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STM mantém prisão de militante do PCdoB por ele ser ambulante e arquiva denúncia de tortura

19 de janeiro de 2023

Recurso Criminal 4.999 (PE)

O ministro togado do Superior Tribunal Militar Alcides Carneiro desprezou, em sessão secreta de 1976, a profissão de vendedor ambulante do militante do PCdoB João Bosco Rolemberg e usou esse argumento, junto com o fato de ele ser reincidente, para negar seu pedido de revogação de prisão preventiva.

Em outra sessão da corte no mesmo ano, o ministro militar Carlos Alberto Huet mandou arquivar uma denúncia de maus tratos a Rolemberg e outros presos políticos da Penitenciária Barreto Campelo, na Ilha de Itamaracá (PE), em parte por estar “havendo muita exploração em torno dessas coisas”. Huet chegou a pedir que as alegações de tortura contidas no ofício fossem averiguadas, mas, como o diretor da prisão e o superintendente do sistema penitenciário afirmaram não haver quaisquer indícios de coação física ou moral, decidiu arquivar o processo.

O MPM acusou, em junho de 1975, João Bosco Rolemberg, Alanir Cardoso, Ana Maria dos Santos e José Marcelino dos Santos de tentativa de reorganização de partido político ilegal – no caso, o PCdoB –, delito previsto no artigo 43 da Lei de Segurança Nacional (Decreto-Lei 898/1969), com pena de 2 e 5 anos de reclusão.

Antes disso, Rolemberg tinha sido condenado à revelia, em 1972, a 2 anos de prisão, por filiação a grupo – Ação Popular – cujas atividades representassem ameaça à segurança nacional, como estabelecido pelo artigo 14 da Lei de Segurança Nacional.

Por esse motivo, o Conselho Permanente de Justiça, órgão da Justiça Militar encarregado de julgar soldados e civis, decretou a prisão preventiva de Rolemberg, a pedido do MPM. O conselho entendeu que, em liberdade, o ambulante poderia continuar a praticar o crime e dificultar a colheita de provas. A advogada dele, Mércia de Albuquerque, recorreu da ordem de detenção.

Em sessão secreta do STM, em 23 de fevereiro de 1976, o ministro togado Alcides Carneiro votou para manter a prisão preventiva de Rolemberg com base nos argumentos de que ele era vendedor ambulante e reincidente.

“Diz aqui que ele não tem profissão, que a profissão dele é ambulante. […] Realmente, ele é um indivíduo perigoso, temos que nos ater a isso, à periculosidade do acusado, do agente. Já tinha passado por aqui, e essa profissão dele, essa condição de vida… ele é ambulante, ele é realmente um ambulante, quer na subversão, quer na sua profissão”, declarou o magistrado.

Os demais ministros seguiram o voto de Carneiro, e o STM, por unanimidade de votos, negou o recurso da defesa, mantendo a prisão preventiva de Rolemberg.

Alegações de maus tratos

O ministro militar do STM Carlos Alberto Huet recebeu, em 1976, um áudio que denunciava que os presos políticos da Penitenciária Barreto Campelo, em Itamaracá (PE), haviam sido alvo de maus tratos por parte de agentes da ditadura. No ofício, Peronina Rolemberg e José Côrtes Conceição, pais de João Bosco Rolemberg, pediam proteção e garantia à vida do filho e dos demais encarcerados.

Entre outras denúncias, o documento apontava que Rolemberg e outros presos políticos da cadeia haviam sido transferidos para a base aérea de Recife e sofrido sevícias no local.

O áudio foi destinado ao auditor da 7ª Circunscrição da Justiça Militar (CJM), na capital de Pernambuco. Como o auditor estava ocupado com outro caso, o diretor de secretaria da auditoria, Manuel Pereira dos Santos, ficou encarregado de verificar a denúncia.

Em 7 de abril de 1976, Santos requereu que o diretor da penitenciária prestasse, em 24 horas, as seguintes informações: se, após a ida à base área de Recife, os presos citados haviam sido devolvidos à penitenciária; se apresentavam sinais visíveis de terem sofrido violência ou se alegaram terem sofrido violência física ou moral na organização militar; e, caso positivo, se foram encaminhados ao Instituto Médico Legal para exame de corpo de delito.

