
Fernando Augusto Fernandes sobre falas do Presidente do STM em entrevista à Miriam Leitão
Em entrevista à GloboNews no programa de Miriam Leitão em 26/04/2023, o Presidente do Superior Tribunal Militar (STM), Tenente Brigadeiro do Ar Francisco Camelo, reproduz erros históricos e informações falsas quanto aos arquivos dos julgamentos políticos do STM, ao afirmar que estão abertos e disponíveis, não apontando, porém, onde estão as referidas gravações deliberadamente ocultadas durante o Regime Militar.
O Tribunal prestou informações ao Supremo Tribunal Federal após a entrevista, informando que a lista de processos identificados como faltantes “não tem registro de captação de áudio das sessões ou o arquivo está com a integralidade corrompida” e que “não se descarta a possibilidade de o Requerente, futuramente, detectar outros arquivos com a integralidade comprometida, lastimosamente. Em casos desse jaez, será necessário se socorrer da documentação física registrada nos impressos arquivados na DODOC”.
Ainda informou o STM que “os processos físicos, em sua integralidade, foram digitalizados e estão à disposição”, que os “os registros de áudios captados nas sessões de julgamentos (…) entre os anos de 1975 e 2008 estão disponíveis no sítio eletrônico www.stm.jus.br” e que “quaisquer interessados podem requerer cópia de registros de gravação de áudio ou audiovisual de julgamento no sítio eletrônico do STM, no Link OUVIDORIA”.
É necessário esclarecer que os áudios apontados como faltantes ao Supremo Tribunal compõem fitas de gravações em perfeito estado e audíveis, considerando a época da gravação e a qualidade técnica do gravador. Os processos indicados foram deliberadamente gravados em fitas diversas das sessões públicas durante o Regime Militar. Seria uma coincidência improvável que as múltiplas partes ocultadas durante o Regime em diferentes fitas sejam exatamente as corrompidas.
Há áudios não enviados de julgamentos em sessões onde todos os processos da ata estão audíveis, menos de uma apelação, a 40.484, para a qual o áudio não foi enviado. Temos, também, processos com áudios da apresentação dos Ministros presentes, com boa qualidade, sem, no entanto, o conteúdo do áudio do restante da sessão, como nos casos das Apelações 39.974, 40.425 e 40.411. E, há erros nas informações enviadas pelo STM, em sua resposta ao STF, como datas apresentadas de alguns processos, diferentes do contido na ata oficial emitida pelo STM, caso das Apelações 40.411, 40.425, 40.493 e 40.400.
Certamente, o esforço técnico dos servidores do Tribunal diante de uma ordem do Presidente para cumprimento da ordem do Supremo de pleno acesso, a fim de que sejam localizadas as fitas onde foram gravadas as partes ocultadas, e o atendimento direto dos pesquisadores por servidores especializados em arquivo e não pela ouvidoria, tornará possível a identificação do material histórico e, na eventualidade de fragmentos danificados, sua restauração.
Se já é debatida a necessidade da existência de tribunais militares em tempo de paz, mais relevante ainda é a publicidade de um material de tamanha importância para a democracia brasileira, que possibilita o estudo sobre a repressão militar aos civis. Esse material não deve ficar acautelado em um tribunal militar, mas sim inventariado perante o arquivo nacional, inclusive para fins de eventuais cuidados e restaurações.
Além dos processos físicos indicados como acessíveis e que compuseram o material copiado pelo grupo “Tortura Nunca Mais”, a obra “Brasil, Nunca Mais”, o acesso e a investigação das gravações dos julgamentos, não só os digitalizados, mas o material direto (as “fitas de rolo”) são imprescindíveis para a descoberta do que falta à luz da história, esforço esse com o qual o STM deve colaborar.
Quanto aos áudios, somente o portal Voz Humana traz o material separado por processos, pelo nome dos réus, advogados e ministros e realiza o esforço de fichamento dos processos e de criação de materiais jornalísticos acessíveis ao público. O portal do STM disponibilizou as sessões inteiras, sem separação criteriosa, o que dificulta em muito e, por consequência, impede a ampla pesquisa e acesso ao material.
Quanto aos erros históricos, é fundamental apontá-los, uma vez que a verdade dos fatos protege a democracia presente. Sobre Torturas, o Ministro Presidente afirmou: “não tenho prova de que as Forças Armadas cometeram tortura. Eu sei de muita coisa que aconteceu nos DOI-CODI, era segurança pública”, e, ainda: “eu procurei ver alguns áudios, procurei ver quantos julgamentos sobre tortura nós temos… e pedi para todos pesquisarem. Só encontrei sete, porque nós não tínhamos o crime tipificado de tortura”.
