Oto Luiz Sponholz
Imagens marcantes de uma juventude sonhadora
Após o colapso da ordem constitucional, ocorrido em 1964, foi editado o Decreto-Lei nº 314, de 13 de março de 1967, primeira Lei de Segurança Nacional do “novo regime”, fulcrado no Ato Institucional nº 2, o qual substituiu a Lei nº 1.802, de 1953, que definia os crimes contra a ordem política e social. Tal legislação foi posteriormente alterada pelo Decreto-Lei nº 898, de 21 de setembro de 1969, cujo texto procurava “definir figuras estranhas como “guerra psicológica” adversa, fazia menção a conceitos enigmáticos como “pressões antagônicas”; criminalizava a greve nos serviços públicos e nas atividades essenciais, bem como a “propaganda subversiva”, dentre outras singularidades.”
Os doutrinadores penais mostram seu inconformismo com as figuras “estranhas” que não definem e não conceituam um tipo penal.
Em sessão do Conselho Permanente de Justiça, na Auditoria Militar da 5ª RM, por ocasião do interrogatório de um lavrador, homem rude, roupas simples, de tamanco, oriundo do Oeste do Paraná, mas nascido no Rio Grande do Sul, o Presidente do referido Conselho perguntou-lhe: “Que atos de guerra psicológica adversa o Senhor praticou lá no sudoeste?” O acusado, com toda a sua ingenuidade disse: “Isso eu não sei, não. O que eu sei é que a gente era muito fã do companheiro Leonel Brizola, mas de guerra eu não sei de nada.” Sorrisos no plenário e até dos membros do Conselho selaram o fim do interrogatório.
Outros episódios marcaram bem as dificuldades estruturais da Justiça Militar para cumprir com seus misteres, nos primeiros anos após o movimento de 1964. Normalmente, decretada a prisão cautelar de um indiciado, o mandado expedido era entregue à Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS), para seu cumprimento. Certa feita, ainda no início do regime militar, foi delegada à polícia civil a missão de cumprir um mandado de prisão de um antigo – e até histórico – militante do Partido Comunista (Dr. Karam), o qual residia próximo à reitoria da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Chegando ao local, os agentes policiais tocaram por duas vezes a campainha e quem abriu a porta foi o próprio acusado. O Superintendente da Delegacia se dirige ao morador e cumprimenta-o: “Como vai, Dr. Karam? Estamos cumprindo um mandado de prisão expedido pela Auditoria Militar do Exército. Eu posso lhe dar vinte minutos para desperdir-se da família, preparar sua roupa, objetos de higiene pessoal, para, em seguida, nos acompanhar.” De pronto, a resposta do cidadão, homem discreto, educado e, acima de tudo, cônscio de suas responsabilidades: “Agradeço o tempo, Senhor Policial, mas estou pronto. Podemos ir agora mesmo.” O policial, então, o questiona: “Mas, Dr. Karam, o Senhor não vai levar uma mala? Poderá ser demorada a sua estadia …” Esclareceu o pacato acusado: “Estou prevenido e escolado. Esta mala, atrás da porta, já está feita faz duas semanas. Tenho sido, ao longo das últimas décadas, hóspede do Governo.” Ato contínuo, beijou a esposa, pegou sua mala e acompanhou os policiais.
Não foi muito diferente a minha prisão, em 1964. Era acadêmico da Faculdade de Direito da UFPR, cursando o quinto ano. Fui Presidente do Centro Acadêmico Hugo Simas (CAHS – diretório dos estudantes de Direito) e acompanhei o movimento pela volta da legalidade, após a renúncia de Jânio Quadros, na busca que encetavam os universitários pela posse do então Vice-Presidente João Goulart.
Os estudantes do curso de Direito, nominando a sede do diretório acadêmico (CAHS) de “quartel general da legalidade”, passaram a coletar adesões do povo para eventual luta armada, o que, felizmente, não aconteceu, em virtude da posse do Vice “Jango”, embora com o regime presidencialista tendo sido substituído pelo parlamentarismo.
Em razão das atividades políticas, fiquei conhecido dos policiais da DOPS, com eles mantendo sempre diálogo elevado.