Em resposta, o diretor da penitenciária afirmou que os presos haviam sido devolvidos à prisão e não apresentavam sinais de violência física nem se queixavam disso.

Segundo o coronel do comando da base aérea de Recife, Mario Mello Santos, os presos políticos foram encaminhados a tal local mediante o Ofício 10/1976, de 1º de abril, em atendimento a determinação do inquérito policial militar (IPM) de 29 de março. Conforme o militar,os presos foram ouvidos nas condições de informantes e permaneceram 24 horas no base área, sendo devolvidos à cadeia depois disso.

O coronel também disse que o comando militar não tinha conhecimento que os presos tivessem sofrido qualquer tipo de coação física ou moral nas 24 horas em que permaneceram no local. Declarou, ademais, que não havia razão para se fazer o exame de corpo de delito, “tendo em vista que os referidos presos nada sofreram para que se justificasse tal procedimento legal”.

Em relação a João Bosco Rolemberg, o superintendente do sistema penitenciário pessoalmente informou ao diretor da auditoria, Manuel Pereira dos Santos, que não havia qualquer anormalidade.

Com base nisso, o ministro militar Carlos Alberto Huet mandou arquivar o processo, pois, segundo afirmou, “está havendo muita exploração em torno dessas coisas”, referindo-se às alegações de tortura e maus tratos.

Huet concluiu citando o alerta de familiares de que o ambulante corria risco na prisão. “Vem aqui um telegrama pedindo quase a vida de João Rolemberg, pedindo que dê proteção e garantia de vida… Eu não sei qual é o tipo de proteção e garantia de vida que eu posso dar a esse tipo de prisioneiro. Eu acho que nós devemos dar a atenção que eu acabei de dar aqui. Não sei se o tribunal está de acordo, essas foram as providências que eu tomei, mandei arquivar o caso. Caso alguém queira falar alguma coisa”.

Um segundo ministro, não identificado, respondeu que “ele [o superintendente do sistema penitenciário da SJP] que devia dar explicações, ele que está dizendo aqui que pessoalmente não havia qualquer anormalidade. Eu tenho a impressão de que temos de acreditar que esse homem está dizendo a verdade. Porque o dia que um homem desses não tiver mais a palavra dele, então manda fechar a penitenciária e soltar os presos. Não é possível mais continuar assim”.

Relatos de tortura

Em reportagem publicada no site Memórias da ditadura, João Bosco Rolemberg contou que, antes de ser transferido como preso político para a Penitenciária Barreto Campelo, na Ilha de Itamaracá, já havia passado por episódios de fortes torturas, após sua detenção na região de Caruaru (PE), em 1974. 

“Me deixaram de cueca e me penduraram numa argola, com os pés fora do chão. Iniciou a sessão de choques com eletrodos nos lóbulos das orelhas e nos genitais. Foi choque e porrada”. Segundo Rolemberg, isso se passou em um quartel de Recife, para onde foi levado logo após sua detenção.

O ex-militante da AP e do PCdoB disse na reportagem que ficou dois meses no local sendo torturado (de 4 de junho a 4 de agosto de 1974). Ocasionalmente era “examinado” por um suposto médico, que buscava detectar o grau de orientação e sua resistência física, conforme relatou. “Lembro do som das chaves que os carcereiros carregavam quando chegavam para nos levar pra tortura. Isso me enerva até hoje”.

Em seguida, sua esposa, Ana Maria dos Santos, e ele foram levados para o Rio de Janeiro e, em sequência, para São Paulo. “Lá sofremos a tortura psicológica, que é tão ou pior que a tortura física. Foi quando eu soube que Ana estava grávida do nosso primeiro filho. E eles usaram isso. Foi devastador. Isso nos arrasou durante uma semana onde as equipes se revezavam diuturnamente em interrogatórios incessantes”.

