Devido a palestras a metalúrgicos e estudantes, STM mantém condenação de militante do MDB por crime de propaganda subversiva
O uso da palavra em locais públicos é um meio de comunicação social. Com esse entendimento, o Superior Tribunal Militar manteve, em 1978, a condenação da professora primária e militante do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) Rosalice Magaldi Fernandes Parreira pelo crime de propaganda subversiva por quaisquer meios de comunicação social.
Rosalice havia proferido palestras a metalúrgicos e estudantes que, na visão do tribunal, incitavam a luta de classes. As testemunhas existentes negaram, no entanto, que os discursos tivessem sido subversivos.
O crime estava previsto no inciso I do artigo 45 da Lei de Segurança Nacional (Decreto-Lei 898/1969). O dispositivo caracterizava propaganda subversiva como a utilização de “quaisquer meios de comunicação social, tais como jornais, revistas, periódicos, livros, boletins, panfletos, rádio, televisão, cinema, teatro e congêneres, como veículos de propaganda de guerra psicológica adversa ou de guerra revolucionária ou subversiva”. A pena era de 1 a 3 anos de reclusão, ou 2 a 4 anos, caso representasse ameaça à segurança nacional.
No julgamento, oministro militar Reynaldo de Almeida defendeu a “presunção de culpa” de opositores da ditadura militar. Já o ministro togado Jacy Pinheiro disse que Rosalice defendia um feminismo que queria “colocar o homem abaixo” e comemorou o fato de que mulher ainda “não celebra missa falando em religião e não comanda exército, afora o caso de Joana d’Arc”.
Palestras a operários
O Ministério Público Militar (MPM) denunciou Rosalice por propaganda subversiva em 12 de julho de 1976, pedindo ainda a combinação com o artigo 49, inciso I, da Lei de Segurança Nacional, que agrava a pena para funcionários públicos.
Rosalice foi presa no dia 29 de abril de 1976, no interior de uma gráfica em Niterói (RJ). Foram apreendidos com ela oito pacotes de papel pardo, cada um com cerca de dois mil exemplares de um boletim do Departamento Trabalhista do MDB de Volta Redonda (RJ). O MPM afirmou que Rosalice era coordenadora e redatora de tal boletim e que leu, em reunião que contou com a presença de servidores da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), manifesto de sua autoria intitulado Duas palavras sobre tua luta, com o intuito de “provocar nos ouvintes animosidade contra o governo do presidente Geisel e contra o regime vigente”.
Segundo o MPM, também foram apreendidos na residência de Rosalice, em Niterói, documentos como o boletim O povo trabalhador está sofrendo e A participação da mulher, que também teriam sido escritos pela militante e lidos por ela em reunião só de mulheres no Departamento Trabalhista do MDB de Volta Redonda.
A polícia ainda apreendeu, na casa do sogro de Rosalice, em Niterói, faixas com mensagens consideradas subversivas por autoridades da ditadura militar. Em algumas delas, havia frases como “Liberdade para os presos políticos”; “Restauração das liberdades individuais”; “Estudantes e trabalhadores contra o arrocho salarial”; e “Respeito aos direitos humanos, fora a violência policial”.
Rosalice confessou no inquérito policial e em juízo, que proferiu as palestras. Porém, negou que o conteúdo dos discursos fosse o mesmo do material apreendido e que fosse de teor subversivo. A acusada também alegou que estava exercendo atividade política legal, já que o MDB era o único partido de oposição permitido por lei à época.
As testemunhas de defesa disseram que não consideraram os discursos subversivos. Entre elas, estavam dois senadores do MDB, Amaral Peixoto e Nelson Carneiro. Além disso, o sogro de Rosalice afirmou não saber como o material apreendido em sua casa foi parar lá.
O Conselho Permanente de Justiça (CPJ), órgão da Justiça Militar encarregado de julgar soldados e civis, recebeu a denúncia e, em 23 de junho de 1977, condenou, por maioria de votos, Rosalice à pena de 1 ano e 6 meses de reclusão por propaganda subversiva, delito agravado pelo fato ser funcionária pública.
