Opositor da ditadura é absolvido pelo STM devido à retratação e falta de provas
O ex-integrante do movimento de esquerda Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) Celso Lungaretti foi solto após se retratar e depois afirmar, em rede nacional, ter “abandonado a subversão”. Com base no pedido de desculpas, mas, principalmente, na falta de provas de que ele havia praticado crimes, o Superior Tribunal Militar (STM) o absolveu, por unanimidade, em 8 de abril de 1976. Ele havia sido acusado do delito de tentativa de reorganização de partido político ou associação proibida por lei, estabelecido pelo artigo 43 do Decreto-Lei 898/1969.
O Ministério Público Militar (MPM) acusou Albertina Rodrigues Costa, Celso Lungaretti, Edmundo Menezes Paredes Junior, Isa Barreto Sales, José Jorge Dias Horta, Moises Cristino, Cristovão da Silva Ribeiro, Flavio Roberto de Souza, Joaquim Pires Cerveira, José Ronaldo Tavares de Lira e Silva, Maria do Carmo Brito, Melcides Porcino da Silva, Wellington Moreira Diniz e Yeda dos Reis Chaves de visar reorganizar grupo que atenta contra a segurança nacional – a VPR. O crime tinha pena de 2 a 5 anos de prisão. Albertina também foi denunciada pela posse ilegal de armamentos, delito previsto pelo artigo 46 do Decreto-Lei 898/1969 e punido com 5 a 10 anos de reclusão.
Segundo o MPM, os acusados organizavam constantes reuniões e promoviam o recrutamento de novos militantes e serviços médicos destinados a socorrer seus integrantes. Além disso, mantinham um serviço de informação e arquivo e produziam literatura e panfletagem subversivos. A procuradoria também afirmou que eles armazenavam armas, munições e materiais para a confecção de explosivos. A denúncia foi oferecida em junho de 1972.
Celso Lungaretti foi acusado de dirigir o setor de inteligência da VPR, onde as ações eram programadas. No inquérito, que antes disso ele havia integrado outras organizações subversivas e terroristas.
A denúncia se refere a atividades do início de 1968 até abril de 1970, quando Lungaretti foi preso e foi instaurado o inquérito.
Absolvição pelo STM
Por insuficiência de provas, o Conselho Permanente de Justiça, órgão da Justiça Militar encarregado de julgar soldados e civis, em 12 de setembro de 1974, absolveu, por unanimidade de votos, Celso Lungaretti, Isa Barreto de Salles, Edmundo Menezes Paredes Junior, Moises Cristino. Além disso, absolveu inocentou, por maioria de votos, José Jorge Dias Horta.
A ação penal foi suspensa em relação a Cristóvão da Silva Ribeiro, Flávio Roberto de Souza, Joaquim Pires Cerveira, José Ronaldo Tavares de Lira e Silva, Maria do Carmo Brito, Wellington Moreira Diniz e Yeda dos Reis Chaves, uma vez que haviam sido banidos do território nacional. O mesmo ocorreu em relação a Melcides Porcino da Silva em uma segunda decisão.
Isa Barreto Sales, José Jorge Dias Horta e Celso Lungaretti foram interrogados e apresentaram defesa, enquanto Edmundo Menezes Paredes, Albertina Rodrigues Costa e Moises Cristino foram declarados revéis. Lungaretti foi o único que confessou a participação na VPR.
A defesa do militante, comandada pelo advogado Mário de Figueiredo, alegou que as provas de que ele havia cometido crime eram muito frágeis. O criminalista também ressaltou que Lungaretti tinha 19 anos na época dos fatos. Por isso, havia sido vítima de doutrinação por pregadores de uma “ideologia criminosa e infame”.
O MPM interpôs apelação com base na alínea “b” do artigo 73 do Decreto-Lei 898/1969, que obrigava o órgão a recorrer de sentença que absolvesse o réu. A procuradoria também sustentou que havia indícios de que Lungaretti participava de atividades da VPR.
Por insuficiência de provas, o STM, por unanimidade, negou a apelação e manteve a absolvição de Celso Lungaretti, Isa Barreto Sales, Albertina Rodrigues Costa, Edmundo Menezes Paredes Júnior, Moysés Cristino e José Jorge Dias Horta.
O relator do caso, o ministro togado Nelson Sampaio, afirmou que a prova com relação aos acusados é frágil, como reconheceu a sentença. Por esse motivo, ele votou para manter a absolvição dos militantes.
Excetuados alguns dos casos dos militantes banidos do país, o de Celso Lungaretti foi considerado pelos ministros o mais grave, uma vez que ele confessou participação na VPR.
O ministro militar Sylvio Moutinho apontou que a absolvição de Lungaretti se fundamentou, “com certa incongruência”, em dois elementos: primeiro, no fato de ele ter se retratado, “abandonando a subversão”, e segundo, na insuficiência de provas – o que mais contribuiu para que o militante fosse inocentado.
