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No rastro do navio-prisão

14 de dezembro de 2023

Historiador prepara estudo sobre o Raul Soares, embarcação que serviu de cárcere na ditadura militar

Entre 1900 e 1964, sob diferentes bandeiras e nomes, o navio Raul Soares cruzou o Oceano Atlântico entre Hamburgo, na Alemanha, e Santos, no Brasil. Inicialmente foi batizado pela companhia alemã Hamburg-Süd de Cap-Verde e utilizado no transporte de imigrantes; posteriormente, sob o nome Madeira, transportava passageiros e carga. Comprado pela Lloyd Brasileiro (1925), entre as décadas de 1930 e 1960 deixaria de transportar passageiros para se transformar em cárcere flutuante de presos no levante comunista (chamada Intentona Comunista de 1935), na Revolta dos Sargentos (1963) e na ditadura empresarial-militar (1964) que derrubou o governo João Goulart e levou, em Santos, à prisão de centenas de oposicionistas ao golpe.

Nos últimos quatro anos, entre 2019 e 2023, o historiador Arthur Serra dedicou-se a estudar a trajetória do Raul Soares, as violências pelas quais passaram seus prisioneiros e as conexões entre o Estado ditatorial e iniciativa privada. A história da embarcação resultou no artigo “Vozes de um cárcere flutuante: memórias de presos do navio Raul Soares (1964-1971)”. Posteriormente, Serra começou a produzir a dissertação de mestrado “Por terra e por mar: a conexão Estado/Cia Docas de Santos na repressão aos trabalhadores (1964-1980)”, a ser defendida em 2024, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “O Raul Soares foi um dos piores símbolos da Ditadura na cidade de Santos”, afirma.

A “Moscou brasileira”

Rebocado do Rio de Janeiro, o Raul Soares – nome dado em homenagem a Raul Soares de Moura, político mineiro morto em 1924 – chegou a Santos em 24 de abril de 1964. A cidade já estava tomada pelas Forças Armadas vitoriosas no golpe de 1º de abril. Ainda assim, Santos continuava fazendo jus à fama de “Moscou brasileira”, ou “Cidade Vermelha”, por conta da combatividade de seus movimentos sociais e à influência do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) entre seus trabalhadores.

“Já em 1956 havia sido fundado em Santos o Fórum Sindical de Debates, que aglutinava 54 sindicatos da Baixada Santista para discutir reivindicações comuns aos trabalhadores, como questões salariais e melhores condições de trabalho. O fórum organizou paralisações e greves em apoio a categorias a ele vinculadas e que estavam em greve lutando por seus direitos”, diz Serra. Prova desse poder, não raro, em sinal de solidariedade de classe, a greve em uma categoria se espalhou para outras. Fortalecidos, representantes da entidade chegavam a negociar suas reivindicações diretamente com ex-presidentes como Juscelino Kubitschek (1956-1961).

Nas semanas que se seguiram ao golpe empresarial-militar, porém, o movimento sindical já estava fortemente abalado e muitos de seus líderes na cadeia. Como forma de intimidar qualquer tentativa de reação, o então ministro da Marinha Ernesto Melo ordena ao Capitão dos Portos de São Paulo, Júlio de Sá Bierrenbach, que os presos sejam encaminhados à embarcação.

No rastro desse episódio inédito na história de Santos, o estudo de Serra – integrante do projeto “CIA Docas de Santos/Codesp – parceria empresa-Estado na repressão aos trabalhadores durante a ditadura empresarial-militar (1964-1985)”, da Unifesp – parte da análise de documentos oficiais, uma ampla fonte de depoimentos de autoridades, ex-presos e de seus familiares, reportagens da época e uma alentada bibliografia histórica.

Entre as obras está “Sombras sobre Santos”, de Ricardo Marques da Silva e Carlos Mauri Alexandrino. Nela, o registro de que o então major do Exército Erasmo Dias – comandante do Forte de Itaipú, em Praia Grande e que iria ocupar a chefia da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, na década de 1970 – ratificou a utilização do barco como prisão.

A justificativa é esclarecedora: “Para Erasmo Dias, Santos era onde o golpe corria mais perigo por conta da força do sindicalismo representada pelo Fórum Sindical de Debates”. Segundo o historiador, tais cuidados “mostram até onde a preocupação com a articulação dos trabalhadores de Santos havia chegado”.