Após a conclusão de meu mandato na Presidência do Centro Acadêmico Hugo Simas, eu e meu colega de turma, Antônio Acir Breda, hoje Professor aposentado da Universidade Federal do Paraná, resolvemos alugar uma sala modesta – “e ponha modéstia nisso” – para iniciarmos nosso exercício profissional. Estávamos alojados na Rua José Loureiro, nº 11, 2º andar, sala 201 e com pouquíssima clientela. Porém, nosso então Professor de Direito Penal, Dr. René Ariel Dotti, nos encaminhava casos e, ainda, tínhamos a coragem de pedir a sua assinatura nas petições, ratificando nossa legitimação para postular em Juízo. Jamais se recusou o Mestre a fazê-lo, pelo contrário, nos estimulava e corrigia eventuais falhas apontadas em petições. Nas causas cíveis, recebíamos indicações por recomendação do saudoso advogado Alir Ratacheski, o qual endossava, com sua firma, os pleitos em que atuávamos.
Numa tarde do mês de maio de 1964, estávamos eu e Breda em nossa sala, olhando para a “potente” máquina de escrever “King-Riter”, a qual pesava mais de 10 quilos, quando recebemos a visita de um Senhor, ao qual me dirigi dizendo: “Boa tarde, sente-se.” E indaguei: “Qual é o seu problema?” Ele, olhando, nos perguntou: “Quem é o Dr. Oto?” Pensando tratar-se de um cliente, lépido disse-lhe: “Sou eu.” Então, disse o visitante: “O problema não é meu. O problema é seu. Vim lhe prender.” E, retirando do bolso do paletó uma folha de papel, falou: “Este é um mandado de prisão expedido pelo Oficial do Exército, Capitão Haroldo Carvalhido, que apura a subversão no meio universitário. Sou o Agente Pernambuco, da DOPS, queira me acompanhar.” Descemos as escadarias do prédio. Junto à porta de entrada estava um jipe DKW, verdeclaro, com a identificação nas portas: Secretaria da Agricultura – PR, cujo motorista era funcionário daquele órgão. Bem se vê que órgãos oficiais do Estado eram requisitados a prestação de serviços oriundos da Justiça Militar.
E assim fui eu, estudante do quinto ano de Direito (e ex-Presidente do Diretório Acadêmico), mais uma vítima dos tipos abertos, indefinidos e de locuções extravagantes trazidos à tona pela abominável “legislação” imposta pelos militares. Por ter eu prestado serviço militar no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR), na arma de infantaria, e concluído o estágio de instrução, havia recebido, em fevereiro de 1964, a carta-patente de Segundo Tenente da Reserva Não Remunerada. Em razão disso, fui conduzido ao quartel da Polícia Militar à disposição da Auditoria Militar da 5ª RM e alojado em “Sala de Estado Maior – prisão especial”, que era regalia assegurada pelo Regulamento Disciplinar do Exército (RDE).
Éramos sete os detidos na sala-dormitório: seis estudantes universitários e um médico recémformado, Dr. Regines Prochmann, o qual foi preso quando estava trabalhando com o Dr. Amílcar Gigante, respeitado profissional da saúde e integrante do PCB.
No quarto ou quinto dia de segregação, após as 19:00 horas, chamou-me a atenção uma voz forte que parecia vir do segundo andar do quartel. No dia seguinte, no mesmo horário, a mesma voz quebrava o silêncio no local. Curiosos, eu e Luiz Carlos Meinert, colega de turma da faculdade e meu sucessor no Centro Acadêmico Hugo Simas (CAHS), pedimos ao soldado de serviço que nos acompanhasse ao banheiro, junto ao pátio interno, o que propiciaria melhor escuta e eventual identificação da fala, bem como o tema tratado. Dito e feito. Com alguns minutos de escuta, identificamos que alguém estava a dar aula. O tema era referente à “Teoria do Risco e Imprevisão”, matéria apaixonante do Direito Privado.
