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Advogados

Rômulo Gonçalves

13 de dezembro de 2022

60 habeas corpus numa só tarde

Carlos Augusto de Araujo Cateb*

Nascido em Catalão-GO, em 25 de julho de 1918, numa família desprovida de recursos, ali encetei o curso primário, no Grupo Escolar local, em 1927, concluindo-o em Araguari- MG, em 1931.

Naquela época, residia em companhia de Walter Rocha, meu parente, funcionário da Estrada de Ferro de Goiás, que me acenava com a possibilidade de futuro emprego na ferrovia, como telegrafista.

A transferência de meu protetor para Agente da estação de Bonfim – hoje Silvânia – em 33, trouxe-me a rara possibilidade de ingressar no curso ginasial do Ginásio Anchieta, daquela cidade. Lembro-me que, em todo o Estado, em 1932, havia apenas dois estabelecimentos secundários, o Liceu de Goiás, antiga Capital, e o Ginásio Anchieta de Bonfim, reconhecido pelo Ministério da Educação naquele ano. Nada mais. Aprovado com boas notas no Exame de Admissão, matriculei-me, em 1933, na 1a série ginasial, integrando a 2a Turma do Ginásio, ali construído pelo grande educador Dom Emmanuel Gomes de Oliveira. Os estudos secundários compreendiam cinco anos, acrescidos de dois outros, preparatórios às faculdades.

Meus pais, que residiam em Corumbaíba-GO, custeavam as despesas do ginásio, com ingentes sacrifícios. Enquanto meu parente chefiava a estação de Bonfim, frequentava externamente o estabelecimento. Com sua remoção para outras localidades, só me restava o internato, cujo custo anual, em 1935, era de 1.600$000 (um conto e seiscentos mil réis), importância inalcançável aos parcos rendimentos de meus progenitores.

Lembro-me ainda, com emoção, da tarde em que meu pai recebeu comunicação de Walter Rocha, em Corumbaíba, em fins de 1934, de que havia sido deslocado da estação de Bonfim para outro ponto da ferrovia, mas insistia em que os meus estudos não podiam ser interrompidos, estando mesmo disposto a contribuir mensalmente para auxiliar o pagamento do internato. Sugeria que os tios do ginasiano colaborassem com a mesma quantia mensal para cobertura das despesas. Dispunha-se, igualmente, como de fato o fez, a lograr sensível abatimento da anuidade do internato, ao fito de aliviar o encargo. Graças a compreensão e bondade do Padre João Pian, então Diretor do Ginásio Anchieta, foi-me reduzido o preço anual do internato para 1.000$000 (um conto de réis), o que me propiciou a oportunidade de retornar, gloriosamente, das férias de 1934/35, como integrante do internato.

Concluído o curso ginasial, em novembro de 1937, fui convidado, em março de 1938, para ocupar o cargo de Secretário da Prefeitura de Bonfim, enquanto o Pe. João Pian me convidava para lecionar a cadeira de “Português”, em algumas séries do estabelecimento. Reunidos, os rendimentos eram o dobro do que percebiam meus pais em dois cargos. Essa distinção retardou-me o ingresso na Faculdade de Direito, embora tenha obtido matrícula no Pré-jurídico do Liceu de Goiânia, em 1940. Posteriormente, em junho de 1939, fui nomeado Secretário da Prefeitura de Catalão, minha terra natal, enquanto o Colégio N. S. Mãe de Deus, das Agostinianas, me oferecia aulas suficientes para melhorar sensivelmente minha remuneração.

Em dezembro de 1939, casei-me com minha querida companheira, Maria Crispim Gonçalves, que conhecera em fevereiro daquele ano. A feliz união rendeu-nos cinco belos filhos: Alberto, Mércia, Wagner, Hélio e Rômulo Jr.

Ingressei na Faculdade de Direito de Goiás em 1943, quando transferi residência para Goiânia, obtendo nomeação para o cargo de Professor do Liceu, onde permaneci por longos anos. Em 1951, o prefeito da cidade convida-me para ocupar o cargo de Consultor Jurídico do Município, função que exerci até minha aposentadoria.

Ainda como Solicitador Acadêmico, começei a advogar em 1946, tendo obtido certo relevo nos processos de moratória e reajuste de débitos de pecuaristas. Quando, em 1947, conclui o curso de Direito, já era advogado com relativa experiência. Logo após, fui eleito Conselheiro da OAB-GO, onde militei por vários anos, obtendo afinal, em 1962, o cargo de Presidente da Seccional goiana – mandato que meus pares me renovaram por três vezes, até 1967, num dos períodos mais tempestuosos que infelicitaram a vida política do País, com a eclosão da “ditadura militar de 1964”. Goiás celebrizou-se tristemente, com a deposição do Govemador Mauro Borges Teixeira, que vinha renovando a administração pública e encetando obras que a própria ditadura militar não conseguiu destruir, mesmo lhe arrebatando, com a intervenção armada, o poder legitimamente conquistado pelo voto popular.

