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Advogados

Raul Affonso Nogueira Chaves

12 de dezembro de 2022

Defensor corajoso

Raul Chaves Filho*

Poucas vezes encontramos alguém que una a cultura acadêmica bem sedimentada com a arte da advocacia. Haja vista que advogar não é para todos… É preciso engenho, raciocínio rápido, enfim, habilidade! O Advogado e Professor João de Melo Cruz (também seu discípulo) afirma, ainda, que é necessário a “artevocacia”!

Na Universidade Federal da Bahia, logo cedo, RAUL CHAVES procurou aperfeiçoar o seu conhecimento, conquistando a Cátedra de Direito Penal, substituindo a MONIZ SODRÉ (o Mestre das três Escolas Penais). Formou gerações de alunos e, mais de perto, discípulos que o acompanharam por toda a vida, na Bahia e fora dela.

Viajou muito, a palestras em colóquios e congressos nacionais e internacionais, examinando em concursos de Professores, Doutores e Mestres noutras Universidades Federais e Estaduais, conviveu com grandes amigos, como Paulo José da Costa Júnior, Nilzardo Carneiro Leão, Basileu Garcia e Aloysio de Carvalho Filho, seu eterno Mestre.

Escrevia, produzia, pesquisava a tudo que considerasse novo, vanguardista. Não queria redizer de outros em livros de curso.

Foi Procurador do Estado da Bahia, onde também exerceu sua corajosa independência.

E também viajou para advogar. Esteve noutros estados, como Rio de Janeiro, São Paulo, Vitória, no Espírito Santo, Belém do Pará, Recife, Belo Horizonte, Brasília e, sobretudo, em Sergipe.

Em sua Banca de Advocacia, laborou como aprendera com Dr. CARLITO ONOFRE, na companhia de quem iniciou a lida: não perdia a oportunidade de um bom trabalho, desde que o cliente lhe merecesse! Não aceitava a causa se não confiasse no cliente, em sua honestidade! E trabalhava com muita disposição e coragem, sem, entretanto, perder a irreverência do fino humor britânico, desqualificando, muitas vezes, o argumento adversário. Quando não, por vezes, o próprio adversário. Assim lembrava seu colega, amigo e compadre JAYME GUIMARÃES e, ainda hoje, lembra o seu fiel amigo e colega DERALDO BRANDÃO.

Abraçava a causa como se assumisse a defesa de si próprio, ou a de um irmão, ou como afirmou seu fraterno colega EDSON O’DWYER: “como se defendesse a um filho!” Sim, era verdade. Ninguém humilhava um cliente seu. Fosse qual fosse a causa ou a acusação, a defesa da dignidade do cliente era exercida e era sagrada! Para Raul Chaves, o cliente possuía a sua verdade diante do fato e sempre repetia que advogar também era “sofrer o martírio de não poder ajustar a razão do cliente, nem sempre dentro da lei, à inflexibilidade da norma.”

Apresentava a defesa do cliente com o que havia de mais puro e atualizado da Ciência Penal, com o mais verdadeiro valor científico, acompanhado de forte poder de argumentação. Esgrimia, além de tudo, com a palavra bem posta, à EÇA DE QUEIROZ!

De tudo que dizia ou falava, resumia a cultura sedimentada no estudo. Lia todo dia, fosse livro doutrinário ou literatura. Acreditava que quem só lesse o Direito, não sabia direito. Pois o direito era construído no exercício da experiência cultural (na literatura) e na vivência profissional.

Não temia a adversidade! A coragem era a sua companheira inseparável. Quanto maior o “perigo”, maior o seu destemor. Todavia, não era um arrogante, mas um sensível, solidário. Aí, uma de suas principais características: a solidariedade! Mais ainda em favor de pessoas simples e ultrajadas pelo poder, fosse esse poder econômico, social ou político.

