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Advogados

René Ariel Dotti

6 de dezembro de 2022

A rebelião dos estudantes e a orelha do ministro

Era o dia 30 de novembro de 1979 e Florianópolis recebia a visita do Presidente João Baptista de Figueiredo (1918-1999), para participar de solenidades oficiais, entre elas o descerramento de uma placa em homenagem a Floriano Peixoto (1889-1895), que despoticamente governou o Brasil de 1889. O motivo era o destaque pelos noventa anos da proclamação da República, da qual o Marechal de Ferro foi historicamente reconhecido o grande consolidador. Certamente, a assessoria do general desconhecia ou não deu importância ao fato trágico da história de Santa Catarina, quando o governador Antonio Moreira César (1850-1897), nomeado por Floriano, mandou matar 187 pessoas na Ilha de Anhatomirim, durante a Revolução Federalista. As vítimas, defensoras da Monarquia, opunham-se ao novo regime. Os militares eram fuzilados e os civis, enforcados. Paradoxalmente, foi em homenagem ao mesmo Floriano Peixoto que a Ilha do Desterro, originalmente chamada Ilha de Santa Catarina, passou a denominar-se Florianópolis, a partir de 1894.

Fermentando o clima de antagonismo ao visitante – militar assim como Floriano – as manifestações contra a ditadura, a inflação que aumentava dia a dia e o arrocho salarial provocaram as marchas de protesto contra a fome. O Diretório Central dos Estudantes, da Universidade Federal de Santa Catarina, saiu às ruas com um imenso batalhão de aproximadamente quatro mil jovens. A massa foi engrossada por populares e caminhou em direção ao Palácio Cruz e Souza, antiga sede do governo estadual, localizado na Praça XV, exibindo faixas de “Abaixo a Fome” e outras, como “Pelo fim da ditadura”. Conforme os historiadores, Figueiredo surgiu na sacada do Palácio, juntamente com o governador do Estado, Jorge Bornhausen, e “olhou para baixo, contrariado”. Os manifestantes observaram o presidente que, em dado momento, fez um gesto com o indicador e o polegar, o que foi recebido como obsceno. Daí em diante foi um “Deus nos acuda”.

Adolfo Luiz Dias, Amilton Alexandre, Geraldo Pereira Barbosa, Lígia Giovanella, Marize Lippel, Newton Dias de Vasconcellos Júnior e Rosângela de Souza foram os sete estudantes identificados e ficaram presos na Polícia Federal, durante o inquérito que serviu de base para o processo-crime nº 7/80-0, que tramitou pela Auditoria da 5ª Circunscrição Judicial Militar, em Curitiba. A denúncia imputou-lhes o crime previsto no art. 33 da Lei nº 6.620, de 17 de dezembro de 1978 (Lei de Segurança Nacional), “porque, conforme consta de fls. 2/5, na manhã do dia 30 de novembro de 1979, na Praça XV de Novembro, diante do Palácio do Governo do Estado de Santa Catarina, ofenderam a honra e a dignidade do Excelentíssimo Senhor Presidente da República, proferindo palavras de baixo calão e obscenas, que eram dirigidas ao mais alto mandatário do País.” O mencionado dispositivo criminalizava a seguinte conduta: “Ofender a honra ou a dignidade do Presidente ou do Vice-Presidente da República, dos Presidentes do Senado Federal, da Câmara dos Deputados ou do Supremo Tribunal Federal, de Ministros de Estado e de Governadores de Estado, do Distrito Federal ou de Territórios.” A pena prevista era a de reclusão, de 2 a 5 anos. Terminados os debates, o Conselho se reuniu em sala secreta, sem a presença do Procurador e dos Advogados. Após mais de três horas, os juízes retornaram ao auditório onde se encontrava um grande número de parentes e amigos dos acusados. Quando foi anunciada a absolvição, por 3 votos a 2, a assistência começou a cantar o Hino Nacional. Foi um momento mágico: todos os militares perfilaram-se e fizeram continência, demonstrando, assim, o sentimento cívico.

Votaram a favor da absolvição: o Auditor, Doutor Carlos Augusto Cardoso de Moraes Rego; o 2º Tenente, Antenor Guilherme Beckert; o 2º Tenente, Elias Stadler Kosloski. Votaram pela condenação de todos os réus, o Presidente do Conselho, Tenente Coronel Alceu Cafruni e o 1º Tenente, Hamilton Joslin.

O julgamento realizou-se em 17 de fevereiro de 1981. Juntamente com o Professor Heleno Claudio Fragoso, fui o advogado das acusadas Lígia Giovanella e Rosângela de Souza. Os outros colegas da defesa dos demais réus foram: Nelson Wedekin, Idibal Pivetta, Marcelo Cerqueira, José Carlos Dias e Mário de Passos Simas.

O evento tornou-se nacionalmente conhecido como A Novembrada e, segundo pesquisadores, caracterizou uma principal etapa do processo de restauração da democracia. Há uma profusão de artigos, livros e um filme narrando o episódio da rebeldia da população instigada pela coragem dos universitários.

Vinte e cinco anos depois, a Assembleia Legislativa de Santa Catarina realizou uma sessão solene para comemorar a bravura dos jovens e o destemor dos advogados, que, sem cobrar honorários, dedicaram-se intensamente à causa da liberdade. Tenho, com grande alegria e em espaço destacado de meu escritório, a placa que me foi entregue com sensível dedicatória.

De todos os detalhes do processo, desde as audiências para ouvir testemunhas e das horas dedicadas aos arrazoados até o julgamento, me lembro de um diálogo pitoresco que merece referência, para não se perder no tempo. Na noite daquele dia, quando advogados e os absolvidos se reuniram para um jantar de confraternização, perguntei para uma das acusadas por qual razão ela dera um tapa no rosto de um importante membro da comitiva presidencial. A resposta foi direta e simples: “Pois é, professor. Eu já estava envolvida com a multidão, que avançava sem parar, a adrenalina subiu e, quando vi aquele homem, perto do Figueiredo, com orelha enorme, eu disse pra mim mesma: é minha!” A vítima da bofetada foi o então Ministro de Minas e Energia, César Cals (1926- 1991).

Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014



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