violações aos direitos humanos perpetradas pelo Estado. Quais as peculiaridades do navio Raul Soares?

O Raul Soares esteve diretamente vinculado à Companhia Docas de Santos. A parceria Estado-iniciativa privada na repressão aos trabalhadores e à sociedade civil ficou muito clara.

Quais os critérios para o aprisionamento dessas pessoas?

O navio não abrigava apenas trabalhadores das Docas, mas médicos, advogados, professores, cientistas, presos políticos que nem sempre eram interrogados. Era um depósito de presos. Embora não houvesse justificativa para a prisão, de certo modo havia o critério de que eram pessoas de maior liderança, militantes de partidos políticos, sindicatos… Alguns não tinham participação política, apenas eram pessoas de relevância em sua área, que o Centro de Informações da Marinha (Cenimar) e o Serviço Nacional de Informação (SNI) achavam politicamente perigosos.

E havia a participação da iniciativa privada junto aos órgãos repressivos?

Sim. Encontramos listas de trabalhadores considerados suspeitos, elaboradas pela Companhia Docas de Santos. Eles eram associados a códigos, que eram encaminhadas para o Dops de Santos, e daí para o SNI. Alguns desses trabalhadores, particularmente líderes sindicais, foram para o navio Raul Soares. Na Docas, uma unidade de Recursos Humanos foi, gradualmente, sendo transformada em um órgão repressivo denominado Divisão de Vigilância e Informações (DVI), que passava informações dos trabalhadores aos órgãos de repressão, além de vigiá-los e reprimi-los.

Os casos de desrespeito aos direitos humanos no Raul Soares eram notórios e remontavam a outras épocas históricas?

O aprisionamento, em si, já era uma tortura, dadas as condições de sucateamento do navio. Fundeado no porto de Santos, já era uma sucata quando foi rebocado para lá. Há relatos de pessoas ali aprisionadas que ficaram tuberculosas, sem atendimento médico, péssimas condições de alimentação e de higiene.

É de conhecimento comum que a tortura é uma prática recorrente em nosso sistema carcerário, seja quando estamos sob os preceitos constitucionais de cunho democrático, seja nas ditaduras, quando vigoram as regras do estado de exceção. Assim, não é de se espantar que um aprofundamento das pesquisas aos nossos acervos históricos evidencie que, em outros tempos, outros navios foram utilizados para os mesmos fins como, por exemplo, no governo de Getúlio Vargas.

Há registros de outros navios utilizados como cárceres-flutuantes na costa brasileira?

Na década de 1960, essa prática se estendeu a navios como o Princesa Leopoldina, o Ary Parreira e o Bacui, que serviram como local de triagem dos presos que iriam para o Princesa Leopoldina e o Custódio Melo, no Rio de Janeiro. Havia ainda o Canopus, no Rio Grande do Sul e o Guaporé, no Mato Grosso.

Listamos cerca de 200 embarcações-prisão na ditadura militar de 1964 nas costas do Brasil. Os estudos desses navios e seus impactos para a sociedade precisam ser aprofundados.

A história da Marinha – assim como a do Exército — se confunde com episódios de grande violência, castigos, torturas e um código disciplinar duríssimo, principalmente contra marinheiros. O caso da Revolta da Chibata, em 1910, que teve a liderança do marinheiro amotinado João Cândido Felisberto, o chamado “Almirante Negro”, foi emblemático. Mas os estudos sobre a quebra dos direitos humanos na Marinha são menos frequentes se comparados aos de outras Armas. Por quê?

Temos muitas evidências e estudos sobre a repressão feita pelo Exército e pela Aeronáutica, mas pela Marinha há documentos, mas poucos estudos.  Há acesso às informações sobre a Marinha.  Toda a documentação – mais de 20 mil documentos disponíveis e organizados — está no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, disponível, organizado e em diversos acervos da própria Marinha.

Creio, porém, que a historiografia ficou restrita às questões relativas aos motivos que levaram à ditadura, à identidade de quem capitaneou de fato o movimento, se civil ou militar. Falou-se até em “ditabranda”, porque o número de pessoas reprimidas teria sido menor se comparado ao da Argentina, por exemplo, assim como o grau de violência impingido à população. E tem gente que acha que foi assim.

Então, houve certa omissão da historiografia do ponto de vista do estudo de todas as classes sociais vitimadas pela repressão do Estado e das empresas. Os presos políticos ficaram restritos àquele universo das pessoas de classe média, mais intelectualizadas, ligadas às organizações políticas e que a imprensa noticiava. Não se foi aos arquivos. Toda a repressão aos trabalhadores urbanos e rurais, estes heróis que se mantêm anônimos, não tem recebido a devida atenção dos pesquisadores e, muito menos da mídia.

A parte da Marinha, um de meus orientandos, o Arthur Almeida, que também participou desta reportagem, ainda está pesquisando…

Mas, com certeza, os produtos destas novas pesquisas lideradas pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF/Unifesp) contribuem para dar maior visibilidade à real dimensão da violência vigente durante a ditadura. Pois esta pesquisa sobre os navios-prisões deriva, também, do conjunto das 14 pesquisas coordenadas pelo CAAF que analisa a colaboração de empresas com tal estado de exceção. Empresas tais como a Embraer, a Fiat, a Folha de S. Paulo, a Paranapanema, Aracruz, Jotapar, Paranapanema, Petrobrás, Itaipú entre outras. Cabe à Academia seu papel de continuar estudando as ações de repressão aos movimentos sociais e — dentro desse universo — a história da Marinha na repressão aos movimentos sociais. Assim como cabe à imprensa divulgar tais resultados que auxiliam na popularização do conhecimento sobre essa história, para que nunca mais se repita.

* Vera Lucia Vieira  é coordenadora do Centro de Estudos de História da América Latina (CEHAL) da PUC-SP, vinculado ao Programa de Pós-graduação em História do Departamento de História da universidade. Integra ainda o projeto “A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a Ditadura”, realizado por 55 pesquisadores e conduzido pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).



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