Durante o “período revolucionário” de 1964, defendeu centenas de presos políticos (só para Soldados, Sargentos, Suboficiais e Tenentes da Base Aérea foram 128 Habeas Corpus). E sua militância nesse período foi praticamente sem honorários. Acreditava Raul Chaves que assim exercia um “dever cívico”- profissional.

E defendeu Mário Lima, defendeu Claudio Melo, Noide Cerqueira, Gorgônio Neto, Cleto e Geraldo Sampaio Maia (de Sergipe), Manuel Pascoal Nabuco D’Ávila (então Prefeito de Estância, em Sergipe), Viana de Assis, Sebastião Nery, José Carlos Capinam e tantos outros intelectuais, políticos, estudantes, ou simples pessoas da comunidade, todos perante o Superior Tribunal Militar, quando ainda no Rio de Janeiro e, depois, quando transferido para Brasília. E tanto fez e tanto defendeu que, certo dia, após a vibrante sustentação oral, na Tribuna do STM, defendendo o HC de ninguém menos do que VIRGILDÁSIO DE SENNA (então Prefeito afastado de Salvador, Capital da Bahia), proclamada a concessão da Ordem, recebeu, ainda com a beca sobre os ombros, das mãos de um funcionário do Tribunal, um bilhete manuscrito do Ministro General Mourão Filho: ”Prof. Chaves, é difícil, mas se um dia eu vier a cometer crime e entrar no rol dos homens feios, estará V. Ex. nomeado meu defensor!”

“Quando Raul Chaves foi contactado pelo Sindicato dos Petroleiros da Bahia para defender o líder do sindicato, Mario Lima, foi ao Quartel do Exército de “AMARALINA”, em Salvador, para visitar Mário Lima e dele recebeu uma procuração. Pois o levaram até a cela onde estava Mario Lima, no final de um extenso corredor, cercado de soldados com fuzis apontados contra ele, Raul Chaves! De longe, quando pôs o rosto fora da cela para ver o que acontecia, Mario Lima se assustou, pois nunca tinha visto fazerem aquilo com ninguém. Mas sem perder a tranquilidade, Raul Chaves ouviu o seu cliente e dele recebeu duas procurações, pois ao julgarem o HC que o liberou, Mário Lima voltou a ser preso… E teve um outro HC concedido pelo próprio STM!”

Defendeu muita gente nessa época, algumas destas pessoas nem chegou a conhecer pessoalmente. Como um alfaiate de Feira de Santana que um dia pediu a Minha Mãe: “dona Myrthes, por favor, me entregue um retrato do Dr. Raul Chaves, queria conhecer a sua fisionomia, pois não gostaria de passar por ele na rua e não o reconhecer, pois quero lhe ser grato a vida toda, ele me fez o Bem!” E assim foram muitos, outros não…

Minha Mãe, Myrthes Chaves, em nossa “velha casa”, atendia as mães, esposas e filhos, sempre aflitos, que para aqui corriam em busca de “socorro”, pedindo que intercedesse junto a “Dr. Raul”, que estava no Rio de Janeiro para defesas de HC’s no STM, a fim de acrescentar o nome de seu ente, também preso…, “mais uma impetração de Habeas Corpus”…, sem perceberem, todavia, a própria aflição de Minha Mãe “com o risco que o seu próprio Raul corria em paralelo”.

Tantas foram as defesas em processo penal militar e as impetrações de Habeas Corpus perante o STM à época, tantas as preocupações e aflições, tensões em momentos difíceis, como em presenciar o desespero do cliente e de sua família a um lado e o desrespeito à legalidade, por outro lado, que Raul Chaves sentiu na própria pele os efeitos dessa ambiência. Não só a úlcera lhe veio, lhe maltratando a saúde, como também lhe chegou a poderosa vigilância contínua.