Sucederam-se arbitrárias prisões e instauraramse ações criminais contra “supostos subversivos”, perante a 4° Auditoria Militar, com sede, então, em Juiz de Fora. Pouca gente sabia que os goianos estavam sujeitos à jurisdição criminal militar tão longínqua.

Vários advogados foram incriminados no famoso “Processo Mauro Borges”, onde se encambulharam, além do ex-Govemador, cerca de 145 pessoas, integrantes da mais seleta e inatacável origem. As acusações eram vazias e destituídas de qualquer fundamento. Incriminavam-se pessoas da mais respeitável formação moral, pelo simples fato de terem participado do governo deposto.

Como Presidente da OAB-GO, não podia deixar ao desamparo os colegas injustamente acusados perante a Justiça castrense, porque, quase sempre, ameaças de represália por parte da ditadura militar afugentavam a maioria dos defensores. De um modo geral, eram pessoas destituídas de recursos, que não podiam custear despesas e honorários em empreita de tamanha responsabilidade. De pronto, ouvido o Conselho Seccional, que jamais me faltou com seu decidido apoio, lancei protesto veemente e desassombrado, por via telegráfica, ao Presidente da República, aos Ministros da Justiça e da Guerra, ao Conselho Federal da OAB e a todas as co-irmãs estaduais, denunciando as arbitrariedades que se perpetravam em Goiás, com afronta aos mais comesinhos direitos da pessoa humana.

Sem busca de pecúnia, passei a defender a quantos, advogados ou não, estavam sendo violentados em seus direitos pelo regime militar instaurado no País. A defesa seria apresentada na 4a Auditoria Militar de Juiz de Fora, com recurso para o Superior Tribunal Militar, ainda no Rio, e, depois, em Brasília, para o Tribunal Federal de Recursos e, finalmente, para o Supremo Tribunal Federal. Era longa a “via crucis”, que devia ser atalhada a qualquer custo.

A acusação sem provas, em assunto de tamanha gravidade, envolvendo a Lei de Segurança Nacional, deveria autorizar o pedido de habeas-corpus diretamente ao Supremo, para soltura do acusado e, se possível, trancamento da ação penal militar. A intuição encorajou-me a pesquisa, quando encontrei acórdão, relatado pelo eminente Ministro Gonçalves de Oliveira, do STF, que ainda o integrava, assegurando que se a agressão aos direitos humanos se reveste de inominável desafio à Constituição Federal, porque carente de qualquer prova, é imperioso que se dirija diretamente ao Tribunal Excelso, via HC, para pronto restabelecimento do direito violado.

Para a impetração não há necessidade de mandato. Quando denunciei a prática de torturas, em dependências militares, lendo laudo pericial lavrado por dois renomados médicos, em pessoa recém-egressa de presídio castrense, perante a 11a Auditoria Militar, já em Brasília, fui indiciado na Lei de Segurança Nacional, como detrator das Forças Armadas, perante a mesma Auditoria, tendo sido interrogado no 10° BC local. Felizmente, o MPM, que assistiu à leitura do laudo pericial da tribuna, pediu o arquivamento do inquérito, negando-se a oferecer denúncia, porque o fato prendia-se ao exercício rotineiro da defesa. Pretendia-se impor-me a pena de 5 a 12 anos de reclusão.

Nada me amedrontou – e esse o grande mérito – a despeito de ameaças, veladas ou expressas. Jamais fui experto em matéria penal, mas defendi com bravura meus continentes, dirigindo-me diretamente ao Sumo Pretório, onde obtive o mais significativo êxito, com a concessão de inúmeros habeas-corpus, para alívio de tanta opressão.

A eficácia das decisões do STF desintegrou as urdiduras da prepotência militar, reduzindo as acusações às dimensões asquerosas de sua insignigficância. Quando me foram deferidos mais de 60 habeas-corpus, numa só tarde, apresentandome a um colega do Rio, o Relator Ministro Evandro Lins e Silva, comentou: “Eis o herói da tarde”, ao que, de pronto, lhe retruquei: “Heróis coisa nenhuma, Sr. Ministro. Não é mérito do defensor, mas demérito da acusação, que nada vale.”

À insânia da prepotência não escaparam três dos grandes Ministros do próprio Supremo, que foram levados à aposentadoria, a própria composição do Tribunal foi quase duplicada.

Felizmente, os escolhidos estiveram à altura da sublimidade da função.

Rômulo Gonçalves foi Advogado e Presidente da OAB-GO. Faleceu em 2008.

Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014



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