Modesto da Silveira
Uma luta desigual
Dedico este texto a Dom Hélder Câmara, como símbolo de uma longa luta que vivenciamos juntos, tentando salvar muitas vidas. Sou de origem humilde, do interior de Minas, de uma família de lavradores sem terra. Menino de pés cortados de enxada. Mais tarde, dos 10 aos 17 anos, fiquei com o corpo todo marcado por estilhaços de ferramentas de aço das pedreiras onde trabalhei. Mas tive a sorte de ter uma mãe extraordinária, que soube cultivar sonhos, esperanças e certezas, no meu coração, como no de meus irmãos.
Eu me formei relativamente tarde, porque menino pobre tem de trabalhar durante o dia. Só pude estudar à noite. Naquela época, em Uberlândia, onde morava, o 2º grau da escola pública gratuita só existia no período diurno. Então, apenas os meninos ricos podiam fazer.
Um dia, foi criada uma bolsa para o ginásio, em Uberlândia, e consegui tirar o primeiro lugar. A partir daí, consegui manter esse 1º lugar até o fim. Dessa forma, acabei convidado para vir ao Rio de Janeiro, trabalhar e estudar, até que meu sonho de fazer Direito se concretizou. Ingressei na melhor faculdade de direito que havia aqui, na Universidade do Distrito Federal, que hoje é a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, onde estudei de 1958 a 1962.
Nessa época, já estavam aparecendo no horizonte sinais de que alguma coisa aconteceria na América Latina e, sobretudo, no Brasil, onde havia o governo humanista de João Goulart. Interpretado como socialista, incomodava os Estados Unidos, que se articularam com a direita brasileira, a fim de derrubá-lo. Hoje sabemos muito de toda a trama.
Veio o 1º de abril de 1964 como se fosse um filme do qual eu era figurante. Vi, em plena rua, a transformação de um governo democraticamente eleito, num caos de violência e autoritarismo, num golpe em que ninguém mais poderia se sentir salvo. Eu estava no centro do Rio, na Cinelândia, em frente ao Clube Militar, dos militares que estavam golpeando as instituições democráticas.
Havia um comício marcado para esse 1º de Abril pelas organizações sindicais, em apoio ao governo. Cheguei lá e o único líder que encontrei foi o intelectual Roland Corbisier. Estávamos pouco informados e estranhamos a ausência das lideranças trabalhistas, estudantis e intelectuais. Apenas o povo estava na praça. Só depois soubemos que muitos haviam sido presos na véspera daquele mesmo dia. Enquanto conversávamos ali, milhares de pessoas enchendo a praça, começaram a chegar os tanques pela avenida Rio Branco, um tanque atrás do outro, e também soldados com seus fuzis e metralhadoras. E o povo começou a aplaudir os tanques, pensando ser do Exército subordinado ao Presidente da República, que estava lá em apoio às instituições, fiel à lei e ao seu juramento.
De repente, os canhões e metralhadoras se viraram, mirando a cara das pessoas. O povo parou de aplaudir e ficou em silêncio, atônito, por alguns instantes. Em seguida, percebendo a traição, começou a vaiar o Exército. Ao mesmo tempo em que isso acontecia, iam saindo de trás dos tanques soldados armados, parecendo nazistas. Durante essa vaia, eu vi pessoas em trajes civis dando tiros contra o povo. Dois homens caíram perto de mim. Vi dois desses atiradores cruzarem a Rio Branco e os grandes portões de ferro do Clube Militar se abrirem, para dar entrada a eles. A multidão correu em várias direções; a gritaria e a vaia foi se espraiando pelas redondezas da Cinelândia. Naquele momento, eu me senti um membro da história e mergulhei nela.
Quando cruzei a praça e voltei para meu escritório, ali mesmo na Cinelândia, encontrei homens e mulheres pedindo socorro, para descobrir o paradeiro de um filho, marido ou irmão, que havia desaparecido ou tinha sido arrastado de casa. E eu, advogado recém-formado, mas muito atuante, comecei naquele mesmo momento, no primeiro dia do golpe, a atuar em defesa de pessoas sequestradas e já maltratadas.
Conversei com todos, depois corri para o DOPS, prisão política oficial, porque os desaparecidos eram lideranças políticas. Fui para o DOPS a pé, quase correndo. Quando cheguei lá, vi o aparato de militares e policiais civis espalhados por toda parte. Fui com cautela e resolvi entrar no bar Don Juan, bem em frente à porta do DOPS, para observar. Pedi um café e, enquanto o tomava, percebi que no próprio botequim havia policiais agitados, além dos que estavam na rua, cruzando para todos os lados. Vi quando o Dr. Sobral chegou e tentou entrar, mas foi impedido pelos policiais que guardavam o local. Se o Dr. Sobral Pinto, com toda sua glória, advogado dos grandes, não conseguiu sequer entrar, concluí que eu, um jovem desconhecido e pouco experiente, também não entraria. Então, cruzei a rua e fui dividir com ele a minha perplexidade diante dos fatos. Estávamos indignados. Eu disse que iria para o escritório fazer habeas corpus, havia ainda o habeas corpus naquele momento. “Vou dar entrada hoje mesmo, amanhã, na pior das hipóteses, porque não sei quantos vou ter de fazer.” E Dr. Sobral disse: “meu filho, faça isso, é o que vou fazer também”. E fui preparar habeas corpus para os primeiros prisioneiros, cujos interessados foram me convertendo em participante da história.
