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Governo chileno oficializa Plano Nacional de Busca de desaparecidos durante ditadura

8 de novembro de 2023

Por Camilla Viegas, correspondente da RFI em Santiago
Publicado originalmente pela RFI em 30/08/2023

O presidente do Chile, Gabriel Boric, assina nesta quarta-feira (30) o decreto de criação do Plano Nacional de Busca de desaparecidos durante a ditadura de Augusto Pinochet. A iniciativa será lançada durante uma cerimônia no Palácio La Moneda, sede do poder Executivo em Santiago, a menos de duas semanas do aniversário de 50 anos do golpe militar. Até hoje, famílias desconhecem o paradeiro de cerca de 1.500 pessoas.

Se há um acontecimento na História sobre o qual todos os chilenos têm algo a dizer, este é o golpe de Estado que pôs fim à ordem democrática no país e estabeleceu uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina.

Era 11 de setembro de 1973 quando o Palácio La Moneda foi bombardeado pelas Forças Armadas chilenas, na época sob o comando do general Augusto Pinochet. O regime militar durou 17 anos, matou cerca de 3 mil pessoas e deixou 38 mil vítimas, entre executados, detidos que desapareceram, presos políticos e torturados, segundo dados da comissão oficial que, em 2011, compilou depoimentos de vítimas e familiares.

O denominado Plano Nacional de Busca tem o objetivo de esclarecer as circunstâncias do desaparecimento de 1.469 pessoas. Desse total, 1.092 cidadãos foram detidos e depois sumiram; outras 377 pessoas foram executadas pelo Estado e não tiveram seus restos mortais devolvidos aos familiares. Agora, o presidente de esquerda Gabriel Boric quer dar uma resposta a essas famílias.

“Já faz muito tempo, vai ser difícil, o sucesso é improvável. Mas temos o dever moral de nunca parar de procurar aqueles que estão desaparecidos”, disse Boric ao anunciar o plano pela primeira vez, em março deste ano.

“Mais do que uma oficialização, o que já é importante porque se torna uma política que deve ser ampliada e mantida, o que é necessário é um plano concreto e inovador que garanta mecanismos disponíveis para obter os resultados necessários. O Estado tem uma dívida, uma vez que nunca deveria ter afrouxado o esforço de procurar ativamente o paradeiro dos detidos desaparecidos. É uma dívida que não será paga até que haja resultados”, explica Felipe Agüero, acadêmico da Faculdade de Governo e membro do Comitê Diretivo da Cátedra de Direitos Humanos da Universidade do Chile.

Trabalho anterior

Embora só seja oficializado nesta quarta-feira, o plano reúne uma série de ações que já começaram desde setembro do ano passado. Sob a responsabilidade do Ministério da Justiça e de Direitos Humanos, a primeira etapa dos trabalhos consiste em reunir todos os registros dos desaparecidos, recolhidos pelas diferentes comissões legislativas, pelos tribunais de Justiça, pelos governos anteriores e pelos próprios familiares das vítimas, como explicou o ministro da Justiça, Luis Cordeiro. Apesar de utilizar dados antigos, o ministro garantiu que, ao integrá-los, é possível que surjam “indicações para novas investigações”. Várias organizações foram associadas à iniciativa.

O plano busca esclarecer as circunstâncias do desaparecimento forçado e/ou morte das vítimas e seu paradeiro; garantir o acesso à informação e a participação dos familiares e da sociedade nos processos de busca dessas pessoas. O governo chileno prevê implementar medidas de reparação e garantias de não repetição da prática do crime de desaparecimento forçado, conforme informações da Subsecretaria de Direitos Humanos.

O plano implica também a digitalização completa dos dados que os tribunais dispõem atualmente e que surgiram ou surgirão em processos abertos e encerrados. Essas informações serão analisadas ​​​​em conjunto com documentos de outras entidades, como a Vicaría de la Solidaridad – uma organização da Igreja Católica no Chile, já dissolvida – e o Instituto Nacional de Direitos Humanos (INDH). O objetivo é poder reconstruir as trajetórias das vítimas de desaparecimento forçado para chegar ao seu paradeiro.

Os familiares dos mais de mil homens e mulheres desaparecidos continuam a procurar os seus entes queridos há décadas e os seus esforços serão uma parte essencial do novo plano governamental, que também tem apoio intersetorial.

“Todos com quem conversei, desde o governo até a oposição, consideraram que esta é uma obrigação elementar do governo do Chile. Por isso, cuidamos do Plano Nacional de Busca como uma política de Estado e não como uma bandeira específica”, disse o ministro Luis Cordero.

“É urgente que o Estado do Chile inicie um plano de busca e este plano deve ter alguns padrões mínimos”, avalia Consuelo Contreras, diretora do INDH. “Deve ser uma política pública de estratégia abrangente, que seja liderada por pessoas independentes”, disse ela. A diretora do INDH também defende que os familiares possam participar diretamente das ações previstas. “Um trabalho ordenado, coordenado e organizado, que tenha recursos suficientes para ser implantado em todo o país e que esteja diretamente coordenado com o sistema de Justiça”, completou Contreras.

