
STM rejeita alegações de tortura e condena militantes do PCB com base em confissões extrajudiciais
Em sessão secreta de 1978, o ministro togado do Superior Tribunal Militar Lima Torres alertou que o tenente reformado da Polícia Militar e militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) José Ferreira de Almeida havia cometido suicídio após ser preso e sofrer torturas em operação contra o partido.
Sem parecer saber que a questão era ainda mais grave — que o militante na verdade havia sido assassinado por agentes do Estado —, Torres usou esse exemplo para contrapor argumentos do procurador-geral de Justiça Militar e de outros ministros que questionavam a existência de tortura na fase do inquérito e afirmavam a validade das provas extrajudiciais, em um caso de tentativa de reorganização do PCB no seio da PM de São Paulo.
Por entender que as sevícias invalidavam as confissões na fase de inquérito — na fase processual, os réus mudaram de versão e negaram os crimes —, Torres, o relator do caso, votou para absolver todos os acusados de reestruturar o partido. Contudo, ele ficou vencido, e o STM condenou quatro dos réus.
Denúncia e sentença
A suspeita de tentativa de reestruturação do partido levou à instauração de um inquérito policial militar (IPM), em 1975, para apurar o caso. Diversas pessoas foram presas, e o IPM teve 76 indiciados, em sua maioria ligados à PM paulista. A ação fazia parte do ficou conhecido como Operação Radar, destinada a dizimar o PCB.
José Ferreira de Almeida, tenente reformado da corporação, estava entre os investigados. Ele foi assassinado por militares no DOI-Codi em agosto de 1975, um mês após a sua prisão, antes de a denúncia ser apresentada.
O Ministério Público Militar (MPM) excluiu casos como o de Almeida e outros de menor relevância e denunciou, em novembro de 1975, 41 dos 76 indiciados, de reorganização de partido político proibido por lei — o PCB —, crime previsto no artigo 43 da Lei de Segurança Nacional (Decreto-Lei 898/1969) e punido com pena de 2 a 5 anos de reclusão.
O Conselho Especial de Justiça, órgão encarregado do julgamento de oficiais (exceto generais), recebeu a denúncia e condenou, em 15 de setembro de 1976, Renato Oliveira da Motta à pena de 3 anos e 6 meses de reclusão por tentativa de reorganização do PCB. O tribunal desclassificou a acusação e condenou, pelo delito de filiação a grupo que exerça atividades prejudiciais ou perigosas à segurança nacional, previsto no artigo 14 da Lei de Segurança Nacional, Carlos Gomes Machado (1 ano de prisão), Vicente Silvestre (1 ano de prisão) e Zacarias Alfredo Freire (6 meses de prisão). Os demais réus foram absolvidos.
Debate sobre os crimes
Os quatro condenados interpuseram apelação, assim como o MPM contestou a absolvição de 37 dos acusados e a desclassificação do crime imputado a três dos condenados, que passou do artigo 43 para o artigo 14 da Lei de Segurança Nacional.
No entendimento do procurador-geral de Justiça Militar, Milton Menezes da Costa Filho, seria impossível aliar no mesmo comportamento o artigo 43 com o artigo 14 da Lei de Segurança Nacional. Ou todos os que foram condenados eram enquadrados no artigo 43 ou no artigo 14.
Em sessão secreta do julgamento da apelação, ocorrida em 6 de março de 1978, o procurador-geral argumentou que a filiação a grupos prejudiciais ou perigosos à segurança nacional (artigo 14) seria uma forma de tentativa de reorganização de partido político (artigo 43). “Não se pode reorganizar uma organização sem que se parta evidentemente da filiação.” A seu ver, quando se fala em “filiação”, trata-se de algo que se traduz por ações e atividades subversivas. E não uma filiação representada por arquivos ou expedições de carteirinhas.
Costa Filho reforçou que o processo se refere a atividades ligadas ao PCB. E que, embora alguns dos acusados talvez tivessem participado em menor grau das atividades do partido, ainda assim o fizeram e praticaram o crime.
Com base nesse argumento, a Procuradoria-Geral de Justiça Militar reiterou a acusação inicial e pediu que os cinco condenados fossem enquadrados no artigo 43 da Lei de Segurança Nacional (reorganização de partido político ilegal), e não apenas Renato Oliveira da Motta.
Além disso, Costa Filho reforçou o pedido de condenação de cinco dos acusados que haviam sido absolvidos, também pelo crime de tentativa de reorganização de partido político ilegal (PCB): Atílio Geromin, Josias Francisco Paraíso, João Bonomi, Edvar de Sebastião Pereira e Armando Lopes.
