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Advogados

Técio Lins e Silva

6 de dezembro de 2022

A tragicomédia da ditadura

Descrever o trágico e o significado do terror dos anos da ditadura no Brasil, sob o ponto de vista de um Advogado assíduo frequentador dos tribunais militares, é hoje quase redundante. A nação já possui uma clara consciência do que foi o período do regime militar nas quase três décadas de 1960 a 1980.

Lembrar desse tempo e da luta travada pelos Advogados nos auditórios da Justiça Militar é sempre útil para transmitir às novas gerações uma experiência que o país não pode e não deve nunca mais viver.

A Câmara Municipal de São Paulo e, depois, a Câmara dos Deputados, pela iniciativa do então Vereador e atual Deputado Federal José Mentor, prestou homenagem aos Advogados que militaram na Justiça Militar no período da ditadura, para o fim de registrar a luta em defesa das liberdades e reverenciar a democracia que estamos todos construindo neste País.

Muitas histórias merecem a perpetuação pelo relato de seus protagonistas. Das que me vêm à memória, destaco um episódio verdadeiramente tragicômico.

Como o Superior Tribunal Militar tinha sede no Rio de Janeiro, todas as apelações, recursos, habeas corpus (quando era possível), enfim, tudo o que se originava das Auditorias Militares do Brasil inteiro ia parar no STM. Como, em geral, as defesas eram gratuitas e os réus quase sempre não dispunham de recursos para financiar a ida do Advogado local para o Rio, éramos nós, os Advogados do Rio que militavam na Justiça Militar, que nos encarregávamos do acompanhamento e da sustentação oral, quando o Advogado da causa não podia comparecer.

Numa dessas ocasiões, recebi do magnífico Advogado José Carlos Dias, meu velho e querido amigo que me dava a honra de ser o seu correspondente no STM, uma procuração de um réu preso que havia sido condenado na Bahia, na Auditoria da 6ª CJM, por fatos ocorridos em 1969. O Advogado que apresentara as razões de apelação foi o Dr. José Borba Pedreira Lapa e, na sustentação oral no STM, também funcionou a extraordinária Advogada carioca Eny Raymundo Moreira, representando outros réus no mesmo processo, defendidos na Bahia pelo Dr. Joaquim Inácio Santos Gomes.

Era mais um processo político contra jovens estudantes acusados de subversão. Os réus haviam sido condenados por infração à lei de segurança nacional e eram acusados de fazerem teatro com “peça subversiva” e integrarem uma perigosa organização. Até aí, digamos, nenhuma novidade.

Ocorre que, na fase do IPM, era necessário descobrir qual a organização subversiva que o tal grupo de jovens tentava reorganizar. Vasculhando a correspondência de um dos acusados, o “brilhante” Capitão encarregado do inquérito descobriu que, nas suas cartas, o indiciado esbanjava o uso da expressão “porra”. Desconfiou que ali estava a chave do segredo. Submeteu o acusado a tenebroso interrogatório, fazendo-o “confessar” que aquela era a sigla do partido.

Agora, pasmem! Redigiu o depoimento e o pobre acusado não teve alternativa: assinou a confissão de que o partido que tentavam reorganizar era mesmo o tal PORRA: Partido Organizado Revolucionário Retado e Armado! Acrescentando: “misto de filosofia hippie, fascismo e esquerdismo distorcido”. (?!)

No dia do julgamento da apelação, a Advogada Eny Raymundo Moreira usou de todo o seu charme e simpatia na Tribuna para ridicularizar a acusação e dizer que, como mulher educada, não poderia sequer falar no nome do partido. Ao contrário, tentei acordar o Tribunal, pronunciando com ênfase a malsinada sigla, pensando que, posto o ridículo da situação, o Tribunal reformasse a decisão condenatória pelo crime de “reorganizar ou tentar reorganizar de fato ou de direito, ainda que sob falso nome ou forma simulada, partido político ou associação, dissolvido por força de disposição legal, ou que exerça atividades prejudiciais ou perigosas à segurança nacional, ou fazê-lo funcionar, nas mesmas condições, quando legalmente suspenso” (art.37 do DL 314 com redação do DL 510), ou seja, a PORRA, perigosa organização clandestina e subversiva…

Para a nossa frustração, a Apelação foi negada por unanimidade de votos dos Ministros do STM, no dia 15/12/1971, e os acusados tiveram mesmo de cumprir as suas penas pelo crime de organizar a “porra”.

Técio Lins e Silva é Advogado Criminalista no Rio de Janeiro.

Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014



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