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Advogados

Rosa Cardoso da Cunha

7 de dezembro de 2022

Tempos de equilibrismo

Estamos no ano de 1970. Faz 5 anos que a Justiça Militar, contrariando sua competência em um Estado Democrático, passou a julgar civis. Na sua primeira instância, constituída por Auditorias Militares, já se consolidou uma interpretação extremamente autoritária das leis repressivas. São 5 juízes, sendo um togado, com formação jurídica, e os outros quatro militares. Quase todos eles são orientados pela voz dos porões da estrutura repressiva do Estado.

No andar de cima, entretanto, no Superior Tribunal Militar, a cumplicidade e o temor frente aos perpetradores do golpe (civil) militar assume matizes variados, convivendo com flexibilizações. No início da década de 70, o Tribunal estava composto por 15 membros, sendo 5 civis e 10 militares. Naquela época já havia visíveis dissensos entre alguns ministros militares e a condução continuísta, repressiva e violenta imposta pelos próceres da “Revolução”.

Fazia pouco tempo que eu começara a advogar. Eu me formara na antiga Faculdade Nacional de Direito, atual UFRJ, em 1969. Meu professor mais destacado, um criminalista excepcional, chamava-se Heleno Claudio Fragoso. Com Heleno aprendi a não ser bacharelesca, a buscar no exercício do ofício a concisão, a articular o argumento técnico com uma discussão feita em linguagem coloquial sobre o perfil de nossos clientes, os réus (aliás Fernando Fragoso, filho de Heleno, faz isto muito bem).

Durante o período que cursei a Faculdade, fui monitora das disciplinas que Heleno lecionou (Direito PenaI, II não lembro mais). Assisti, também, sistematicamente, suas defesas de perseguidos políticos no Superior Tribunal Militar, ainda instalado na praça da Republica, muito próximo do prédio da Faculdade.

Recordo sempre as defesas que ouvi, as virtudes e defeitos de quem escutei, lances medíocres ou geniais. Lembro as consistentes análises políticas de Luiz Werneck Viana, à época advogado, o carisma extraordinário de Evaristinho (Evaristo de Moraes, o criminalista) expondo argumentos comuns com muita clareza e imponência.

Heleno, entretanto, era diferente. E era diferente por ser o melhor. Ele utilizava uma argumentação técnica demolidora das arbitrariedades que estavam sendo praticadas, dos arranjos políticos e pragmáticos vestidos com a pompa da legalidade da “Revolução” e da doutrina de segurança nacional.

Heleno convidou-me para trabalhar como sua estagiária, mas prenunciando um tipo de opção que eu reiteraria em minha trajetória profissional, escolhi estagiar no escritório de Modesto da Silveira.

Modesto foi certamente o advogado que defendeu o maior número de perseguidos políticos do regime militar. Com uma solidariedade incomum, ele jamais recusou socorro a uma vítima de violência ou de perseguição. Ele compartilhou com imensa coragem os riscos dos primeiros momentos de prisão de um enorme conjunto de pessoas, numa época em que preso e advogado eram objeto da fúria do regime militar. Modesto não recuava frente à truculência, à brutalidade deste momento inicial, que conduzia à tortura e muitas vezes à morte.

Escolhi assim, na profissão, ficar mais próxima das vítimas, das muitas vítimas que procuravam o escritório de Modesto. Estávamos sempre presentes nos primeiros momentos: solicitando aos carcereiros da Polícia do Exército que apresentassem Apolônio de Carvalho, com seu corpo torturado, dentes fraturados ou perguntando aos exterminadores de Mário Alves onde ele estava. Atendemos também centenas de trabalhadores – portuários, ferroviários, rodoviários etc..

Retomando, entretanto, as lembranças do Superior Tribunal Militar, recordo que no período – quem sabe ainda é assim – convocavam-se, durante as solenidades e homenagens, um Ministro, o representante do Ministério, e um dos advogados presentes para fazer um discurso. Este era sempre laudatório da instituição, do seu papel no âmbito da designada Revolução, da data e do homenageado. Eu tinha pavor de ser convidada e fugia ao menor sinal de que a cena iria acontecer. Eu me sentia inteiramente incapaz de fazer um discurso hipócrita sobre as virtudes daquele momento ou das pessoas envolvidas naquela conjuntura, eu não queria fazer isto.

No Tribunal havia um Ministro que gostava especialmente de mim, acompanhava meus gestos e defesas, reiterava meus argumentos ajudando-me a obter resultados favoráveis. Era Alcides Carneiro. Certo dia, o Ministro percebeu que a cena estava armada e que eu me preparava para sair do salão de audiências. Ele levantou de sua cadeira, atravessou o corredor correndo, o salão, aproximou-se de mim, que já estava na porta de saída e disse: “você vai fugir?” Olhei firme nos olhos dele, não respondi, saí.

Rosa Maria Cardoso da Cunha é Advogada Criminalista, Professora Universitária, ex-Secretária Adjunta de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, ex-Coordenadora da Comissão Nacional da Verdade e Escritora.

 

Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014



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