Foi um homem de tal forma dedicado a advocacia da liberdade e ao estudo da ciência penal, que SYLVIO FARIA, outro fraterno amigo de toda a vida e também Mestre na UFBA, em discurso em sua homenagem na própria Faculdade de Direito da UFBA, afirmou: “falar-se de Raul Affonso Nogueira Chaves como advogado é se traçar o perfil modelar da espécie… Ele encarnava o destemor, a disposição de luta contra todos os obstáculos, pois mantinha acima de tudo o compromisso moral na defesa dos direitos do seu tutelado… Sofreu muito, Raul, por ser corajoso, como é óbvio, eis que feriu muitos interesses, contrariou muitas vontades, suscetibilizou muitas vaidades. Acrescente-se a tudo isto ter sido ele alvo da inveja, talvez menos dos colegas que daqueles que, devendo julgar, não entendiam que a superioridade intelectual de Raul era um elemento fundamental para a formação do ente de justiça e a tomavam como uma agressão às suas próprias mediocridades. A réplica que ele desferia contra o julgamento incorreto ou, mesmo, eivado do pecado original da má intenção, era contundente, deixando cicatrizes indeléveis, com os notórios efeitos da restrição do espaço natural onde o advogado projeta a sua atividade.

Nascido em Salvador a 22 de março de 1918 e falecido também em Salvador a 1º de fevereiro de 1983, logo após (três dias) ter paraninfado uma centena de bacharéis na Faculdade de Direito da UFBA, quando pronunciou discurso em exatos 57 minutos, no salão do Tribunal do Júri do Fórum Ruy Barbosa, delineando a necessidade de uma reforma acadêmica nas Universidades Brasileiras, a fim de progredir o real pensamento cultural brasileiro, sobretudo desenvolvendo a pesquisa universitária, demonstrando e apresentando a esperança no crescimento político- liberal do povo brasileiro -…”sobretudo com a eleição do líder que o povo escolheu para governar Minas Gerais.”

Invariavelmente vestia terno de linho branco Irlandês bem engomado (possuía mais de uma dezena de ternos de linho branco…) e gravata lilás, muitas vezes, Raul Chaves fez muitos e fieis amigos, com os quais sempre festejava, carinhosa e atenciosamente, a convivência. E assim vestido, o velamos na congregação da faculdade de Direito da UFBA, seus colegas da Advocacia e da Universidade, seus amigos, sua esposa, seus filhos! Três dos quais (Ivone, Ângela e Eu próprio), seus alunos na faculdade.

Quando recebi a minha carteira de estagiário da OAB-BA, junto a outros colegas de faculdade, Raul Chaves presente, o então Presidente da entidade gentilmente lhe deu a minha carteira para que ele mesmo me entregasse. Então, ele me entregou a carteira e disse, voltando-se também para os demais estagiários: “dê-se ao respeito”! Lição de ética profissional e pessoal que o grupo guardou consigo, quer como estagiário, quer, principalmente, como Advogado!

Hoje, 31 anos volvidos, continuamos na banca de advocacia dois de seus filhos, Ivone Chaves Jucá e eu, juntos aos seus amigos Sylvio Guimarães Lôbo, Francisco Pernet, Francisco Amorim e Mariana Braga, sentindo que “naquela mesa está faltando ele…”, relembrando as suas histórias, os seus exemplos, os seus ensinamentos, como: “Advogar é combater, é lutar, é opor-se, é apaixonar-se pela paixão alheia, é sofrer o martírio de não poder ajustar a razão do cliente, nem sempre dentro da lei, à inflexibilidade da norma, é não ser compreendido por aqueles mesmos aos quais representa, é na especialidade criminal, obstar, em muitos casos, que Juízes e Acusadores exerçam os seus próprios instintos criminosos na punição dos que delinquiram, é, enfim, e mais uma vez, fazer um pouco de bem silenciosamente, é penetrar na alma dos que se confiam a nós, viver suas ânsias e dores, viver suas alegrias”

*Raul Chaves Filho é Advogado na Bahia e filho de Raul Affonso Nogueira Chaves

Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014



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