As lições que estávamos a ouvir, com possibilidade remota de erro, estavam sendo ministradas pelo nosso Professor José Rodrigues Vieira Neto, catedrático de Direito Civil, de quem não se tinha notícias desde o mês de março daquele ano (1964). Falando com o Oficial de Dia, Capitão Meireles, tivemos a confirmação: se tratava mesmo de nosso Professor Dr. Vieira Neto, o qual, na qualidade de preso no quartel, lá estava proferindo aulas de Direito Civil, atendendo a nove Oficiais da Polícia Militar, alunos da Faculdade de Direito de Curitiba, que não queriam perder a oportunidade de ouvir o festejado civilista, ex-Deputado Constituinte de 1946 e ex-Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Paraná, enquanto este permanecesse recolhido, à disposição da Auditoria Militar da 5ºRM.
Revogada a minha prisão cautelar, retornei às aulas e, abonadas as faltas pela congregação da direção da Faculdade de Direito, fui aprovado e pude colar grau.
No início do exercício profissional, por cautela, eis que ainda tramitava o procedimento penal militar – com recurso interposto atacando o recebimento da denúncia – em face dos universitários curitibanos, não funcionei diretamente na Auditoria Militar.
Anuladas as denúncias pelo STM (Superior Tribunal Militar), em três oportunidades, eis que declaradas ineptas, o que culminou, após a última decisão, com pedido de arquivamento dos autos pelo Ministério Público Militar, integrei-me na equipe dos advogados atuantes na Auditoria Militar, pois eram amigos, colegas e Professores que, a par de todas as dificultadas impostas pela Justiça Castrense, militavam com dignidade, em prol da defesa das liberdades tolhidas de forma arbitrária, indigna e covarde.
Os Professores René Ariel Dotti, Alcides Munhoz Neto, José Lamartine Corrêa de Oliveira, os penalistas Élio Narezi, Antônio Acir Breda, José Carlos de Castro Alvim, os defensores públicos Oldemar Teixeira Soares, Albarino de Mattos Guedes e Aurelino Maeder Gonçalves, entre tantos outros, despontavam como incansáveis batalhadores na defesa intransigente dos direitos e garantias individuais dos presos políticos, fossem eles profissionais liberais, professores universitários, lavradores ou estudantes de segundo grau.
A coesão e o espírito de dedicação profissional dos advogados era indiscutível.
Parece-me, contudo, relevante registrar um episódio que a muitos emocionou e a mim, particularmente, ficará registrado por toda a vida.
O defensor de um dos presos políticos fazia sua sustentação na Sessão do Conselho da Auditoria Militar, procurando obter o relaxamento da prisão de seu constituinte, com postura de voz inflamada, duro sem ser rude, viril, mas não ofensivo, nas teses sustentadas. De repente, foi interrompido pela Presidência do Conselho, com a aquiescência do Auditor, para “decretar a prisão em flagrante” do advogado, “por crime de desacato ao colegiado julgador.” Ouviu-se protestos de todos os advogados presentes e todos, sem exceção, consideraramse presos, pois também atingidos pela violência exponencial, desmesurada e absurda da decisão e, em razão dela, comunicaram que acompanhariam o colega ao ergástulo. A sessão foi suspensa e, decorrido algum prazo, a Presidência do Conselho, reabrindo os trabalhos, declarou que estava reformada a decisão, continuando os julgamentos.
E assim foi. A vida prosseguiu. As instituições foram se fortalecendo. Os partidos políticos sendo novamente constituídos. As eleições diretas asseguradas. A Assembléia Nacional Constituinte e a Constituição Cidadã acabando por coroar a normalidade democrática como um todo.
Oto Luiz Sponhols é Desembargador aposentado do TJPR, ex-Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil-PR, ex-Conselheiro Federal e Estadual da OABPR, ex-Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná; ex-Presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Paraná; ex-Corregedor Geral da Justiça do TJPR, ex-Vice-Presidente e Corregedor Eleitoral do TRE/ PR, ex-Presidente do Tribunal de Justiça Desportiva do Estado do Paraná, Professor aposentado das disciplinas de Direito Penal e Constitucional da Pontifícia Universidade Católica do Estado do Paraná.
Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014
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