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STM absolve pedagoga, jornalista e secretária presos e torturados após acusação de produzir livro didático subversivo

1 de novembro de 2023

A ditadura imposta ao Brasil pelo golpe civil-militar de 1964 fez um número incontável de vítimas. Entre elas, professores envolvidos com projetos de educação popular. Em São Paulo, Maria Nilde Mascellani, pedagoga católica da estirpe do mestre Paulo Freire, foi perseguida e presa pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) sob a acusação de difamar o Estado brasileiro. Compartilharam com ela o mesmo drama seus colaboradores, o jornalista Dermi Azevedo e sua mulher, a secretária Darcy Andozia Azevedo.

Até serem julgados pelo Superior Tribunal Militar (STM), em 11 de outubro de 1977, Maria Nilde, Dermi e Darcy Azevedo passaram por humilhações e sessões de tortura física e psicológica. O casal passou ainda pelo trauma de ver seu filho menor torturado na cadeia. Finalmente, todos foram absolvidos por falta de provas. As marcas da opressão, porém, permaneceram.

Maria Nilde, Dermi e Darcy foram submetidos a denúncia judicial oferecida à 2ª Auditoria de São Paulo. Pesaram contra Maria Nilde, Dermi e Darcy Azevedo a acusação de infringir o Decreto-Lei 898/69 (DL 898/69) — divulgar, por qualquer meio de comunicação social, notícia falsa, tendenciosa ou fato verdadeiro truncado ou deturpado, de modo a indispor ou tentar indispor o povo com as autoridades constituídas.

Maria Nilde era o alvo central da repressão policial, que atribuía crime ao conteúdo impresso nas páginas de “Educação Moral e Cívica e Escalada Fascista no Brasil”, livro coordenado por ela e que tecia críticas ao ensino de Educação Moral e Cívica no currículo oficial das escolas brasileiras. De acordo com os órgãos de segurança, tratava-se de “propaganda subversiva” a ser disseminada em outros países e útil à Ação Popular (AP) — organização fundada em 1963, a partir da ação de quadros da Juventude Universitária Católica (JUC).

A trajetória da pedagoga em defesa da educação popular vinha dos anos 1950. Atuante em diferentes escolas públicas do estado de São Paulo, ela foi uma das idealizadoras das Classes Experimentais, estruturadas para fortalecer a autonomia dos alunos e seu envolvimento na gestão escolar.

Durante o mandato do secretário de Educação de São Paulo, Luciano Carvalho, em 1959, a educadora assumiu a coordenação do Serviço de Ensino Vocacional (SEV), cujo objetivo era disseminar e ampliar a experiência das classes por meio dos Ginásios Vocacionais (GV). Embora fosse alvo de setores reacionários da política paulista, Maria Nilde nunca abriu mão de sua proposta libertária de educação, em defesa de uma escola pública autônoma.

Fruto dessa iniciativa, os GV ofereciam, nos anos 1960, ensino em período integral para o então 1° ciclo secundário de quatro anos. Seis unidades, criadas em 1962, cumpriram essa tarefa em São Paulo, Americana e Batatais. Entre 1963 e 1968, surgiram outros GVs em Rio Claro, Barretos e São Caetano do Sul.

O sopro de inovação dos Ginásios Vocacionais estava na estratégia de integração curricular, como estudos do meio, projetos de intervenção na comunidade e planejamento curricular através de pesquisas junto aos estudantes. Todos eram instalados a partir de sondagens das características culturais e socioeconômicas de cada localidade. Os militares, porém, torciam o nariz para tais avanços, que passaram a ter seus dias contados.

Vitorioso o golpe de 1964, os ideólogos do regime voltaram seus olhos às atividades de Maria Nilde e do Ensino Vocacional. Em 1969, ela foi denunciada ao Ministério da Justiça como “uma das apoiadoras das práticas educacionais de cunho socialista” — em pleno clima de Guerra Fria, um sinônimo de apoio ideológico à então União Soviética. A educadora passa a ser indiciada como suspeita de conduta e elaboração de “pedagogia subversiva” nos GVs de São Paulo. Desde então, e até 1973, responderia a 67 inquéritos e seria detida para interrogatório em várias ocasiões.

Finalmente, com base no Ato Institucional número 5 (AI-5), promulgado um ano antes, Maria Nilde é punida com aposentadoria compulsória da rede pública de ensino. Determinada, a professora funda a assessoria Renov — Relações Educacionais e Industriais Ltda, em Campo Belo, na capital paulista. Paralelamente, segue na produção de “Educação Moral e Cívica e Escalada Fascista no Brasil”, cujo conteúdo apresenta uma análise crítica da Educação Moral e Cívica (EMC). Em suas páginas, são colocadas a nu a disciplina e a moral autoritária imposta pelo regime militar em todos os currículos escolares do Brasil.