As pesquisas do Projeto Voz Humana já identificaram dezenas de casos em que são usadas as palavras “tortura” e “sevícias” por ministros durante julgamento, bem como já publicou cerca de dez matérias relativas a esses casos em seu blog.
A afirmação da inexistência de provas de torturas realizadas pelas Forças Armadas durante o Regime Militar cria uma falsidade histórica, como se não houvessem sido praticadas tais ilegalidades durante o período. O governo Médici (entre outubro de 1969 e março de 1974) criou o aparato de tortura especializado e nacional, centralizado e ordenado de acordo com a hierarquia militar, e coroou o seu idealizador com um posto de Ministro na corte do STM.
Também o penúltimo ditador, Ernesto Geisel, foi membro do STM, e o seu vice, General de Exército Adalberto Pereira dos Santos, foi um dos presidentes da Corte. Ora, o STM se dizia contra a tortura, condenando-a publicamente, porém, quando dois de seus membros se tornaram presidentes do Tribuna; o DOI-CODI não apenas não deixou de existir como ainda perpetrou sua rotina de massacres. Vladimir Herzog foi morto durante o governo Geisel (1974-1979) e o Comitê Central do PCdoB foi massacrado também durante seu governo. A retórica assumida pelo Brigadeiro Camelo almeja obliterar a verdade, fartamente demonstrada, senão pelos próprios áudios do tribunal, pelo Relatório da Comissão Nacional da Verdade (http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/)
Já em 1977, não eram estranhos aos Ministros do STM os relatos de tortura, uma vez que os acusados negavam o que diziam em inquérito afirmando que haviam sido torturados para tal. No julgamento da apelação 41.336, os Ministros discutem sobre a existência ou não da tortura e um Ministro fala sobre esta doutrina, ou seja, uma vez que se anula o inquérito em razão das confissões terem sido obtidas através de tortura não se investiga o inquérito, mas, na falta de provas, o tribunal decidia pró-liberdade do réu. Era o princípio básico da Lei de Anistia (promulgada dois anos depois, em 1979) sendo formulado o seguinte: reconhecemos que houve episódios de tortura, inclusive que eles anularam muitos inquéritos, mas vamos esquecer tudo em troca da liberdade de vocês e da não responsabilização dos nossos pelos crimes de Estado fartamente cometidos.
Em outros processos, como na apelação 41.707, em que, no acórdão, encontra-se outra denúncia de tortura posterior à declaração pública, condenando a prática por parte do Tribunal. O mesmo ocorre nas apelações 41.488 e 41.967, elencadas para registro e acesso. Um ano após a declaração pública dos Ministros contra a prática da tortura, não houve nenhum pedido de investigação desses casos pelo próprio STM.
O art. 205, § 2°, III do Código Penal Militar já previa como homicídio qualificado o “matar alguém” “com emprego de […] asfixia, tortura […]” assim como a lesão corporal (art. 209) e o constrangimento ilegal (art. 222), muito antes da Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997. Além disso, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948, determina em seu art. 5º que: “Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”.
Portanto, a afirmação do Presidente do STM de que “Veio depois, já em 2000, porque a tortura, como a Sra. sabe, a primeira vez que foi declarada pelas Nações Unidas como um crime contra a humanidade foi em 1984. Nós, a nossa constituição, declarou que o crime de tortura é um crime que não carece de anistia apenas em 1988. E isso só foi regulamento em uma lei em 1997”, faz parecer que não havia tipo penal há época das torturas realizadas por militares, induzindo o ouvinte a erro.
As Forças Armadas, como instituição, somente se livrarão dos abusos cometidos por desvios dos seus membros quando reconhecerem e trabalharem para a reparação histórica. Da mesma forma, é preciso que a Corte implemente esforços reais para que todas as gravações faltantes sejam localizadas e recuperadas.
O advogado Fernando Augusto Fernandes irá requerer ao Ministro presidente do STM que determine a identificação de onde e em quais fitas se encontram os trechos faltantes, permitindo o acesso direto ao material para pesquisa e, caso um eventual trecho esteja corrompido, que se tomem as devidas providencias para sua restauração.
A democracia, a redemocratização e a consolidação do regime democrático recentemente ameaçado exigem que todos os que atentaram contra os mesmos, no passado e no presente, sejam identificados e punidos, mesmo os que já não estejam mais vivos, em nome dos desaparecidos e torturados. Não existem dois lados quando se trata de crimes do Estado contra a população civil. As instituições, como as Forças Armadas, tão importantes para a defesa do país, só se vinculam definitivamente à democracia quando exorcizam seus erros, se afastando dos abusos e desvios de sua atuação histórica, quando os reconhecem e rechaçarem publicamente.