Dúvidas e expectativas

Os familiares se mostram otimistas com a iniciativa, embora se mantenham prudentes. É o caso de Glória Elgueta, irmã de Martín Elgueta Pinto, militante do Movimiento Izquierda Revolucionária (organização político-militar que atuou antes da ditadura), detido e desaparecido desde 1974. Ela apreciou o plano, mas alertou sobre os obstáculos enfrentados até agora por sua família. “Obstáculos como os pactos de silêncio dos membros das Forças Armadas e policiais, que foram revelados em investigações judiciais”, disse ela à organização Londres 38, que reúne parentes de desaparecidos e ativistas de Direitos Humanos.

Alguns grupos, incluindo a Londres 38, manifestaram preocupação com a redução de pessoal e profissionais na Subsecretaria de Direitos Humanos, que, em princípio, têm um papel fundamental na iniciativa governamental.

“Para alguns [familiares] é tarde demais. Outros estão mais interessados ​​em ver a justiça ser feita contra os violadores dos Direitos Humanos que causaram esta situação e continuam a mentir sobre isso. Outros ainda estão compreensivelmente céticos porque ouviram promessas semelhantes durante décadas. E há outros que fizeram lobby durante anos para que esta iniciativa saísse do papel e insistiram em ter um assento à mesa, participando na concepção do plano e de sua implementação e execução. Para estes últimos é mais um caminho entre tantos que percorreram em busca de respostas e justiça”, disse Cath Collins, diretora do Observatório de Justiça Transicional da Universidade Diego Portales.

“Como temos uma onda crescente de ultradireita [no Chile], penso que tudo isso irá provocar declarações ofensivas e prejudiciais e que a direita parlamentar se sentirá encorajada a se opor a ela [a iniciativa], ou a minimizá-la e tentar negar-lhe recursos. Por isso é importante que o trabalho de busca, que também é feito nos tribunais de Justiça e através deles, não cesse”, afirmou Collins.

Desafios

“Este plano apresenta desafios importantes, o que implica maiores esforços tendo em conta que também enfrentamos a chamada ‘impunidade biológica’ dos últimos anos, uma vez que as mortes dos autores e vítimas de violações dos direitos humanos têm constituído uma nova dificuldade para a Justiça, a verdade e a reparação”, explica Rodrigo Bustos, diretor executivo da Anistia Internacional no Chile.

Nesse contexto, a ONG enviou uma carta ao governo, na qual solicitava que o plano fosse uma iniciativa permanente do Estado e que cumprisse vários requisitos, como ter sempre a participação dos grupos de familiares de detidos desaparecidos, garantindo recursos suficientes para o trabalho de busca e, sobretudo, “considerar um apelo explícito às Forças Armadas e à Ordem para colaborarem no esclarecimento dos crimes”. De qualquer forma, a organização internacional descreveu a iniciativa do governo chileno como “necessária e valiosa”.

Um dos desafios mais importantes é a inclusão, em todas as etapas, das famílias dos desaparecidos, além de outras organizações, entre elas o grupo de familiares de executados políticos. Segundo Bustos, é preciso garantir que existam recursos suficientes para o trabalho de busca e para o reforço dos serviços do Estado que têm um papel fundamental nestas matérias – por exemplo, a área de Direitos Humanos do Serviço Médico Legal. “Esperamos que o plano seja eficaz e não crie nas famílias expectativas difíceis de satisfazer”, pontuou.

Silêncio das Forças Armadas

Ao longo de décadas, muitas investigações sobre o que aconteceu aos detidos desaparecidos têm sido encobertas por um manto de silêncio por parte de alguns membros das Forças Armadas. Este poderá ser o grande desafio do Plano Nacional de Busca.

Para os especialistas no assunto, é essencial que as Forças Armadas e as autoridades policiais do Chile participem e colaborem com os esforços de elucidação da verdade, colaborando com o esclarecimento dos crimes de Direito Internacional e das graves violações dos Direitos Humanos cometidos durante a ditadura de Augusto Pinochet.

De acordo com Bustos, espera-se que o governo instrua os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, assim como os Carabineros – a polícia no Chile – a “adotar medidas necessárias para acabar com os pactos de silêncio […], divulgando publicamente a informação disponível sobre a destruição de arquivos institucionais que possam conter registros relacionados com crimes de Direito Internacional e violações de Direitos Humanos”. O diretor executivo da Anistia Internacional ainda defende que o governo chileno verifique a regulamentação existente em relação à destruição de documentação militar, para garantir que não exista atualmente nenhuma prática desse tipo.

Na opinião do ativista, é preciso “dar urgência às diversas iniciativas legislativas existentes sobre a matéria, colaborar ativamente e de boa fé com as investigações judiciais, entregando os currículos e todos os antecedentes solicitados dos funcionários em serviço ou aposentados que possam ter tido algum tipo de participação ou testemunhado violações de Direitos Humanos e entregar todas as informações relacionadas ao destino e paradeiro de qualquer pessoa detida e desaparecida”, finaliza Rodrigo Bustos.



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