“Quanto a esse Celso Lungaretti, que deu uma grande celeuma, inclusive em toda a imprensa do país, quando ele se retratou e serviu, data vênia, para que a sentença alegasse um dos motivos para absolvição, mas na verdade, fixa-se afinal, na ausência de provas”, ressaltou Moutinho.
Confissão mediante coação
Em entrevista concedida a Ciro Campelo e publicada no blog do militante em 2006, Celso Lungaretti contou que sua retratação de ter participado da VPR só veio após dois meses de tortura física e psicológica na prisão. “Como um zumbi, fui até a televisão e falei o que queriam que falasse”.
O militante relatou que, quando decidiu se retratar, estava extremamente debilitado – havia perdido 25 quilos (passou de 85 para 60 quilos) e rompido um tímpano após uma sessão de tortura, além de estar mentalmente exaurido.
As torturas só cessaram após o militante escrever a carta “abdicando da subversão” e se retratar em rede nacional. Pouco depois, Lungaretti foi solto, afirmou na entrevista.
O militante ainda relatou que, também sob fortes sevícias, entregou uma área de treinamento de guerrilha da VPR que estava desativada – não tendo, portanto, maiores implicações nas investigações militares contra o movimento. No entanto, isso o alçou à posição detraidor dentro da organização e dos movimentos de esquerda em geral.
Isso porque, pouco depois, a área ativa, situada no Vale do Ribeira, foi descoberta, levando à prisão de alguns dos integrantes e a certa desmobilização temporária do movimento. Lungaretti afirmou que isso se deu logo após vários integrantes do grupo terem sido presos.
Por esse motivo, disse, ele ficou de fora da lista de militantes que entraram na troca pelo embaixador da Alemanha, Ehrenfried von Holleben, sequestrado por integrantes da Ação Libertadora Nacional (ANL) e da VPR, em julho de 1970. Graças à ação, 40 presos políticos foram libertados pela ditadura e enviados para a Argélia.
Esclarecimento dos fatos
A verdade em relação à suposta traição de Celso Lungaretti à VPR veio à tona somente no final de 2004, 34 anos após sua prisão e interrogatório, depois de obter acesso a documentos secretos do II Exército que lhe permitiram reconstruir a cronologia dos eventos, inocentando-o da pecha de delator.
O relatório do comandante do II Exército na época, general José Canavarro Pereira, co-assinado pelo general Ernani Aytosa da Silva, confirma as informações de Lungaretti de que havia informado somente sobre a área de treinamento de guerrilha da VPR que estava desativada. O documento também mostra como a descoberta do campo ativo do movimento não se deveu às informações fornecidas pelo militante.
Segundo o ex-integrante da VPR, o comandante Carlos Lamarca e a cúpula do grupo tinham ciência de que ele não havia delatado, uma vez que nunca chegou a ser informado sobre localização do campo ativo. Porém, os líderes não comentaram a inocência de Celso Lungaretti para preservar nomes importantes da VPR que tinham realmente delatado companheiros, evitando, com isso, uma possível desestabilização do movimento revolucionário. Assim, Lungaretti diz ter sido usado como bode expiatório.
O historiador Jacob Gorender, que já havia desconfiado das acusações feitas pelos movimentos de esquerda contra Lungaretti na pesquisa para seu livro Combate nas trevas, de 1979, se dispôs a examinar as provas apresentadas pelo militante, ajudando a comprovar sua inocência com uma carta publicada em 2004 no jornal Folha de S.Paulo.
Com o tempo, Lungaretti descobriu quem havia delatado a localização do campo ativo de treinamento de guerrilheiros. Entretanto, preferiu manter-se em silêncio e não revelou a identidade do delator.
História de Celso Lungaretti
Jornalista, escritor e ex-preso político, Celso Lungaretti formou-se em Comunicação Social pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).
Começou a militar no movimento estudantil secundarista com 16 anos de idade, em 1966. Após o acirramento da repressão em dezembro de 1968, com a promulgação do Ato Institucional 5, entrou para a luta armada contra a ditadura militar, filiando-se à VPR. Em pouco tempo tornou-se o responsável pelo setor de inteligência do comando estadual em São Paulo do grupo.
Foi preso pelo DOI-Codi no Rio de Janeiro, em 16 de abril de 1970. Na cadeia, passou por torturas intensas ao longo de dois meses, até finalmente ser solto, após se retratar, em rede nacional, de suas atividades “subversivas”.
Devido a isso, conviveu com a alcunha de delator por 34 anos. Em 2005, lançou o livro Náufrago da utopia: vencer ou morrer na guerrilha aos 18 anos, em que conta sua trajetória de militância e as injustiças que passou até conseguir reconstruir a cronologia dos acontecimentos que demonstrava que não entregou companheiros da VPR.
Desde então passou a atuar como blogueiro, defendendo os ideais revolucionários, os direitos humanos e o exercício do pensamento crítico.