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Ministro ri de relato de tortura de opositor da ditadura, e STM o absolve porque não foi reconhecido por testemunhas mesmo tendo “características físicas incomuns”

19 de janeiro de 2023

Apelação 40.801(RJ)

O ministro do Superior Tribunal Militar (STM) Rodrigo Octávio riu das diferentes versões de testemunhas se o militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) Ottoni Guimarães Fernandes Júnior havia sido torturado ou não. E classificou o processo de “um verdadeiro romance”.

Fernandes tinha “características físicas incomuns”: quase dois metros de altura, magro e bastante míope. Dessa forma, se as testemunhas de um assalto a um banco no Rio de Janeiro não o reconheceram, o STM manteve sua absolvição, em sessão secreta ocorrida em 12 de fevereiro de 1976, por falta de provas de participação no ato.

O Ministério Público Militar (MPM) acusou os militantes da ALN Ottoni Fernandes, Antônio Sérgio de Mattos, Francisco Roberval Mendes e Reinaldo Guaranys Simões de participarem de ações para obter fundos para o grupo, fortalecendo-o. O objetivo seria “criar condições para a eclosão e desenvolvimento da guerra popular no Brasil”, segundo a denúncia do procurador Gastão Ribeiro, datada de 25 de abril de 1973.   

Fernandes, que usava o nome falso “Ricieri Dellova”, e Mattos, que tinha os codinomes “Fernando”, “Beto” e “Moreno”, foram acusados de promover um assalto à agência do Leblon, Zona Sul do Rio, do Banco do Comércio e Indústria e Minas Gerais. Na ação, ocorrida em 24 de junho de 1970, os dois roubaram 1.576 cruzeiros, um revólver e o boné do segurança, de acordo com a denúncia.

Em um apartamento alugado na Rua Marquês de Valença, na Tijuca, Zona Norte do Rio, foram encontrados documentos de Fernandes com o nome falso, conforme o MPM. Além disso, militares apreenderam um revólver e partes de um diário do revolucionário Che Guevara. A denúncia também alegou que ele escondeu, em sua casa, outro membro da ALN; contatos com integrantes da aliança; traduções de trechos de escritos do revolucionário chinês Mao Tsé-Tung; materiais e armas e a fabricação de coquetéis molotov para serem usados em atos de guerrilha urbana.

Mattos ficou escondido na casa de Mendes, apontou a denúncia. No local, foi encontrado o boné do segurança do banco que foi levado no assalto. Já Simões foi acusado de frequentar um cineclube no Leme, Zona Sul do Rio, onde ocorriam reuniões políticas – posteriormente fechado pelo padre da igreja do bairro. Lá, disse o MPM, ele passou a ter contato com integrantes da ALN. Para apoiar a organização, Simões, que era gerente de uma farmácia, fornecia amostras grátis de remédios para os militantes. Ele também emprestava o seu carro e guardava panfletos e “materiais subversivos”, conforme a denúncia.

Ottoni Fernandes, Antônio Sérgio de Mattos e Francisco Mendes foram acusados do crime de “praticar atos destinados a provocar guerra revolucionária ou subversiva”; estabelecido pelo artigo 25 do Decreto-lei 898/1969 e punido com 5 a 15 anos de prisão. A norma, revogada em 1978, definia os crimes contra a segurança nacional e a ordem política e social e estabelecia as regras para seu processo e julgamento.

A Fernandes e Mattos também foi imputado o delito de “assaltar, roubar ou depredar estabelecimento de crédito ou financiamento, qualquer que seja a sua motivação” (artigo 27 do Decreto-lei 898/1969, com pena de 10 a 24 anos de reclusão). O primeiro ainda foi denunciado pelo crime do artigo 46 da norma: “Importar, fabricar, ter em depósito ou sob sua guarda, comprar, vender, doar ou ceder, transportar ou trazer consigo armas de fogo ou engenhos privativos das Forças Armadas ou quaisquer instrumentos de destruição ou terror, sem permissão da autoridade competente”. A punição era de 5 a 10 anos de prisão.

O MPM acusou Reinaldo Simões do delito de “formar, filiar-se ou manter associação de qualquer título, comitê, entidade de classe ou agrupamento que, sob a orientação ou com o auxílio de governo estrangeiro ou organização internacional, exerça atividades prejudiciais ou perigosas à Segurança Nacional”. Tipificado pelo artigo 14 do Decreto-lei 898/1969, o crime era punido com reclusão, de 2 a 5 anos, para os organizadores ou mantenedores, e, de 6 meses a 2 anos, para os demais.

