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Memórias dos anos sombrios da ditadura militar no Brasil: o julgamento de Luciano Roberto Rosas de Siqueira e Josefa Lúcia de Andrade

7 de agosto de 2023

Casal de estudantes é absolvido da acusação de reorganizarem Ação Popular em caso que trouxe à tona denúncias de tortura de militantes estudantis no nordeste que não foram investigadas pelo STM

Luciano Roberto Rosas de Siqueira, Josefa Lúcia de Andrade foram denunciados no artigo 43 do Decreto-Lei nº 898 de 1969 de reorganizar partido ou organização dissolvida ou prescrita por força da lei, sendo a organização a Ação Popular (AP). A única prova contra os réus eram testemunhos colhidos no inquérito e material “subversivo” apreendido com os acusados. Em juízo, os réus negaram e Jorge de Aguiar Leite denunciou a tortura sofrida. O Conselho de Justiça absolveu os réus, mas o Ministério Público Militar (MPM) apelou ao Superior Tribunal Militar (STM) para que os réus ainda que com prova insuficiente para que a sentença fosse alterada para a condenação. O STM negou provimento, mas não investigou as denúncias de tortura

Josefa Lúcia de Andrade, de 25 anos, estava grávida de nove meses. Ainda assim, embora o auditor em exercício Alzir Carvalho Praga tivesse permitido sua saída da sala de audiências, preferiu permanecer durante toda a sessão. Era dia 25 de novembro de 1975, em Recife (PE), quando ela e seu marido, o estudante Luciano Roberto Rosas de Siqueira, de 29 anos, foram julgados pela acusação de tentar reorganizar a Ação Popular (AP).

Mais do que um partido, a Ação Popular – que teve entre seus fundadores o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho – era um “movimento político”, organizado em 1962, fruto de uma evolução em direção à esquerda que setores da Ação Católica – em especial a JUC (Juventude Universitária Católica) – viviam desde meados dos anos 1950 e que, com o golpe militar, fora mantido na ilegalidade.

Luci e Luciano em 2013.

Luci e Luciano em 2013.

Josefa e Luciano haviam sido denunciados com base no artigo 43 do Decreto-Lei nº 898 de 1969, dispositivo que definia crimes contra a segurança nacional e a ordem política e social. Segundo a acusação, ambos teriam ingressado na AP em Recife, em 1968, ano em que se casaram e teriam exercido o comando regional da organização nos estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. As evidências apresentadas contra eles eram testemunhos obtidos durante o inquérito e material considerado “subversivo” – alguns panfletos e livros –, apreendido em posse dos réus.

Foram quatro horas de audiência. A advogada Mércia Albuquerque atuou na defesa do casal. Dois anos depois, em 1977, o Ministério Público Militar (MPM), junto à auditoria da 7ª Circunscrição da Justiça Militar (CJM), apelariam da decisão ao Superior Tribunal Militar (STM).

A história do julgamento representa um capítulo importante da luta política contra a ditadura militar e pelos direitos humanos no Brasil. O caso trouxe à tona denúncias de tortura durante o depoimento da testemunha Jorge de Aguiar Leite, evidenciando os abusos cometidos pelo regime militar.

Envolvimento com a política e fuga pelo nordeste

Nascido em Natal (RN), no dia 5 de setembro de 1946, Luciano mudou-se para Recife aos 14 anos. Durante a adolescência na capital pernambucana, teve influência importante de um tio, Paulo Rosas, professor universitário de psicologia, um “homem à esquerda, católico, muito amigo de Paulo Freire”, conforme contou Luciano décadas depois do caso, em relato publicado no livro “Repressão e Direito à Resistência: Os Comunistas na luta contra a ditadura (1964-1985)”. Vivendo nesse ambiente, o jovem Luciano logo se engajou no Movimento de Cultura Popular (MCP), onde deu início a sua militância.

Enquanto cursava medicina na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Luciano liderou movimentos estudantis nos turbulentos anos da década de 1960. Em 1967, ingressou na AP, época em que conheceu Josefa, também militante estudantil, com quem começou a namorar.

As atividades políticas dos estudantes de todo o Brasil chamaram a atenção das autoridades repressoras e medidas arbitrárias abalariam o país. O Ato Institucional Número 5 (AI-5), no final de 1968, fechou o Congresso Nacional e as assembleias legislativas dos estados, permitiu a cassação de mais de 170 mandatos, instituiu a censura prévia e deu ao presidente-ditador a possibilidade de intervenção nos estados e municípios. Tornaram-se ainda ilegais as reuniões políticas não autorizadas pela polícia e toques de recolher tornaram-se frequentes. Em 1969, o decreto-lei 477 proibiu manifestações de caráter político e atividades consideradas subversivas nas universidades. Estudantes foram expulsos das universidades e professores, demitidos.

Luciano e outros colegas de militância estudantil tiveram seus direitos de estudante cassados por três anos. Permanecer no Recife, naquelas condições, era insustentável. O casal resolveu, então, deixar a cidade. Ele tinha 24 e ela 20 anos. De 1970 a 1974, fugindo da perseguição, viveram em diversas cidades pelo interior do nordeste, como Campina Grande (PB) e Santana do Ipanema (AL), vendendo roupas como ambulantes para sobreviver.