Apesar de o material apreendido não ter sido divulgado, o que não caracterizaria o crime, o CPJ entendeu que Rosalice difundiu seu conteúdo nas palestras que proferiu no Departamento Trabalhista do MDB de Volta Redonda.
A defesa de Rosalice apelou da sentença, alegando não haver provas de que ela estaria subvertendo a ordem com suas ações. Pediu, assim, sua absolvição.
Palavra como meio subversivo
Em sessão pública do STM de julgamento da apelação, ocorrida em 3 de março de 1978, o ministro militar Rodrigo Octávio questionou se o caso de Rosalice Parreira se enquadraria como propaganda subversiva. Isso porque, em sua visão, ela não usou qualquer dos meios de comunicação social descritos no inciso I do artigo 45 da Lei de Segurança Nacional, que tipificava o crime.
“Com efeito, utilizou-se da palavra em recinto fechado e pelas conotações que servem […] como instrumento de comunicação do relacionamento humano, não pode ser considerado como veículo de comunicação social. […] Não está previsto no artigo 45 este meio de comunicação, a palavra”, afirmou o ministro.
O relator do caso, ministro togado Lima Torres, discordou da visão de Rodrigo Octávio e citou como exemplo o caso de um padre que foi condenado por ter feito um sermão considerado subversivo, num local público, a Igreja Altinópolis, na cidade de mesmo nome no interior de São Paulo.
Rodrigo Octávio disse que não era possível comparar o caso do padre ao de Rosalice, pois o discurso desta foi direcionado a um público específico, e não proferido num ambiente aberto a todos, como uma igreja. Por isso, não caracterizaria a utilização de comunicação social para propagar ideias subversivas.
A despeito disso, a maioria dos ministros do STM a linha de Lima Torres. No entendimento do ministro togado Gualter Godinho, a palavra oral também era um meio de comunicação social, de modo que as palestras proferidas por Rosalice poderiam se enquadrar no delito de propaganda subversiva. Segundo Godinho, isso ocorria “em razão da natureza e da essência do homem, animal eminentemente social, no dizer de Rousseau, que tem a palavra o seu mais antigo meio de comunicação social”.
O ministro militar Dioclécio Siqueira complementou o ponto de Godinho dizendo que “os grandes comunicadores sociais da humanidade, entre eles Lenin, Hitler, Mussolini e tantos outros, usaram e abusaram da palavra para manipular as grandes massas”. Dessa forma, a questão, para ele, era se as palestras haviam sido proferidas em ambiente público ou não.
Apesar da falta de consenso entre os ministros a esse respeito, na visão de Siqueira, os dois locais em que a militante fez declarações de “certa gravidade” — um em Niterói, para estudantes, e outro na inauguração do Departamento Trabalhista do MBD em Volta Redonda — eram recintos públicos. Por esse motivo, o ministro considerou que os discursos de Rosalice configuravam comunicação social e, com isso, poderiam ser enquadrados como propaganda subversiva.
Presunção de culpa
Alguns dos ministros do STM ainda questionaram se os fatos imputados de Rosalice se enquadravam como propaganda subversiva visando a uma guerra psicológica, subversiva ou ideológica.
De acordo com o ministro Rodrigo Octávio, o exame das provas não poderia levar à conclusão de que Rosalice tivesse noção dos conceitos de guerra psicológica e subversiva. “Muito embora dissesse o promotor que ela tivesse alto nível intelectual, ela não passa do nível secundário, só é uma simples professora do município de Volta Redonda […], não podia ela jamais pensar em guerra psicológica ou guerra subversiva”.
Além disso, alguns ministros questionaram se havia provas desses pronunciamentos e se o conteúdo deles era o mesmo — subversivo — dos documentos apreendidos na casa de Rosalice.
Em resposta, o ministro Lima Torres reforçou que Rosalice assumiu em juízo e no inquérito que fez uma palestra para estudantes em Niterói. Porém, disse que não havia provas concretas de que o conteúdo do discurso fosse o mesmo do que constava nos documentos apreendidos, de sua autoria.