No entanto, o procurador Gastão Ribeiro pediu a suspensão da ação penal com relação a Mendes e Simões, uma vez que eles tinham sido banidos do Brasil.

Absolvição em primeiro grau

O Conselho Permanente de Justiça, órgão da Justiça Militar encarregado de julgar soldados e civis, recebeu a denúncia. A entidade julgou extinta a punibilidade de Antônio Sérgio de Mattos, por morte. Afinal, ele foi assassinado por agentes da repressão em uma emboscada promovida em 1971, em São Paulo. Além disso, suspendeu a ação penal contra Francisco Mendes e Reinaldo Simões, que estavam exilados.

As testemunhas foram ouvidas, e algumas delas foram substituídas por dois oficiais. Estes, porém, nada sabiam do que fora imputado a Ottoni Fernandes. Os militares também disseram que o réu não tinha sido torturado.

Inicialmente, Fernandes negou participação no assalto ao banco. Após ser torturado pela equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury, ele mudou sua versão e entregou pistas de um “ponto” (como eram chamados os locais de reunião dos opositores ao regime miliar) falso, armado por ele próprio com antecedência para despistar os militares em caso de prisão.

A defesa de Fernandes, comandada pelo advogado Técio Lins e Silva, ressaltou que seu depoimento havia sido prestado após coações e sevícias. Ou seja, não tinha validade jurídica.

O Conselho Permanente de Justiça, em 18 de fevereiro de 1975, absolveu Ottoni Fernandes por falta de provas de que ele havia praticado crimes. O relator do caso, auditor Teófilo Miranda, apontou que os dois oficiais ouvidos como testemunhas disseram apenas ter presenciado as declarações do acusado, mas não souberam esclarecer outras circunstâncias dos supostos delitos.

O Ministério Público Militar apelou da sentença. Em contrarrazões, o advogado Técio Lins e Silva destacou que as peculiaridades físicas de Fernandes o tornariam facilmente reconhecível, se ele tivesse participado do assalto.

“Ressalta-se que Ottoni, caso participasse do assalto, seria facilmente lembrado, por apresentar características físicas incomuns. Trata-se de um homem com dois metros de altura, magro e que tem um avançado grau de miopia”, apontou o advogado, lembrando que Fernandes não foi identificado pelas testemunhas.  

No Superior Tribunal Militar, Ottoni Fernandes foi absolvido em sessão secreta, cujos áudios não foram disponibilizados. Há apenas a parte da leitura do relatório, feita pelo ministro Amarilio Salgado, e um breve comentário do ministro Rodrigo Octávio.

“Esse processo é um verdadeiro romance. Porque ele se originou de peças extraídas de outro, pelo qual Ottoni Guimarães Jr. já havia sido condenado à prisão perpétua, convertida para 15 anos e aqui pelo STM, pela desclassificação do delito do artigo 27 combinado com o artigo 50. foi reduzida para 6 anos. Então daí se originou o atual processo, onde o réu é acusado de integrar os quadros da ALN”, destacou Octávio.

O ministro ressaltou que uma testemunha, que ficou presa junto com o militante, confirmou que “Ottoni, embora com seus dois metros de altura, foi seviciado”. Quem praticou a tortura, indicou, foi o delegado Sérgio Fleury, o comandante e agente do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) Amorim do Vale e o sargento Teixeira, do Exército. Porém, outra testemunha negou que ele tivesse sido vítima de maus tratos.

“É uma confusão bem confusa essa (risos). Como disse o ministro Amarílio, há essa rasura aí do MP, essa coisa toda, e a reforma da sentença pedida pelo procurador não me parece encontrar sentido, por falta de provas. Então o Conselho de Justiça, por unanimidade de votos, resolveu absolver o acusado”, afirmou Rodrigo Octávio.

História de Ottoni Fernandes

Ottoni Fernandes foi um militante de esquerda que atuou na resistência à ditadura militar (1964-1985). Em São Paulo, ele entrou na militância pelo movimento estudantil na Universidade de São Paulo, onde estudava Física. Posteriormente, ingressou na Ação Libertadora Nacional, no Grupo Tático Armado. Em 1968, já vivia na clandestinidade.

Após o líder da ALN, Carlos Marighella, ser assassinado por agentes da repressão em São Paulo, Fernandes foi viver clandestinamente no Rio de Janeiro. No bolso de Marighella, foi encontrado o endereço de um irmão de Fernandes que não tinha ligação com a resistência, mas que abrigava alguns militantes em sua casa em Curitiba. Ele foi preso, e militares passaram a perseguir Ottoni Fernandes.

