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Advogados

Omar Ferri

7 de dezembro de 2022

Pequenas histórias daqueles tempos

Eu tinha que comparecer a uma audiência em Santa Vitória do Palmar, Município Gaúcho situado no extremo Sul do Brasil, que faz divisa com a República Oriental do Uruguai. Acompanhavame o Nuno Carpena de Meneses. Natural de Pelotas, ele era o decano dos Procuradores de Justiça do Estado. Ambos éramos amigos do ex-Governador Leonel Brizola, que estava exilado no Uruguai, aliás, de quem eu era também advogado, pois, a pedido seu, estava fazendo o inventário de sua mãe, Dona Oniva, que havia falecido em Carazinho – RS.

Terminada a audiência, o Nuno olhou para mim (eu logo notei que ele fez uma cara de estar imaginando coisas) e sugeriu: “Vamos visitar o Brizola?” Nem pestanejei. Olhei para ele e disse: “É prá já.”

Eu recém adquirira um flamante Volkswagen 1962, que estava pagando em prestações, o que era o máximo de minhas aspirações em matéria de automóvel. Fomos até a vila do Chuí, que na época era distrito de Santa Vitória, hoje é cidade. Trocamos cruzeiros por pesos na loja de um jordaniano chamado Samuel. Embora não tivéssemos a mínima ideia, estávamos sendo seguidos. Eu tinha retornado de Brasília, expurgado que fora do cargo de procurador da Fundação Brasil Central, passando a residir em Porto Alegre, onde instalei meu escritório de advocacia. Além de advogado, eu era suplente de Deputado e, nas vezes que assumia a Assembléia, aproveitava para acusar as perseguições e os desmandos da ditadura militar. Aos poucos me tornei advogado dos mais requisitados na defesa de estudantes, ativistas, perseguidos políticos, “terroristas”, petebistas brizolistas, janguistas e opositores de todos os gêneros. Dado o meu jeito de enfrentar o autoritarismo e denunciar as arbitrariedades com contundência, rapidamente, tornei-me conhecido em todo Estado. Creio que esta tenha sido a causa para espionarem minhas movimentações, sob as ordens de uma unidade do Exército, sediada em Santa Vitória, que controlava um posto de fronteira, na divisa do Chuí brasileiro com o Chuy uruguaio.

Trocamos o dinheiro e nos tocamos para a praia de Atlântida, distante uns 40 quilômetros de Montevidéu, onde Leonel Brizola estava confinado a pedido do governo brasileiro. Conversamos e trocamos ideias até bem tarde da noite. Após, seguimos para Montevidéu. No dia seguinte, iniciamos nossa viagem de retorno. Primeiro, fomos dar uma esticada em Punta del Este. Lá aproveitamos para almoçar. Nas primeiras horas da tarde, seguimos em direção ao Chuí. Conforme tomei conhecimento pelo próprio tenente que me prendeu, havia uma ordem de detenção contra mim, expedida para todos os postos da fronteira Brasil/Uruguai.

O dia já ia se indo quando atravessamos a fronteira, no Chuí, e seguimos por uma estrada de mais ou menos dois quilômetros, onde havia uma casa de madeira, que servia de sede do posto de fronteira do Exército. Na frente do posto eu deveria infletir à esquerda e, mais adiante, tomar à direita e seguir pela BR.

O carro rodava vagarosamente na carreteira que se encontrava em péssimas condições de trânsito. Ao chegarmos defronte ao destacamento, observei a saída de dois vultos de dentro da casa, que, a passos rápidos, postaram-se na frente do meu carro. Um tenente, portando uma metralhadora, disparava rajadas de tiros, e o sargento, empunhando um fuzil, imitava seu superior. Ambos davam tiros para o alto, imaginando que daquela forma me amedrontariam. Eu permaneci calmo. O Nuno estava branco como cera, nem falava. O tenente veio para o meu lado, abriu a porta do Volkswagen, sempre empunhando a metralhadora, disparou:

“O senhor é o Dr. Omar Ferri?” Eu respondi: “sou.” “Pois o senhor está preso! O Dr. Nuno está livre.” Ele nem bem tinha terminado de falar, quando eu disse: “ Não sei por quê?” “ O senhor foi para Montevidéu visitar o Brizola!”

Eu logo contestei: “Visitar uma pessoa não é crime. E, quanto à visita, o senhor é que tem que provar.” Como minha argumentação não tinha nenhum valor, no mesmo momento fui conduzido ao quartel militar de Santa Vitória do Palmar. Nesse quartel, durante três dias, o interrogatório continuou, de manhã, de tarde e de noite: “O senhor foi visitar o Brizola.” Eu negava.