Por ordem do então ministro da Marinha Ernesto Melo, o navio foi rebocado do Rio de Janeiro e fundeado no estuário da Ilha Barnabé, em Santos, sob a responsabilidade da Polícia Marítima e Aérea de São Paulo. No total, o pesquisador localizou 263 nomes de presos políticos detidos no Raul Soares, entre eles 40 sargentos do Exército, tenentes e um militar da Marinha; lideranças sindicais dos trabalhadores portuários e do administrativo da Companhia Docas de Santos, e também estivadores, bancários, petroquímicos da Refinaria Presidente Bernardes, funcionários da Companhia Siderúrgica Paulista (COSIPA), médicos, professores, jornalistas, bancários, estudantes, entre outras categorias. Em sua maioria, os trabalhadores eram lideranças do movimento sindical. Antes da transferência, porém, muitos foram submetidos a ações ilegais. Sequer eram informados dos motivos da prisão.

“Foi o caso do bancário Antônio Guarnieri, um dos fundadores do Fórum Sindical de Debates, cujo habeas-corpus apresentado por seu advogado foi ignorado”, informou Serra. “O professor de medicina Boris Vargaftig, por exemplo, foi detido durante uma aula de medicina na UNICAMP”. Era apenas o começo de um mar de arbitrariedades.

“Frigorífico”

Para cumprir a função de prisão, o navio passou por algumas poucas adaptações. Porões e camarotes foram transformados em celas exíguas e escuras. No geral, a higiene a bordo era precária e as instalações fétidas. A exemplo do que ocorreria anos depois com os Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) do Exército, os calabouços do barco passaram a ser usados como locais de tortura. Para esses cômodos, o sadismo dos órgãos de repressão escolheu nomes apropriados a cada suplício imposto aos prisioneiros.

O requinte de crueldade poderia combinar ainda sessões no “Frigorífico”, sob temperaturas baixíssimas; no “El Moroco”, compartimento contíguo à caldeira do navio, as temperaturas subiam a 48ºC entre 50ºC. “Por ordem do tenente-coronel Sebastião Alvim, Sumida Tomoshi, estudante da USP vinculado à União Nacional dos Estudantes (UNE) passava o dia todo no “Frigorífico” durante todas as sextas-feiras do período que esteve preso no Raul Soares. Após deixar o navio, acabou morrendo”, afirma o historiador.

Na “Casablanca”, o prisioneiro poderia permanecer por horas em meio a fezes e outros dejetos. Outros eram trancafiados de um dia para outro na “Night and Day”, sala na qual padeciam com água até o joelho, sem dormir, como ocorreu com o médico, professor, cientista e pesquisador Thomas Maack, que pernoitou com água pelo joelho.

Além do castigo físico, havia a tortura psicológica, algumas vezes em resposta à frequente resistência moral de alguns presos. Um dos exemplo da barbárie está no artigo “Vozes de um cárcere flutuante: memórias de presos do navio Raul Soares (1964-1971)”, no historiador cita o livro “Raul Soares: navio presídio, a outra face da Revolução”, do jornalista Nelson Gatto, detido na embarcação. Segundo ele, “[…] As idas ao banheiro eram sob metralhadoras”. Em seus depoimentos, Gatto – que chegou a publicar um livro sobre o cárcere – ousava defender frente a seus algozes a legalidade do Governo Jango. Pagou caro: 43 dias de prisão. Por se recusar a limpar o navio foi levado ao “El Moroco”. Ainda assim, não abriu mão de suas ideias e opiniões.

Como forma de pressão psicológica, os agentes do Estado também soltavam boatos de que o navio seria rebocado para alto-mar e que eles ficariam sem ver suas famílias e estas ficariam sem saber o que estava acontecendo, pois ficariam incomunicáveis – tática que visava aumentar ainda mais a insegurança e o medo a bordo.

Em outras ocasiões, como atesta o estudo de Serra, baseado em depoimentos do sindicalista José Barbosa Leite Júnior e do estivador Zeca da Marinha ao livro “Santos: o longo caminho da volta”, de Ricardo Marques da Silva e Carlos Mauri Alexandrino, as dimensões da tortura física e psíquica eram intrinsecamente interligadas. “Nós éramos levados para o convés e vinha um helicóptero da Base Aérea, que ficava voando sob nossas cabeças em círculo. Com as mãos para trás, cercados por soldados de metralhadoras apontadas para nós, sofríamos por sentir que nossas vidas estavam sob risco e por estarmos totalmente indefesos”.