Isso porque, em sua visão, “há harmonia, há consonância, não só com o que disseram, como também com algumas e várias declarações prestadas por outros corréus, trazendo aquela convicção necessária à posse da verdade”.
Tortura e validade das provas extrajudiciais
O argumento do procurador-geral de Justiça Militar, Milton Menezes da Costa Filho, ao pedir a condenação dos acusados fundamentou-se na validade das confissões extrajudiciais.
“Às vezes esse tribunal despreza aquelas peças extrajudiciais, não por negar em tese a validade dessas peças, dessas confissões extrajudiciais cuja autoridade policial é absolutamente competente para colhe-las, porque é a fase de inquérito, razão porque ela, a autoridade policial, e não somente a judicial, é a autoridade competente desde que aqueles depoimentos, desde que aquelas declarações revestidas das formalidades legais, evidente que aquelas confissões extrajudiciais tem valia e o STF reiteradamente tem agasalhado essa validade e esse tribunal também”, disse Costa Filho na sessão secreta do STM.
O relator do caso, ministro Lima Torres, contestou a alegação, afirmando que todos que confessaram algo no inquérito se desdisseram depois em juízo. Conforme colocado por um ministro não identificado na sessão, todos os réus foram unânimes em apontar, na primeira instância, que tinham sido seviciados. Por isso admitiram os crimes que lhes foram imputados, ressaltou o magistrado.
Segundo Torres, o promotor reconheceu, na audiência, que algumas das torturas alegadas foram comprovadas. “Então, o tribunal há de sentir que nós, juízes, no exame imperiosamente e imparcial, a gente já começa a sentir os defeitos, as deficiências”.
“É escusado dizer para a comprovação que eu estou afirmando que este processo é realmente muito desagradável. O problema das sevícias, das torturas ou do que se possa chamar, mas pelo menos da compressão ou da pressão, o Brasil todo assistiu, o comandante do 2º Exército foi até substituído. É desta época. Neste processo, um ou outro. Aquele que se suicidou além do jornalista, em seguida, um outro também se enforcou na prisão”, declarou o relator.
O ministro Lima Torres referiu-se a José Ferreira de Almeida, tenente reformado da PM indiciado no inquérito, e ao jornalista Vladimir Herzog. Ambos foram torturados e assassinados pelos agentes do Estado em 1975 — Herzog alguns meses depois de Almeida.
No entanto, as mortes foram divulgadas oficialmente como decorrentes de suicídio, tendo grande repercussão na imprensa à época. Nos dois casos, as autoridades militares montaram a cena da morte, no mesmo lugar (DOI-Codi de São Paulo), de modo a indicar que eles haviam se suicidado. A ação que os matou fazia parte da Operação Radar, que buscava extinguir o PCB.
Apesar de não parecer ter conhecimento à época de que as mortes haviam sido causadas por agentes da ditadura, Lima Torres demonstrou sua repulsa ao suposto suicídio pós-tortura e usou esse caso para se contrapor aos argumentos do procurador-geral e de outros ministros que questionavam a existência de sevícias na fase do inquérito e afirmavam a validade das provas extrajudiciais.
O relator citou, ainda, o exemplo do acusado Antônio Domingues, tenente reformado da PM que declarou que, após sua prisão, em 1º de julho de 1975, passou por tortura e maus tratos. Domingues contou que foi sido deixado cinco dias sem comer, chegando a perder a vista de um dos olhos. Nesse estado, ele narrou que foi obrigado a assinar o termo de depoimento policial, sem ler o documento nem saber seu conteúdo.
Diante desse argumento, um ministro não identificado questionou os demais sobre a existência de provas das torturas alegadas pelos acusados. “Eu gostaria de saber se no processo há alguma prova, porque eu também sou contra sevícias, não admito sevícias, mas também não admito que em sua defesa alguém diga que houve sevícias sem prová-las. Então precisa haver um laudo médico que provou que ele estava realmente sofrendo sevícias ou então uma outra prova substancial que me faça acreditar”.
Em resposta, outro ministro não identificado afirmou que “prova provada não pode ter”. “Imagina, o dia que tiver o inquérito é nulo imediatamente”. Ou seja, ele indicou que a prática de tortura é a exceção, e não a regra na fase de inquérito.
O relator reforçou sua posição de que o que vale são as provas produzidas em juízo — que, no caso, indicavam que os acusados somente haviam confessado os crimes após serem torturados. “Eu parto da prova em juízo. Se essa tiver alguma coisa que possa confirmar o anterior [provas do inquérito], eu vou aceitar o anterior […] Em juízo, todos eles destruíram por inteiro tudo. Então, não pode prevalecer nada daquilo [provas do inquérito]”, declarou Lima Torres.