Fernandes foi preso pela equipe do delegado Fleury e por militares do Centro de Informações da Marinha (Cenimar) em 1970, no bairro da Tijuca, Zona Norte do Rio, onde morava. Ele foi torturado em uma casa em São Conrado, Zona Sul da capital fluminense.

“O fato é o seguinte: eu comecei a ser torturado, ele [Fleury] sabia exatamente o que eu fazia na organização, sabia com detalhes, um pouco mais tarde eles me levaram para um quarto embaixo da casa, com piso inferior, embaixo da escada também de madeira. Tinham pelo menos mais dois quartos, eu fui torturado com pau de arara, choque, afogamento, todos os serviços que eles faziam, eu fiquei alguns dias nessa casa. Eu ouvia gritos no quarto ao lado, era outro companheiro que estava sendo torturado. Pelo que eu me lembro esse piso não eram em balanço, era em cima de cimento já, mas aí tinha alguém sendo torturado. Quem eu identifiquei, além do Fleury que estava me torturando, o comandante Amorim do Vale do Cenimar, em alguns momentos eles tiraram a minha venda. Eu achei que eles iam me matar quando tiraram o capuz e deixaram todos serem vistos”, relatou Fernandes à Comissão Nacional da Verdade (CNV), em 2012. 

Ele contou que havia um médico na casa que, de tempos em tempos, avaliava se a tortura poderia prosseguir e aplicava injeções para os opositores da ditadura aguentarem as sevícias.

De acordo com o militante da ALN, na segunda ou terceira noite, os agentes da repressão o colocaram em um dos quartos do imóvel algemado em uma cama ao lado de Eduardo Leite, conhecido como “Bacuri”, também integrante da aliança. Eles não se conheciam.   

Quando os militares saíram do recinto, “Bacuri fez sinal para mim de silêncio e apontou como se tivesse um gravador embaixo. Nós não falamos nada, passados alguns minutos eles nos tiraram e voltaram a nos torturar”.

Antes de ser preso e já prevendo essa possibilidade, Ottoni Fernandes comprou alguns envelopes e escreveu, na aba interna de um deles: “25, 26 e 27, 19h30min, 307 restaurante Bambi, Alameda Santos, revista veja, lápis amarelo”. Também anotou uma senha e uma contrassenha: “Você trabalha na [trecho incompreensível do depoimento dele à CNV]?” “Não. Eu trabalho na 309 EBM”. O militante guardou o envelope no guarda-roupas de seu quarto. 

Quando o prenderam, os agentes da repressão levaram quase tudo o que tinha em seu apartamento na Tijuca. No quarto dia em que estava na casa em São Conrado, Fernandes mencionou os envelopes. Os militares foram abrindo-os até que acharam o que continha a localização do suposto ponto. “Imediatamente eles pararam de nos torturar”, disse Fernandes. 

Em seguida, chegou uma viatura dos militares. Bacuri, que estava bem debilitado pelas sevícias, foi levado ao hospital da Ilha das Cobras, região portuária do Rio. No fim de 1970, ele foi assassinado pela equipe de Fleury no Guarujá (SP).

Já Fernandes foi encaminhado ao 1º Distrito Naval, na Praça Mauá, na mesma área. Conforme relatava, em sede de inquérito policial militar, as agressões que havia sofrido, o comandante ordenava ao escrivão que omitisse as informações nos documentos oficiais. Mesmo após o depoimento, ele voltou a ser agredido.

Em outro processo, Ottoni Fernandes foi condenado à prisão perpétua por denunciar os homicídios de Bacuri e de Benjamim de Oliveira e as torturas praticadas por agentes do Estado. A pena foi reduzida para 30 anos de reclusão em segunda instância e para 15 anos pelo STM. Por fim, a Corte diminuiu a penalidade para sete anos, e ele ficou seis anos preso, majoritariamente nos presídios de Ilha Grande e Ilha das Flores, ambos no estado do Rio.

Jornalista, Ottoni Fernandes trabalhou em veículos como a Gazeta Mercantil, onde chegou a ser diretor-geral. Foi redator-chefe da revista Istoé e editor da Exame. Além disso, Fernandes foi diretor de Comunicação do Instituto Lula, secretário executivo da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República de 2007 a 2010 e diretor internacional da Empresa Brasil de Comunicação (EBC).

Ele morreu no fim de 2012, após sofrer um infarto fulminante quando passava férias com a família na Patagônia argentina. O ex-militante relatou sua história no livro “O baú do guerrilheiro” (Record).

Apelação 40.801(RJ)



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