Nenhuma das testemunhas confirmou que Rosalice tivesse apresentado conotação subversiva nas palestras que proferiu e nos panfletos que escreveu. Tampouco disseram que o conteúdo dos discursos era o mesmo dos documentos apreendidos e que seriam de autoria dela. Ademais, Rosalice negou que os panfletos encontrados na casa do sogro — supostamente subversivos e utilizados nas palestras — fossem dela.
E, conforme acrescentou o ministro militar Hélio Leite, os documentos citados pela sentença não passaram por perícia técnica, de forma que não seria possível confirmar que tivessem sido elaborados por ela.
Com base nisso, Rodrigo Octávio pontuou que simplesmente se dirigir a membros sindicalizados ou a mulheres de Volta Redonda, sem a prova de que o conteúdo fosse o dos documentos apreendidos, “jamais poderia tipificar tentativa e muito menos uma ação contra a segurança nacional”.
O ministro togado Jacy Pinheiro seguiu a mesma linha de Rodrigo Octávio. “Isso é muito sério, não é se falando a estudantes, não é se propagando os dogmas do partido MDB que se faz uma guerra psicológica desse calibre dessa proporção. […] Vossa Excelência me perdoe, o tempo já vai longe, mas enquadrar nessa altura, nessa contingência, com estas circunstâncias que estão dentro do processo com a prova exclusivamente colhida na polícia, sem prova nenhuma em juízo, com a negativa frontal da apelante, sem prova testemunha”.
Para reforçar seu ponto, Pinheiro fez referência ao artigo 297 da Código de Processo Penal Militar. O dispositivo estabelece que o juiz formará convicção pela livre apreciação do conjunto das provas colhidas em juízo, e não pelas provas colhidas na polícia.
Oministro militar Reynaldo de Almeida se posicionou contra os argumentos de Jacy Pinheiro e Rodrigo Octávio e o princípio de presunção de inocência. “O criminoso numa atitude dessa natureza se reserva e se poupa. Não vai confessar, é justamente essa dúvida que pesa sobre nós. Eu estou presumindo […], eu estou presumindo porque, em termo de estudos militares, a presunção é uma obrigatoriedade de quem planeja”, disse Almeida.
Rodrigo Octávio respondeu que isso não se aplica para um juiz. “Juiz não pode presumir, de maneira nenhuma. Militar é coisa diferente”.
Almeida também desmereceu os relatos das testemunhas, pois eram da defesa, em sua maioria do Departamento Trabalhista do MDB, além de dois senadores do partido. O magistrado declarou que as declarações delas tinham sido feitas para defender a militante, já que possuíam interesses em comum.
Na visão do ministro militar, os integrantes do sindicato dos metalúrgicos que estavam insatisfeitos foram aliciados por Rosalice para o Departamento Trabalhista do MDB, gerando “um quadro de uma guerra psicológica e adversa bem característica, luta de classes”.
Outros ministros também chamaram a atenção para o teor de luta de classes encontrado nos panfletos. Admitindo que o conteúdo das palestras era o mesmo do material apreendido pela polícia, o ministro militar Dioclécio Siqueira disse reconhecer “nos dois pronunciamentos um aspecto de incitamento a luta de classes; inegavelmente existe nos dois, e este incitamento inegavelmente pode ser enquadrado dentro de subversão e contrariar os objetivos nacionais”.
Apesar de ter admitido que não havia provas concretas de que o conteúdo dos discursos de Rosalice fosse o mesmo do material “subversivo” apreendido, Lima Torres afirmou que tal material coincidia com as reivindicações que a militante vinha fazendo dentro do MDB. Além disso, o ministro disse que livros subversivos, como O 18 Brumário de Luís Bonaparte, de Karl Marx, foram encontrados na residência da acusada em Niterói.
