
DOI-Codi vai “falar”
Escavações buscam novas revelações dos porões da ditadura
O prédio do antigo DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna do IIº Exército) pode revelar segredos, reatualizar a história da ditadura civil-militar de 1964 e de seu centro paulista de tortura e morte. Escavações realizadas entre os dias 2 e 14 de agosto de forma, aliando três linhas da arqueologia, descobriram objetos, inscrições e supostos vestígios de sangue humano no local. O material foi enviado à Unicamp, onde será sendo analisado. Entre 1969 e 1975, pelo menos 56 opositores do regime, ditos “subversivos” pela ditadura, foram torturados e assassinados sob custódia do estado brasileiro.
O trabalho não possui apenas valor científico. “Trata-se de uma atividade de enorme importância, considerando o momento político e nossa frágil democracia ligada à pouca apuração e nenhuma responsabilização do que aconteceu no período mais recente da ditadura”, afirmou Deborah Neves, pós-doutoranda em história pela Unifesp, coordenadora das escavações e integrante do Grupo de Trabalho (GT) Memorial DOI-Codi.
O apoio de entidades públicas estaduais foi decisivo para o sucesso das escavações. A Universidade de Campinas (Unicamp) empenhou R$ 90 mil para viabilizar a pesquisa e a difusão da arqueologia pública. Já o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) disponibilizou R$ 89 mil para realizar a pesquisa forense. O Serviço Social do Comércio (Sesc) viabilizou a vinda a São Paulo da historiadora e especialista no tema ditadura Samantha Quadrat, da Universidade Federal Fluminense (UFF). Também se uniram à equipe professores associados da Universidade Federal de Santa Catarina e da USP.
Botões, frascos, calendário
As equipes em campo foram compostas ainda por 25 estudantes de várias disciplinas. Em todo o espaço do prédio houve escavações no solo e raspagem em paredes. Botões, solas de sapato, pentes, pedaços de cerâmica, vidros de tinta utilizados para recolher impressões digitais dos presos e até papéis de bala vieram à tona. Em uma das paredes de um banheiro surgiram inscrições do que parece ser um calendário. Material biológico – supostamente relativo a sangue – foi identificado no chão de algumas salas.
Segundo a história pela Unifesp, o objetivo nunca foi encontrar corpos, mas pequenos objetos do cotidiano que ajudassem a contar a história do DOI-Codi: “Queremos montar esse quebra-cabeças. Contar a história de como era a vida nesse espaço, como se deram as alterações produzidas no edifício e por quê ocorreram. É um grande resgate histórico, sociológico, comunitário. Fizemos uma ‘entrevista’ com o prédio”.
União inédita
Para tanto, contou o próprio ineditismo formal dos trabalhos. Pela primeira vez no Brasil se reuniram no mesmo sítio equipes de três áreas. A arqueologia histórica – liderada por Andres Zarankin, professor do departamento de Antropologia e Arqueologia da UFMG, realizou as escavações na busca de pequenos objetos.
Arqueólogos forenses, dirigidos pela professora Cláudia Regina Plens, da Unicamp, buscaram vestígios da ocupação e do uso que foi dado ao prédio (mensagens escritas que endossam os relatos de prisioneiros, provas materiais sobre violação de direitos humanos, e sangue).
A arqueologia pública, sob supervisão da professora Aline Carvalho, da Unicamp, visou aproximar a arqueologia da sociedade através de comunicados, visitação pública aos canteiros e obras e a transparência quanto à destinação da verba investida no projeto.
Todos os materiais descobertos foram levados ao laboratório de Arqueologia Pública da Unicamp. Lá, serão produzidos relatórios que resultarão em artigos, livros e cursos. Uma das hipóteses é de que haja uma itinerância pelo interior do estado com cursos de formação.
Memorial
Deborah também planeja, com base em suas pesquisas acadêmicas, montar um memorial virtual que reúna não apenas as informações coletadas, mas uma coleta de testemunhos feitas desde 2021. A reunião dos documentos já conhecidos consta, atualmente, do Arquivo do Estado. “Tudo isso pode ser acervo. O objetivo final á a constituição do Memorial do DOI-Codi”, diz a historiadora.
Os primeiros impulsos para realizar as escavações remontam há mais de seis anos, quando Deborah – ex-técnica do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) – realizava pesquisas para seu mestrado envolvendo lugares de memória no Brasil, na Argentina e na Alemanha, países que passaram por ditaduras. Em 2018, a criação do GT Memorial DOI-Codi deu origem a um grupo de pesquisa arqueológica.
A preservação histórica e arquitetônica do prédio do antigo DOI-Codi, por sua vez, data de 2010, quando o ex-preso político Ivan Seixas, à época presidente do Conselho do Núcleo Memória, solicitou ao Condephaat o tombamento do local. A aprovação ocorreu quatro anos depois, fruto da relatoria realizada por Deborah, que ressaltou a relevância histórica e social do espaço para a memória política brasileira.

Esta é a primeira parte de uma série de reportagens sobre o antigo DOI-Codi
+ Leia a segunda parte: Sobreviventes aprovam resgate histórico de escavações no antigo prédio do DOI-Codi em São Paulo
+ Leia a terceira parte: A “Casa dos horrores”