
Sobreviventes aprovam resgate histórico de escavações no antigo prédio do DOI-Codi em São Paulo
As escavações realizadas entre os dias 2 e 14 de agosto nas dependências do antigo prédio do antigo DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna) do IIº Exército são consideradas essenciais para descobrir novos fatos, preservar a história dos crimes da ditadura civil-militar de 1964 e levar seu conhecimento às novas gerações.
A avaliação é compartilhada por dois sobreviventes da chamada “Casa da Vovó”. “O resgate da memória do DOI-Codi é importante, principalmente no momento em que enfrentamos uma onda de retrocessos políticos”, afirmou Maurice Politi, diretor do Núcleo de Preservação da Memória Política (NM) e um dos fundadores do Grupo de Trabalho Interinstitucional (GT DOI-Codi).
Para o ex-vereador e ex-deputado Adriano Diogo (PT), presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva e reconhecido militante pelos direitos humanos, as buscas por novas facetas da vida e da morte no local “conseguiram provar que o DOI-Codi não era prisão de terroristas, mas de seres humanos”.
Politi, ex-estudante de jornalismo da USP e militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), foi preso pelos militares em 1970, aos 21 anos. Condenado a quatro anos de prisão, passou por nove diferentes prisões e 36 celas em todo o estado – incluindo o DOI-Codi. Nelas, foi interrogado e torturado.
Centro de barbárie
Segundo ele, um dos pontos altos dos 15 dias de trabalhos de escavação relaciona-se à visibilidade oferecida a fatos ocorridos entre 1969 e 1975 (quando mais havia prisões, torturas e mortes de militantes da esquerda): “O significado do prédio é de vital importância. Não porque vai se achar um corpo, mas porque o prédio representa o centro de barbárie que imperava. Os suplícios, o pavor que era, para todos nós, quando vinha um carcereiro e dizia: ‘Fulano, vamos subir!’. Subir era pau, interrogatório. É importante transmitir isso para as gerações mais jovens, com a materialidade do prédio tal como ele está – porque um dia vai virar memorial, vai ter que mudar”. Desde 2014, quando conquistaram o tombamento do prédio do DOI-Codi, entidades em defesa dos direitos humanos, ex-presos políticos, historiadores e ativistas passaram a lutar pela transformação do local em Memorial.

Maurice Politi, diretor do Núcleo de Preservação da Memória Política (NM) e um dos fundadores do Grupo de Trabalho Interinstitucional (GT DOI-Codi). Foto: Arquivo Pessoal.
A descoberta pelos arqueólogos de vestígios do que poderia ser um calendário em uma parede do banheiro do primeiro andar do prédio também surpreendeu o antigo “hóspede” do “Hotel Tutoia”, uma referência ao endereço do destacamento, no 921 da rua Tutoia. “A gente riscava calendários nas paredes das celas. Por que se riscou um calendário nas paredes do banheiro? Isso coloca novas questões. Será que havia gente que era presa por um tempo no banheiro? Banheiros também funcionavam como celas?”
Polici salienta que, ao contrário do ocorrido no Uruguai, nenhum prisioneiro morto foi enterrado nas dependências de instalações militares. Porém, mostra-se intrigado com a coleta, pelas equipes que trabalharam nas escavações, de vestígios do que poderia ser sangue humano. “Creio ser uma coisa muito remota, mas, se forem encontrados resquícios de sangue, e comparações através de exames de DNA de familiares de presos provarem algum parentesco, poderemos chegar a algum morto. E isso poderá levar a uma ação judicial, como ocorreu na Argentina”, afirma.
“Mérito fantástico”
Adriano Diogo iniciou sua militância política em 1963, ainda como estudante secundarista. Foi preso em 1973, quando cursava geologia na USP. Passou por três cárceres do estado de São Paulo. Primeiro pelo DOI-Codi, onde sofreu torturas e permaneceu por três meses até ser transferido para o Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops-SP).

Adriano Diogo (PT), presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva e reconhecido militante pelos direitos humanos.
Além da relevância representada pelas pesquisas de campo, Diogo ressalta a importância do trabalho desenvolvido pela historiadora Deborah Neves, coordenadora das escavações e integrante do GT Memorial DOI-Codi: “Essa nova geração, com esse trabalho de antropologia, está conseguindo uma mobilização que nós não conseguimos. Tem um mérito fantástico!”
O ex-deputado explica que o DOI-Codi era um centro de desaparecimento forçado, de tortura. Mais do que um local importante para a ditadura, segundo ele, o local possuía status bem mais elevado se comparado aos demais destacamento de Operações de Informações do Brasil. Para Diogo, o destacamento da capital paulista, principalmente depois da ascensão do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, “cumpria a função de comando nacional da repressão. O DOI era um estamento militar completo, um complexo militar enorme. Possuía inteligência militar, equipe de interrogadores, pessoal que ia para a rua”.
Também chama a atenção do presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva a possibilidade, mesmo que remota, de ter sido achado uma derivação de sangue nas paredes do destacamento. “Isso deu uma sobrevida à história. Mais ainda: o fato de ela conseguir derrubar a versão de que só naqueles dois prédios [havia prisões]. Ela conseguiu mostrar que o prédio da delegacia [36º DP], era lugar do terror”.
A exemplo de Politi, Diogo também demonstra preocupação que os retrocessos políticos possam atrapalhar novas pesquisas sobre as mazelas provocadas pela ditadura: “Temos um secretário de Segurança Pública de São Paulo [Guilherme Derrite] bolsonarista, um governador [Tarcísio de Freitas] bolsonarista. Bolsonaro venceu as eleições presidenciais no estado de São Paulo.
Esta é a segunda parte de uma série de reportagens sobre o antigo DOI-Codi
+ Leia a primeira parte: DOI-Codi vai “falar”
+ Leia a terceira parte: A “Casa dos horrores”