Paulo Sérgio Leite Fernandes
Recordações
Por iniciativa do deputado José Mentor, a Câmara dos Deputados realizou, em 4 de dezembro de 2003, às 10 horas, sessão solene homenageando criminalistas que defenderam presos políticos durante o regime ditatorial brasileiro, iniciado em 1964. Um ofício, recebido em 29, dava conta de que seria um dos homenageados, devendo confirmar presença até o dia seguinte. A efeméride teve apoio do Conselho Federal da OAB.
Evidentemente, as condecorações, medalhas e prêmios outros são agasalhados com muita alegria. Tinha um amigo que dizia, sempre, preferir ser agraciado em vida. Morto, não poderia recusar a dádiva. Virou defunto e seu nome foi impresso no frontispício de uma penitenciária, acidente que, segundo dizia, seria a única ofensa que o faria voltar, adejando entre sombras, pra apagá-lo. Preferia virar logotipo de açougue.
Voltando-se à homenagem, só não fui porque o convite veio, como se diz, “na marca do penalty”. Aliás, não sei como descobriram que defendi uns e outros, lá atrás. Realmente, meu primeiro e último contato com mosteiros foi a visita que fiz, nos idos de 1977, a um jovem que se abrigava sob o teto de uma daquelas casas santas. Mais tarde, numa Auditoria da Guerra, absolvi uns moços presos portando vidros cintados contendo ácido muriático e outra substância qualquer. Aquela estranha bomba, fragmentandose no chão, produziria apenas nuvens de fumaça, segundo prova em plenário. O Conselho, findos os debates, se reuniu em segredo pra deliberar. Os defensores, prudentemente, foram a um bar nas vizinhanças para um lanche rápido. Um químico os convencera de que um ordenança meio bronco, entusiasmado com a oratória dos advogados, poderia ter a infeliz ideia de experimentar aquela feitiçaria (só uma colher de café) para fazer nuvens. Com certeza um pedaço do prédio viria abaixo.
Há outras histórias mais dramáticas. Lembro de uma estudante, hoje colega ilustre, deixada com a audição reduzida a poder de “telefones” aplicados insistentemente nas orelhas. Vem à memória, também, a apresentação de Júlio Fernando Toledo Teixeira à rua Tutóia, um dia depois do assassinato de Wladimir Herzog. Era a hora boa. Júlio tinha fugido para um lugar qualquer. Trouxe-me um “patuá’ de presente. Por via das dúvidas, trinta anos depois, não consigo perder o amuleto. Vira-e-mexe, encontro o objeto numa gaveta. Achei-o pela última vez numa caixa de ferramentas (aquela que a mulher da gente guarda embaixo do armário, para não sofrer desfeita quando precisa de prego). Júlio Fernando foi um talento para a política e a advocacia. Escapou dos torturadores e morreu bisonhamente, muito depois, jogando futebol na praia. Coisa do destino…
Volte-se ao presente: agradeço a lembrança ao Mentor e os quantos me incluíram entre heróis da época, mas o convite veio a destempo. O afago chegou tarde. Não consegui preparar meu terno de cerimônia. Não estava atento, porque o “folder” contendo o nome dos agraciados não trazia o meu entre os vivos e mortos. Roberto Delmanto foi.
É meu procurador para os bons momentos. De minha parte, transfiro a honraria a todos quantos, na Câmara e no Senado, souberam, como Mentor, honrar a advocacia, contrariamente à senadora que mandou prender um advogado não obediente a determinações advindas daquela parlamentar que confundia uma CPI com a cozinha de sua casa. A homenagem aos advogados, todos amigos queridos, me traz muita emoção. É bom receber agrados assim.
Paulo Sérgio Leite Fernandes é Advogado Criminalista em São Paulo há cinquenta e quatro anos.
Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014
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