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Advogados

Raimundo Pascoal Barbosa

6 de dezembro de 2022

Recordando a Justiça Militar

Discurso proferido na Sessão solene da Câmara Municipal de São Paulo.

Por iniciativa do ilustre vereador e advogado José Mentor, a Câmara Municipal de São Paulo prestará, no dia 4 do mês corrente, homenagem aos advogados que, no período de 1960/1970, cuidaram da defesa de pessoas acusadas de ações subversivas, em processos que correram nas Auditorias Militares Federais de São Paulo. Fui um daqueles advogados.

O primeiro processo em que atuei foi o promovido contra os líderes sindicais José Plácido de Lima e Affonso Delelis, dirigentes do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, presos, em data anterior a 31 de março, sob acusação de que estariam pregando ideias contrárias ao regime vigente, em um quartel militar de Quitaúna.

O feito se processou na 2ª Auditoria, que tinha como Auditor o Dr. José Tinoco Barreto. Fora decretada a prisão preventiva dos dois operários. Procurado por pessoa da diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos, aceitei cuidar da defesa daqueles acusados, juntamente com colegas do departamento Jurídico da mesma entidade sindical, inclusive o advogado Mário Simas.

O Ministro do Trabalho viera a São Paulo, tendo discutido com os advogados o pedido que seria encaminhado à 2ª Auditoria. Devo acrescentar que o general Zerbini, Chefe do Estado Maior da 2ª Região Militar, com quem conversei, demonstrou boa vontade no caso. Demos entrada no pedido de revogação. O presidente do Conselho de Justiça convocou sessão extraordinária, imediatamente.

O ato realizou-se num dia de sábado. A Auditoria, abarrotada de pessoas interessadas no desfecho do pedido que seria apreciado naquele dia. Julguei que tudo seria fácil, pois o General Zerbini era a segunda autoridade da Região.

Aberta a sessão, foi-me concedida a palavra, e sustentei o pedido com ênfase, contando com a vitória. O Procurador da Justiça Militar manifestou-se de forma violenta, defendendo a custódia, procurando demonstrar que a mesma era necessária no interesse da “ ordem pública” .

Por unanimidade, o Conselho de Justiça indeferiu o pedido da defesa, mantendo a medida excepcional e antipática.

A diretoria do sindicato e os colegas do departamento jurídico entenderam que um habeas corpus deveria ser impetrado no Supremo Tribunal Federal. Sabendo que o governo tinha maioria naquele Tribunal, manifestei-me contra a medida, mas fui derrotado. O habeas corpus foi redigido com carinho, com a cooperação de todos os advogados. Mário Simas levou o pedido a Brasília. Foi incumbido de contratar os serviços do advogado Heráclito F. Sobral Pinto, para fazer a defesa oral, perante o Excelso Pretório. O saudoso e incomparável advogado e mestre aceitou o convite.

No dia do julgamento, segundo Mário Simas, que assistiu à sessão do Tribunal, Sobral Pinto proferiu magnífica sustentação, demonstrando à sociedade não haver necessidade da manutenção da prisão dos líderes sindicais, não havendo justa causa para a ação penal. O Supremo Tribunal Federal, por maioria, denegou o “habeas corpus”, ficando mantida a custódia dos sindicalistas.

Na tarde após o julgamento, eu me encontrava na sede da Auditoria. Quando a notícia do resultado do julgamento ali chegara, o Auditor José Tinoco Barreto ficou radiante de felicidade. Encontrava-se na janela do prédio da avenida Brigadeiro Luiz Antonio, sede da Auditoria, quando, avistando o jornalista Tico- Tico, que estava do outro lado da calçada, esperando oportunidade para atravessar a avenida e ingressar no prédio, o Auditor gritou bem alto: “Tico-Tico, ganhamos”.

Naquele momento, convenci-me, plenamente, que o Auditor tinha interesse naquele processo, não podendo presidi-lo e funcionar no julgamento. Daí ter averbado sua suspeição. Naturalmente, o pedido da defesa foi desacolhido.

Os dois acusados, depois, foram libertados. Foram condenados, mas não foram presos. Fugiram.

Outro caso que me marcou, devo mencionar nessas linhas escritas por solicitação do vereador e advogado José Mentor, foi a prisão do advogado Rio Branco Paranhos, detido em razão de ter sido encontrado um cartão seu no bolso de um sindicalista preso em Osasco. Recolhido a um quartel do Exército, ficara incomunicável. Tentei avistar-me com ele, como advogado, mas fui impedido.

Estava vigorando o Ato Institucional nº 5, criação do celebérrimo Gaminha, ministro da Justiça e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

É bom recordar que a nossa primeira “Lei de Segurança”, bem como aquela que instituiu o nefando “Tribunal de Segurança Nacional”, ambos em 1936, foram redigidas por outro professor da velha Academia de Direito de São Paulo, Vicente Ráo, que foi ministro da Justiça de Getúlio Vargas, criador do “Estado Novo”.

A pior lei de censura que tivemos, até hoje, foi de autoria de outro mestre da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Alfredo Buzaid, que também foi ministro da Justiça.

Mas continuando a cuidar da prisão do advogado Rio Branco Paranhos, devo acrescentar que impetrei mandado de segurança contra o comandante da unidade militar, onde meu cliente e amigo estava recolhido, Major Beltrão. Este, ao receber o pedido de informações, mandou um oficial e alguns soldados deter-me, o que ocorreu em meu escritório. Chegando ao quartel, fui levado à presença do comandante. Este, depois de confirmar minha identidade, disse desejar esclarecimentos acerca das expressões desrespeitosas que eu usara na petição do mandado de segurança. Respondi ao oficial que sempre respeitara todas as autoridades com as quais tratava. O militar retrucou que a palavra malsinado lhe parecera desrespeitosa. Expliquei-lhe o sentido da expressão, esclarecendo que, para nós, advogados, malsinado significava, nos nossos petitórios, ato atacado. O oficial aceitou minha explicação, liberando-me a seguir.

O certo é que o mandado de segurança foi indeferido e não consegui falar com o cliente custodiado.

Aquela prisão liquidou o velho advogado. Não teve mais saúde. Durou algum tempo. Teve a mente comprometida nos últimos meses de vida.

O espaço que me foi concedido já foi preenchido. Os advogados que atuavam na Justiça Militar, naquele período difícil da nossa história, apesar dos riscos que corriam e das dificuldades que enfrentavam, cumpriram a contento seus deveres profissionais.

Não quero citar nomes dos colegas que mais se destacaram na sua atuação profissional, temendo cometer alguma injustiça. Mas posso afirmar com a maior tranquilidade, sem medo de errar, que ninguém falhou. Aliás, nas Tribunas de defesa e onde houvesse necessidade de combatentes, os advogados brasileiros, no período da “revolução libertadora”, cumpriram sua missão histórica.

Hoje, sem riscos, muitos gritam e esbravejam. Naquele tempo, quando havia perigo concreto, os valentões que surgiram depois ficaram silentes.

Raimundo Pascoal Barbosa foi Advogado Criminalista, Presidente da OAB-SP em 1976/1977, denominado o “Advogado dos Advogados” pela atuação em defesa das prerrogativas dos advogados na ditadura militar. Faleceu em agosto de 2002.

Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014



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