Em resposta, o ministro Jacy Pinheiro relativizou a questão, declarando que também tem livros de comunistas. “Eu tenho aqui na minha gaveta, senhor presidente, senhores ministros, um livro vermelho do Mao Tsé-Tung, tá aqui na minha gaveta. Ninguém tem mais horror do comunismo do que eu. Não admito absolutamente a filosofia comunista porque se ela existisse eu, homem simples de família pobre, não estaria aqui tomando tempo de vossas excelências. Este é o regime [capitalismo] pelo qual eu daria a minha vida e dou; no entanto, tenho o livro vermelho de Mao Tsé-Tung”.
O ministro militar Rodrigo Octávio também afirmou possuir livros comunistas para estudo próprio, apesar de ser “visceralmente anticomunista desde 1935”. Por esse motivo, reforçou seu argumento anterior: “Não posso presumir provas”.
Contudo, pelo conjunto dos fatores, o relator, Lima Torres, entendeu que Rosalice era culpada. “Essas apreensões serviram para mim, fundamentando meu voto, senhor presidente, senhores ministros, eu salientei desde logo que julgava por comparação. É inafastável de mim a obrigação de formar juízo de valor senão através de fatos concretos, juntando essas apreensões com a apreensão de folhetins não distribuídos com os discursos proferido por esta senhora comparando o seu discurso com o programa do PCB [Partido Comunista Brasileiro] que aqui está, são as diretrizes”, afirmou o ministro.
Para além do incitamento à luta de classes que supostamente estaria nos discursos de Rosalice, o ministro togado Jacy Pinheiro se mostrou preocupado com o fato de uma das palestras ter sido direcionada somente a mulheres.
“As palavras que proferiu a apelante na tal reunião fechada que só havia mulheres, ela falou só para mulheres […] Vamos observar que o que ela fez foi uma apologia feminina. Esse feminismo que está querendo colocar o homem abaixo, tomando as posições que nós outros estamos ocupando. Felizmente […] ainda a mulher não celebra missa falando em religião e não comanda exército, afora o caso de Joana d’Arc”, disse Pinheiro.
Manutenção da condenação
Por maioria de votos, o STM manteve a condenação de Rosalice Magaldi Fernandes Parreira pelo crime de propaganda subversiva por quaisquer meios sociais, agravado pelo fato de ser funcionária pública. Porém, reduziu sua pena de 1 ano e 6 meses para 1 ano e 2 meses de reclusão.
O tribunal entendeu que as palestras proferidas no Departamento Trabalhista do MDB em Volta Redonda continham um teor subversivo por incitar a luta de classes. E que, a palavra, quando direcionada a público amplo em local aberto, como teria sido o caso, na visão da maioria dos ministros, se configura como um eficiente meio de comunicação social, cumprindo, portanto, os requisitos do crime.
Em 30 de agosto de 1979, o STM declarou extinta a punibilidade de Rosalice devido à Lei da Anistia, promulgada dois dias antes.
Repressão ao movimento operário e a prisão de Rosalice
De acordo com o Relatório da Comissão Municipal da Verdade de Volta Redonda, a prisão de Rosalice Magaldi Fernandes Parreira, no dia 29 de abril de 1976, foi planejada pela ditadura militar como forma de desmobilizar, às vésperas do Dia do Trabalho (1º de maio), o movimento de resistência de operários da CSN, que vinha sendo capitaneado pela militante. A ação ficou conhecida como “Operação 29 de abril”.
Filha de um importante líder sindical de Volta Redonda nos anos 1950 e 1960, Rosalice planejava distribuir panfletos no 1º de maio — em conjunto com o Departamento Trabalhista do MDB —, conclamando a organização dos operários da CSN frente às precárias condições de trabalho. Na ocasião, o presidente Ernesto Geisel estaria presente na cidade para solenidades e para a reinauguração do Estádio da Cidadania, fato que contribuiu para que a operação fosse planejada e executada.
Na prisão, Rosalice foi alvo de intensas sessões de tortura, segundo seu testemunho à Comissão Municipal da Verdade. Abalada física e mentalmente pelas constantes sevícias, a militante contou em seu depoimento que era coagida insistentemente a assinar um documento dizendo que o material dito subversivo encontrado na casa de seu sogro era seu. Ela alegou no processo que os panfletos foram “plantados” no local para incriminá-la.