Finalmente, Rolemberg foi encaminhado para o Dops de Recife, onde permaneceria até ser transferido como preso político para a Ilha de Itamaracá. De acordo com o ex-militante, ele foi recebido “abertamente na porrada” pelo delegado Luís Miranda, o “Fleury” de lá, em referência ao agente Sergio Paranhos Fluery, conhecido por suas práticas de tortura em São Paulo. “Ele demonstrava um ódio irracional. Temo que se tivesse sido preso inicialmente por ele, não estaria aqui contando essa história”, narrou Rolemberg.

A militância de João Bosco Rolemberg

Filho de um mestre de obras e de uma empregada doméstica e o mais novo de sete irmãos, o aracajuano João Bosco Rolemberg iniciou sua militância nos movimentos da juventude católica. Em particular, numa vertente mais à esquerda, que discutia temas não só espirituais, mas a busca por maior igualdade social, em linha com as ideias do papa João XXIII.

Quando ingressou na faculdade de Serviço Social, sua militância nos movimentos estudantil e sociais se aprofundou. Nessa época, conheceu sua companheira de vida e militância, Ana Maria dos Santos, e entrou para a AP, sob influência de seu irmão mais velho, José Rolemberg, que chegou a ser umas das lideranças nacionais do movimento. Nessa época, participou também das lutas estudantis que contribuíram para a fundação da Universidade Federal de Sergipe.

Após o golpe civil-militar de 1964 e a perseguição aos movimentos estudantis, Rolemberg foi preso pela primeira vez, junto de centenas de outros estudantes, no congresso da União Nacional dos Estudantes em Ibiúna (SP), em 1968. Com o acirramento da repressão após a promulgação do Ato Institucional 5, em dezembro do mesmo ano, foi preso uma segunda vez. Nessas ocasiões, no entanto, não chegou a sofrer tortura.

Acuado pelas perseguições constantes do regime militar, Rolemberg optou por abandonar a faculdade e dedicar sua vida à revolução, à época militando pela AP. Ele e sua esposa mudaram-se então para São Paulo, em 1969, e logo passaram a viver na clandestinidade.

De volta ao Nordeste pouco depois, Rolemberg chegou a ser dirigente do comitê zonal da AP da região de Mata Sul (PE), marcada pelo ódio de classes vindo dos usineiros e da direita conservadora. Para sobreviver, o casal chegou a ser feirante em diversas localidades da área.

Foi nessa época, em 1972, que o opositor da ditadura se filiou, na clandestinidade, ao PCdoB. Rolemberg fazia reuniões de madrugada com os camponeses, visando a mobilização da luta armada. “Encontramos muitos militantes oriundos das ligas camponesas, com um grau elevado de radicalização e uma vontade instintiva de romper com aquela oligarquia. Nós vivíamos como sobreviventes, buscando manter o que restava para a ‘chama’ continuar acesa”.

Em 1974, foi detido num ônibus, na região da Caruaru, num período em que diversas lideranças do PCdoB e militantes da AP vinham sendo presas. Sua esposa foi detida pouco tempo depois na região de Garanhuns (PE). Ambos sofreram fortes torturas.

Foram mantidos no Dops de Pernambuco, de agosto de 1974 a janeiro de 1975. Após intervenção de advogados, Ana foi solta nesse ano, devido à evolução de sua gravidez.

Com sua prisão preventiva decretada, Rolemberg foi transferido como preso político, em janeiro de 1975, para a Penitenciária Barreto Campelo, na Ilha de Itamaracá. Recluso, passou a participar ativamente da célebre luta de resistência dos presos de Itamaracá pela melhoria das condições na cadeia e contra o isolamento de companheiros que haviam sido condenados à prisão perpétua.

Rolemberg foi condenado a três anos em Pernambuco. Havia sido condenado anteriormente a dois anos em São Paulo; porém, o STF extinguiu a pena em razão da prescrição. Contudo, foi liberado da prisão somente em 20 de março de 1979, com um Habeas Corpus impetrado por Ronilda Noblat, pouco antes da Lei da Anistia, editada em agosto de 1979.

Recurso Criminal 4.999 (PE)

 



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