Mais comunicativa, era Josefa quem construía as relações do casal pelos lugares em que passavam. Luci, como é conhecida, era filha de um casal de camponeses que se tornaram operários têxteis. Ainda cedo, a mãe se separou do marido. Depois ficou viúva e criou sozinha as quatro filhas pequenas. Luci, a caçula, passou a infância e juventude vendendo cocada e doce na porta da fábrica em que a mãe trabalhava.

Luciano foi preso no Crato (CE), em abril de 1974. Sete dias depois, Luci também foi detida. Ambos foram transferidos para o Recife.

A apelação

O julgamento, ocorrido em 25 de novembro de 1975, em Recife, absolveu o casal por falta de provas. O MPM, junto à auditoria da 7ª CJM, contudo, apelaram da decisão ao STM. O julgamento da apelação nº. 41.178 foi realizado em 26 de setembro de 1977. O relator da apelação foi o Ministro Dr. Georgenor Acylino de Lima Torres, enquanto o revisor foi o Ministro Tenente-Brigadeiro do Ar Deoclécio Lima de Siqueira.

Denúncias de tortura

O caso trouxe à tona denúncias de tortura. Luciano alegou ter sido submetido a sevícias físicas e psicológicas durante o período em que esteve preso. Já uma das testemunhas, Jorge de Aguiar Leite, afirmou que o depoimento presente nos autos não correspondia à realidade e denunciou ter sofrido tortura durante o período de inquérito.

Jorge de Aguiar Leite, conhecido como “Jorjão”, foi uma figura marcante no movimento secundarista e na luta pela liberdade durante a ditadura. Seu depoimento diante da Comissão Estadual da Verdade da Paraíba, em agosto de 2013, revelou uma história de coragem e resistência em tempos sombrios.

Jorge de Aguiar Leite durante audiência pública da Comissão Estadual da Verdade e da Preservação da Memória do Estado da Paraíba, em agosto de 2013.

Nascido em 1940, em Campina Grande, Jorge ingressou na Faculdade de Ciências Econômicas de Campina Grande em 1968. Sua atuação engajada nas manifestações estudantis levou à suspensão de sua matrícula com base no Decreto 477, que também havia atingido Luciano.

Jorjão foi preso em janeiro 1973, acusado de envolvimento em atividades subversivas. Conforme relatou à Comissão décadas depois, nesse período, foi submetido a violentas sessões de tortura física e psicológica na chamada “Granja do Terror”, em sua cidade natal. Posteriormente, ele foi transferido para o Recife, onde passou pelo DOI-CODI e pelo DOPS. Foi solto em março do mesmo ano.

As atrocidades que Jorge viveu na prisão foram terríveis. Choques elétricos na orelha, pé e até mesmo no órgão genital eram comuns em suas sessões de interrogatório. Os agentes questionavam-no sobre as pessoas ligadas à AP e ao Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) – uma das cisões ocorridas no Partido Comunista Brasileiro (PCB) após 1964.

O veredito

No julgamento da apelação, o relator Ministro Dr. Georgenor Acylino de Lima Torres destaca a fragilidade da apelação.

“O próprio órgão de acusação arrazoa e diz assim: ‘Opinamos no sentido que seja julgada procedente a denúncia e, em consequência, condenados os acusados no incurso do artigo 43, ou, até mesmo, por desclassificação pelo artigo 14′. Isso é a confissão da insegurança. O órgão acusador não tinha mais aonde se agarrar: não pode apresentar uma prova, não pode dizer que eles tinham confessado, porque a confissão foi retratada; não tinha fato material apreendido (…) É a acusação que se confessa em dificuldade de prova.”

Ele segue relembrando as afirmações de Luciano em juízo:

“Ao ser questionado se é verdadeira a imputação, Luciano disse que não considera de forma alguma como verdadeira a acusação que é imputada a denúncia, porque não participou de nenhuma das atividades nela narrada; que não pertence à organização denominada Ação Popular, nem tampouco tentou reorganizá-la (…) Atribui como motivo do seu envolvimento no processo sua participação entre os anos 1967 e 1969 como membro do Diretório Acadêmico da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pernambuco.”

Ao final do julgamento, os Ministros do Tribunal negaram provimento ao apelo do MPM, confirmando a sentença de Luci por unanimidade e, no caso de Luciano, pela maioria dos votos. O Ministro Gen. Ex. Rodrigo Octávio Jordão Ramos sugeriu que as denúncias de tortura fossem apuradas. O STM, contudo, nunca investigou as acusações.

Luci e Luciano em 2013.

Luciano retornou à Faculdade de Medicina da UFPE em 1967. Como médico, trabalhou em projetos de Saúde Comunitária e fez pós-graduação em saúde pública. Foi deputado estadual pelo PCdoB, sendo eleito em 1982. Depois, participou de mobilizações pela Anistia, Diretas Já, Constituinte de 1988 e pelo movimento do Fora Collor, que culminou na renúncia do ex-presidente Presidente Fernando Collor de Mello. Destacou-se também nas articulações para unir a esquerda em Pernambuco.

Foi vice-prefeito de Recife em dois períodos: entre 2000 e 2008 e, depois, de 2013 a 2016. Também foi eleito vereador para o mandato de 2009-2012 com a então segunda maior votação da história da cidade. Em 2010, foi eleito deputado estadual.

É casado até hoje com Luci, com quem teve filhos.

Jorge de Aguiar Leite faleceu em João Pessoa, em novembro de 2015, deixando um legado de resistência e dedicação à memória de um período sombrio da história brasileira.



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