Tais situações eram atenuadas pelas visitas de familiares e amigos dos presos, transportados de lancha entre o porto e o barco. O encontro ocorria no convés, sempre sob forte vigilância armada. O primeiro a receber parentes a bordo foi o sargento do Exército Darcy Rodrigues, que servira no complexo militar de Quitaúna (Osasco). Naquela guarnição, aliás, manteve estreita relação de companheirismo com um dos personagens mais emblemáticos na luta contra a ditadura: o capitão Carlos Lamarca que, em 1969, abandonaria o Exército para ingressar na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).

Se as notícias trazidas à terra pelos familiares dos presos chegavam à população santista, segundo o historiador não provocaram reações entre a população, ainda que os santistas que passassem pelo porto soubessem de sua presença e de sua função de cárcere flutuante: “Havia essa consciência dos trabalhadores e moradores de Santos que avistavam o imponente navio, assim como daqueles que tinham amigos e parentes presos no local. Mas o medo da repressão fazia com que não houvesse reação organizada às prisões”.

A solidariedade aos presos e seus parentes se fez por meio de campanhas de contribuição. Estas eram organizadas pelos trabalhadores da Docas — cuja cumplicidade com a ditadura seria comprovada futuramente —, que tiravam dos próprios salários a ajuda que livrou muitas famílias de prisioneiros da fome. Ainda assim, quando soube da campanha, a Capitania dos Portos emitiu uma circular proibindo tais ajudas e ameaçando de demissão quem a desrespeitasse.

Liberdade e estigma

O encarceramento dos presos políticos duraria até outubro de 1964. Não houve registro de mortos a bordo. Passados seis meses, os prisioneiros foram colocados em liberdade vigiada, em Santos, de onde só poderiam se ausentar com ordem das autoridades policiais e com recomendação de não se meterem em “atividades políticas”. Segundo o historiador, pelo menos 128 pessoas responderam a processos judiciais. Oito foram inocentadas.

Em 1967 foram absolvidos 16 líderes portuários – sem ligações com os processos daqueles – pela 2ª Auditoria Militar de Guerra envolvidos no IPM da Orla Marítima. Dois anos depois, oito deles foram declarados inocentes e 33 condenados. Os processos se arrastaram até 1971, quando prescreveram para os demais que não foram julgados. Em 2 de novembro de 1964 o Raul Soares foi rebocado para o Porto do Rio de Janeiro, onde virou sucata.

A liberdade, porém, não livrou os ex-presos de um futuro carregado de sofrimento trazido pelo estigma de serem tachados de “subversivos”. Coube ao historiador resgatar casos como o do ex-preso Osni Nery dos Santos, apresentado para uma seleção de emprego em uma fábrica da Ford de São Bernardo do Campo. Embora tenha se saído bem, acabou dispensado após a empresa descobrir suas atividades sindicais em Santos.

Na verdade, segundo Serra, as despensas estavam ligadas a uma lista suja contra ex-presos políticos. Quem tivesse participado do movimento sindical era barrado pelas empresas e estava condenado a passar por dificuldades. Alguns retornaram à Docas, como o Afonso Neves Guerra; porém, não permaneceram pois não se sentiam mais adaptados ao antigo ambiente de trabalho e suas lembranças. A Docas jamais pediu desculpas formais aos operários. Nenhum chegou a ser indenizado financeiramente. “O caso Raul Soares ficou tatuado na memória dos presos e de suas famílias, comparado aos campos de concentração nazistas. São cicatrizes eternas”, afirma o historiador.

Navio Raul Soares: Raio X

Viagem inaugural: 1900
Nomes: Cap-Verde, Madeira e Raul Soares
Bandeiras: Alemã, inglesa e brasileira
Armador: Hamburg Südamerikanischen D.G.
Rota: Brasil e o Rio da Prata/Brasil-Europa do Norte (Hamburgo)
Peso: 5.909 toneladas
Comprimento: 125,1 m
Boca (largura): 14,7 m
Velocidade média: 12 nós
Passageiros: 580
Classes: 1ª – 80 pessoas
imigrantes – 500 pessoas
1922 – Nova rota: Rotterdam, Leixões, Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro e Santos
1925 – Vendido à estatal Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro
Utilização como navio-prisão: Intentona Comunista (1935), Revolta dos Sargentos (1963), Ditadura civil-militar (1964)
Desativado em 1964



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