Daí em diante, submergi sem nunca mais poder emergir desse mergulho, até hoje, porque embora a ditadura tenha terminado em 1985, suas sequelas continuam.
Defendi muitas centenas de perseguidos políticos, sem falar em honorários, claro. Tive clientes, não sei dizer quantas, que foram covardemente estupradas por filas de torturadores bestiais; tive clientes, homens e mulheres, espancados e torturados de forma selvagem, que tiveram suas vidas destruídas.
Um desses casos, que me marcou bastante, foi o do sargento Joao Lucas Alves, em 1970, se não me falha a memória. Ele e outros militares estavam se organizando para uma reação contra o golpe de 64, mas foram quase todos presos. Fui procurado pela família e me tornei advogado dele. Levaram o João Lucas para o SOPS, que era o DOPS federal, e para o DOI-CODI, no Exército. Ele foi muito torturado, mas não falou nada do que queriam ouvir. Sem confissão, a repressão não podia fazer muita coisa, a prisão já havia sido legalizada, inclusive uma audiência na Auditoria já estava marcada. Legalizar a prisão era o que eu tentava fazer com toda urgência, para o prisioneiro passar à responsabilidade da Justiça, embora “de exceção”.
Já estava nessa etapa, mas o delegado Joaquim Sena, da Polícia Federal, o SOPS aqui do Rio, não se conformou por aquele homem, que ele reputava importante, não ter revelado nada e esquematizou seu sequestro. Levaram o João Lucas à delegacia de Roubos e Furtos de Belo Horizonte, onde eles tinham um esquema de assassinato. Fiquei sabendo por um telefonema anônimo da própria polícia. Até no DOICODI e dentro das polícias, havia gente de bem, que não concordava com o que estava acontecendo. Eu consegui confirmar a informação e, na mesma hora, chamei a mãe e a irmã do João Lucas e disse para irem imediatamente a Belo Horizonte para mostrar presença, porque eu só conseguiria ir no dia seguinte, depois de uma audiência da qual não podia faltar.
Elas foram, mas quando chegaram lá, ele já havia sido morto na tortura. Pior que o Herzog e antes do Herzog, armaram para ele a farsa do suicídio. Ele era um homem alto, forte e teria se enforcado numa travessa de sela mais baixa do que ele.
Outra história que me marcou muito foi a do Davi Capistrano, que havia sido deputado em Pernambuco. Tive muito contato com ele, porque era um dirigente do PCB e me procurava para defender perseguidos políticos. Uma vez, quando a própria filha foi perseguida, ele me pediu para ser advogado dela e do genro, e disse que se ele próprio precisasse, queria que eu fosse seu advogado também. Defendi a filha, o genro, orientei parte da família dele, que me procurava, até que, mais tarde, o próprio Davi foi sequestrado. Tomei conhecimento e comecei a procurá-lo, mas ele não foi localizado, desapareceu. A gente tinha meios de procurar, defendi pessoas de Belém a Porto Alegre e , sempre que alguém desaparecia, espalhava nas prisões o nome, codinome, tipo físico, eventualmente uma foto, e pedia que nos dessem qualquer notícia, porque o desaparecido corria risco de ser assassinado; era preciso descobrir onde estava e legalizar a prisão.
O Davi desapareceu, toda a direção do PCB foi sequestrada numa etapa curta e, depois, vimos que todos eles foram torturados e assassinados. Mas no caso do Davi foi mais chocante, porque quando viemos a descobrir a Casa da Morte de Petrópolis, tomamos conhecimento de que ele teria sido assassinado lá. Agora, um dos assassinos da época, Claudio Guerra, escreveu um livro sobre isso, chamado “Memórias de uma Guerra Suja,” no qual tenta limpar sua alma, dizendo que não gostava de torturar, gostava de matar direto, como matava. A história contada por ele e por outras fontes, inclusive pela Inês Etienne, a brilhante descobridora da Casa da Morte e, que eu saiba, a única que escapou viva de lá, é que todos os demais foram assassinados. Está descrito no livro que o Davi não só foi morto na tortura, mas foi picado em pedações e pendurado em ganchos de açougue no varal da Casa da Morte, para aterrorizar os que passassem por lá, para que assinassem qualquer documento, confessando coisas ou acusando terceiros, com ou sem culpa.
Esse é um caso realmente inédito de perversidade. Segundo dizem, a cabeça íntegra do Davi Capistrano também foi pendurada, para que reconhecessem a figura dele. Até para mim, que vi tanta coisa, que também fui sequestrado e sei do que eles eram capazes, até para mim fica difícil aceitar uma brutalidade dessa ordem. E, lamentavelmente, nenhum desses sádicos assassinos sequer foi julgado, muitos, ainda vivos, andam exibindo pelas ruas, praias, igrejas e tribunais do nosso país, como se fossem homens de bem, suas patentes e, frequentemente, a “Medalha do Pacificador”.
Penso que Hitler e seus sequazes morreriam de inveja dos torturadores brasileiros e de seus professores americanos, como Dan Mitrione, se pudessem tê-los conhecido.
Apesar de tudo, estou certo de que novos sóis brilharão no futuro dos povos do Brasil e do mundo.
Antonio Modesto da Silveira é Advogado dos Direitos Humanos há meio século
Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014
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