Dessa maneira, o relator votou para negar a apelação do MPM e aceitar o recurso da defesa para absolver os condenados em primeira instância — Renato Oliveira da Motta, Carlos Gomes Machado, Vicente Silvestre e Zacarias Alfredo Freire.
Contudo, prevaleceu, por maioria, o voto divergente do revisor do caso, ministro almirante Sampaio Fernandes. Ele negou a apelação da defesa e confirmou a sentença que condenou Renato Oliveira da Motta à pena de 3 anos e 6 meses de reclusão pelo crime de reorganização de partido político proibido por lei (artigo 43 da Lei de Segurança Nacional).
O magistrado também votou para aceitar parcialmente o recurso do MPM para condenar, pelo mesmo delito, Vicente Silvestre, Carlos Gomes Machado e Zacarias Alfredo à pena de 2 anos de prisão. Em primeira instância, eles haviam sido condenados pelo crime de filiação a grupo que exerça atividades prejudiciais ou perigosas à segurança nacional (artigo 14 da norma). Os dois primeiros tinham sido sentenciados a 1 ano de prisão, e o último, a 6 meses.
Por unanimidade de votos, o STM também manteve a absolvição em primeira instância dos demais acusados, negando, nesse ponto, a apelação do MPM.
Operação Radar
A ação que prendeu os 76 suspeitos em 1975, matou José Ferreira de Almeida e culminou na denúncia de 41 deles por reorganização de partido proibido por lei fazia parte da chamada Operação Radar (1973-1976), encarregada de dizimar o PCB a partir do “desaparecimento” de dirigentes do partido.
Como a legenda se dizia contra a luta armada, o que impossibilitava as autoridades de forjar confrontos diretos e trocas de tiros que pudessem justificar a morte dos dirigentes, os agentes da repressão optaram por sequestrá-los e matá-los de forma clandestina, sem o respaldo de qualquer ação pública.
As sessões de tortura e execução ocorriam, em boa parte das vezes, na chamada Casa de Itapevi, também conhecida como Boate Querosene, na região metropolitana de São Paulo. O imóvel situava-se numa área afastada e sem vizinhos que pudessem testemunhar os abusos dos agentes do Estado.
Ao que se sabe, a Operação Radar executou 19 militantes do PCB. Além de José Ferreira de Almeida, tenente reformado da PM, outras vítimas da operação foram o jornalista Vladimir Herzog, o dirigente do PCB Elson Costa, o operário Manoel Fiel Filho, o técnico em edificação José Montenegro de Lima e o advogado Jayme Amorim de Miranda.
Diversos testemunhos e documentos atestam a existência e modus operandi da Operação Radar. Entre eles está um relatório de abril de 1974 — assinado pelo então diretor da CIA, William Colby, e dirigido à Secretaria de Estado dos EUA — que descreve uma reunião na qual o então presidente Ernesto Geisel (1974-1979) deu aval para que o Serviço Nacional de Informação (SNI) procedesse com as mortes de militantes de esquerda, no âmbito da Operação Radar, desde que as autoridades superiores fossem previamente consultadas.
Além disso, em uma longa entrevista documentada pela diretora de cinema Beth Formaggini, um dos integrantes da Operação Radar, o ex-delegado e atual pastor da Assembleia de Deus Cláudio Guerra confessou abertamente sua participação e os crimes que praticou na ocasião.
Conforme Guerra, ele foi convidado em 1973 pelo Coronel Perdigão (Freddie Perdigão Vieira) e pelo Comandante Vieira para compor a Operação Radar. “Você sabe que esses comunistas têm que morrer, e sei que você é um patriota. Precisamos de você”, disseram os militares ao ex-delegado.
Em um primeiro momento, Cláudio Guerra recebeu a incumbência de matar os militantes envolvidos na oposição ao regime militar. Em seguida, sua função na Operação Radar passou a ser a de queimar os corpos das pessoas torturadas e assassinadas pelo DOI-Codi.
Guerra admitiu que foi responsável pelo desaparecimento de diversos militantes durante a ditadura militar, deixando suas famílias sem qualquer informação por anos. Com o lançamento do livro Memórias de uma guerra suja (2012), baseado nos depoimentos do ex-delegado sobre o período, alguns desses casos finalmente foram esclarecidos. Entretanto, beneficiado pelo Lei da Anistia, Guerra nunca foi punido pelos crimes que cometeu.
Em 2021, o Ministério Público Federal ofereceu uma nova denúncia contra os ex-agentes da ditadura militar e da Operação Radar Audir Santos Maciel e Carlos Setembrino da Silveira pelo assassinato, em 1975, do ex-membro da direção do PCB Elson Costa. À época, eles prenderam, torturaram, mataram e ocultaram o cadáver do militante, que permanece desaparecido.