Como forma de levar a cabo a elaboração da obra, a professora escolhe entre seus colaboradores o jornalista gaúcho radicado em São Paulo, Dermi Azevedo. Dermi chegou à Renov carregando em sua bagagem, além de brilhantismo profissional, a experiência política da militância vivida no efervescente movimento estudantil de 1968, ano no qual participou do 30º Congresso da UNE e foi batizado com sua primeira prisão. Completaria a equipe da assessoria a secretária e também educadora Darcy Azevedo.

A caminho do DOPS

Os trabalhos avançam em paralelo ao cerco contra a educadora. Fruto das campanas promovidas pela polícia, em 18 de janeiro de 1974 Maria Nilde acaba presa no escritório da Renov. De lá, ela é literalmente arrastada ao DOPS pelos policias.

Sem que ela soubesse, um dia antes, no mesmo bairro, Dermi fora preso em sua casa. Alertada por amigos, Darcy, ausente da residência quando da prisão do marido, busca ajuda com o arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, com quem o casal mantém relacionamento direto.

No momento da prisão, Carlos Alexandre, de 1 ano e 8 meses, filho do casal, permanece em casa aos cuidados de Joana, sua babá. No mesmo dia em que busca encontrar o marido, Darcy é localizada pela polícia e presa no escritório de Maria Nilde. Nesse meio tempo, os policiais voltam à residência da secretária e sequestram babá e criança.

Durante a operação na casa de Dermi e Darcy, a repressão encontra o que viria a ser a principal prova contra Maria Nilde e seus assessores: cópias do livro “subversivo”. Segundo os agentes da repressão, a obra seria enviada ao exterior como denúncia contra a ditadura.

A ação policial é recheada de ilegalidades desde sua origem. Embora tenha ocorrido em 18 de janeiro, sem mandado judicial, e à base de agressões físicas e morais, a comunicação ao Juiz Auditor é realizada apenas no dia 4 de fevereiro, quando da abertura formal do inquérito.
Nos autos, consta que a obra coordenada pela educadora possuía “conteúdo nitidamente prejudicial aos interesses nacionais, eivado de ofensas assacadas contra o Governo Brasileiro, as autoridades constituídas e as instituições nacionais, foram enviados, para divulgação, ao Conselho Mundial das igrejas, em Genebra — Suíça (dois exemplares)”.

O processo também cita trechos do livro. Entre eles:

“[…] são quase dez anos de governo oligárquico-militar no Brasil e o balanço da cultura nacional mostra um quadro de extrema gravidade: ao lado de uma censura brutal a qualquer manifestação engajada no pensar e no escrever, assiste-se, cada vez mais, a uma campanha de nazificação dos brasileiros”.

Ainda que para o STM os acusados pretendessem “atentar contra as autoridades constituídas, através da feitura daquele trabalho”, não havia nos autos qualquer prova que os enquadrasse no DL 898/69 “[…], fato que levou à absolvição dos réus pelo TJM: ‘Não há razão jurídica para que se reforme a sentença que, unanimemente, absolveu os acusados […]’”.

Em sua declaração de voto, o ministro general de Exército Rodrigo Octávio Jordão Ramos, admite ainda não lhe terem “passado desapercebidos fatos da maior gravidade, denunciados pelos acusados [Maria Nilde e Dermi Azevedo], em seus interrogatórios Judiciais nos seguintes trechos”.

Durante o interrogatório junto ao ministro, a educadora denunciara as violências sofridas por ela na prisão. […]

“A interrogada ficou quatro dias numa cela solitária recebendo como alimentação um copo de água, e sofrendo alternadamente o efeito da total escuridão e de forte luminosidade; que findo esse tratamento, veio a ser interrogada; que em consequência, só reconhece valos às declarações que ora presta ao Conselho, deixando de reconhecer qualquer valor ao que conste como declaração policial; que deseja acrescentar que o Delegado SERGIO PARANHOS FLEURY fez todo tipo de ameaças de tortura física no primeiro dia que a interrogada entrou no DOPS; que a int. ficou incomunicável 34 dias; que diariamente faziam programação de torturas verbalmente diante da interroganda, para abater-lhe o psiquismo…”

As declarações de Dermi ao ministro vão no mesmo sentido. “[…] Que foi preso no dia 17 de janeiro de 1974 e levado ao DOPS onde sofreu sevícias consistentes em choques elétricos, tapas e ameaças ignominiosas, fato que o alterou bastante psiquicamente, de modo que só reconhece valor as declarações que ora presta ao Conselho…”

Em 6 de junho de 1977, por unanimidade de votos, todos os réus são absolvidos por inexistirem provas de que o “Educação Moral e Cívica e Escalada Fascista no Brasil” tivesse sido efetivamente divulgado.

Em liberdade, Maria Nilde continua dedicando-se a projetos de educação popular no estado de São Paulo e em outros estados. Em 1984, durante a gestão do governador Franco Montoro, recobra o direito de voltar ao magistério público. Nos anos seguintes, como docente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), inicia a orientação curricular e pedagógica do Programa Integrar CNM/CUT (Confederação Nacional dos Metalúrgicos/Central Única dos Trabalhadores).

Dona de raro vigor intelectual, em 9 de dezembro de 1999 defende, na Faculdade de Educação da USP, sua tese de doutorado “Uma Pedagogia para o Trabalhador: o Ensino Vocacional como base para uma proposta pedagógica de capacitação profissional de trabalhadores desempregados (Programa Integrar CNM/CUT)”. Nela, trata do Ensino Vocacional e da Pedagogia do Programa Inte­grar, da Confederação Nacional dos Metalúrgicos. Como se tivesse finalmente cumprido sua missão, dez dias após a defesa de tese, aos 68 anos, Maria Nilde morre de infarto, em São Paulo.

Infância roubada

Dermi e Darcy, por sua vez, conseguem retomar a vida e têm outros três filhos. Em 1982, Dermi funda o Movimento Nacional dos Direitos Humanos. Também esteve à frente da Cooperativa dos Jornalistas, da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Natal e da coordenação do Curso de Comunicação Social da Universidade Metodista de Piracicaba.

O martírio do casal e de seu primogênito foi tema do documentário “Atordoado, eu permaneço atento”, dirigido por Lucas H. Rossi dos Santos e Henrique Amud e premiado em 2020 no 8º Curta Brasília – Festival Internacional de Curta-Metragem.

Mas a história das arbitrariedades cometidas no DOPS teria ainda seu capítulo mais tenebroso revelado anos depois. Em 2013, durante o seminário “Verdade e Infância Roubada”, realizado pela Comissão da Verdade Rubens Paiva, presidida pelo então parlamentar do PT Adriano Diogo, Darcy revelou detalhes sobre os maus-tratos aplicados pelos policiais ao bebê.

Segundo ela, ao invadirem sua casa, à sua procura, os agentes passaram a assediar Joana e Cacá, como era chamado Carlos Alexandre. “A menina [babá] me contou que [os policiais] que estavam em casa falaram a meu filho: ‘Cadê a sua mãe? Sua mãe não está aqui nem pra te alimentar’. O menino começou a chorar de fome. Então os policiais deram um tapa muito forte que cortou a boca da criança”, relatou Darcy.
A secretária, que só encontraria o filho horas depois, no DOPS, afirmou à Comissão ter sido levada a uma sala de tortura logo após a prisão. Lá, ao lado de uma máquina de choques elétricos, passou a ser interrogada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury. Como forma de pressioná-la psicologicamente, um policial da equipe perguntou a Fleury o que deveriam fazer com o bebê.

“Por conta disso, não sofri tortura física naquela noite. Permitiram-me levar o menino para a casa dos meus pais em São Bernardo. Fomos durante a madrugada. Fui alertada pelo Fleury de que, se eu abrisse a boca para gritar ou falar qualquer coisa quando chegasse lá, meu filho voltaria comigo e não iriam levá-lo outra vez a lugar nenhum. Meu filho acabou me salvando da tortura”, disse.

Segundo Dermi, a criança também foi torturada. Outros presos relataram que Cacá teria levado choques elétricos aplicados por agentes da equipe do delegado Josecyr Cuoco, subordinado a Fleury. Uma tática macabra: torturando a criança, seus algozes pretendiam arrancar dos pais confissões de envolvimento em atividades subversivas e detalhes sobre seus companheiros.

Se após a libertação Darcy e Dermi conseguiram juntar os cacos e, na medida do possível, retomar a rotina da vida, o mesmo não ocorreu com Cacá. Atormentado pelos traumas vividos durante a prisão dos pais, ele nunca conseguiu levar uma vida normal.

Segundo Darcy — que passou a dedicar-se quase exclusivamente ao filho —, nos anos posteriores à sua absolvição o menino sofria bullying na escola, onde era chamado de “terrorista”. Apesar de receber acompanhamento médico e psicológico, Cacá adquiriu uma grave fobia social.
Já com 37 anos, em entrevista à revista “Isto É”, Carlos Alexandre relembrou seu passado, descoberto ao remexer em gavetas dos pais, aos 10 ou 11 anos de idade. “Minha família nunca conseguiu se recuperar totalmente dos abusos sofridos durante a ditadura. Os meus pais foram presos e eu fui usado para pressioná-los”, afirmou.

Ao final da entrevista, Carlos Alexandre afirmou o desejo de ter uma família, com mulher e filhos. “Mas tenho consciência de que devo dar um passo de cada vez. Talvez, com um pouco de sorte, eu consiga recomeçar”. Em 2013, aos 40 anos, ele se suicidou com uma overdose de medicamentos. O casal se divorciou em 2011. Dermi morreu de infarto em 2021, aos 72 anos, em São Paulo.



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