Ocorre que o Nuno era amigo do Comandante do Batalhão com sede na cidade de Rio Grande, Cel. Cid Scarone Vieira. Era ele quem coordenava o destacamento de Santa Vitória do Palmar. Nuno, após chegar a Pelotas, para onde foi levado por um cunhado, valendo-se da antiga amizade, telefonou ao Coronel, dizendo-lhe que eu havia sido preso no Chuí e que, contra mim, pesava apenas a acusação de ter ido visitar o Brizola. Nuno argumentou, dizendo que, mesmo que a visita tivesse ocorrido, o fato não tipificava crime, pois ninguém poderia ser preso com base nesse ridículo pretexto.

Naquele tempo as unidades policiais e militares comunicavam-se através dos serviços de rádio. O Coronel Cid, constatando que tinha havido uma prisão sem causa, enviou um fonograma ao Tenente Gweer (esse era o nome do militar autor da prisão) ordenando minha libertação, caso não estivesse preso por outro motivo.

O senhor está liberado, informou o grotesco oficial, mas seu carro fica preso. Fiquei surpreso. Por esta eu não esperava. Perguntei-lhe, por que razão? “ Por razões de contrabando.” “Mas eu fui e voltei e o carro está aqui, do lado brasileiro, como o senhor pode me acusar de contrabando? “Acontece que o senhor poderia tê-lo vendido no Uruguai.” Ao que respondi: “mas não vendi!” A conversa foi se encompridando, sempre no mesmo sentido. Até o momento em que eu perdi as estribeiras, dizendo-lhe: “ Está bem. O carro fica preso. Lavre então o auto de apreensão e me dê uma certidão, pois irei à Justiça Federal impetrar um mandado de segurança contra a ilegalidade do ato.

Creio que minhas palavras causaram algum arrepio ao tenente. A simples menção de buscar meus direitos na Justiça foi motivo mais do que suficiente para que ele liberasse o veículo.

Entrei no carro e rumei à Pelotas. Olhava de vez em quando para trás. Já estava sofrendo de paranoia, pois imaginava que o militar com o Jeep do Exército viesse me prender novamente, por qualquer outro motivo.

Tarde da noite, ao chegar ao vetusto casarão onde eu morava, no centro velho de Porto Alegre, premi a campainha e comecei a subir as escadas. Lá no topo, minha mulher meio espantada, interrogou-me: “Dá para me explicar por onde tu andaste?”

O Habeas Corpus

Romeu Scaglia Barlese nasceu em Carazinho. Naqueles tempos morava em Porto Alegre, onde exercia a profissão de corretor de imóveis. Era casado com Noely Heinrich Barlese. Eles tinham três filhas, todas menores. Sem dúvida, era portador de um grande defeito moral para o período da pós-quartelada. Tinha o amigo Brizola no coração e a revolução na alma. Não a revolução ideológica, portadora de fracasso congênito. Ele considerava que meras idealizações formalizadas em textos semânticos careciam de substância social e, por esse motivo, tudo terminava em ditadura. Forte nesses pressupostos, sua base política era o PTB de Brizola, e sua luta social encontrava eco nas Reformas de Base do presidente João Goulart, principalmente em relação ao projeto da Reforma Agrária.

Fora esses aspectos, não tipificadores de crimes, não havia motivo algum para que fosse preso. Mas, esse era apenas um argumento vazio. Militares e ditadura dispensavam razões prisionais. Qualquer pessoa poderia ser acusada de comunista, subversiva ou contrarevolucionária, e, como consequência, qualquer delas poderia ser presa imotivadamente.

Acontece que Romeu foi preso por ordem do Coronel Marcilac Motta, Subcomandante do 18º Regimento de Infantaria. A prisão ocorreu no mês de novembro de 1965 e estava sendo cumprida na 1ª Companhia de Guardas, Unidade subordinada ao Comando do III Exército.

Algumas semanas se passaram sem que fossem instauradas sindicâncias ou inquéritos, por estas razões, Romeu não tinha sido ouvido. Depois de um mês, a família começou a enfrentar problemas de ordem financeira e, a cada dia que passava, a incerteza quanto ao futuro mais fazia aumentar a dor e o sofrimento dos familiares, já pressentindo que passariam Natal e Ano Novo sem a presença do chefe.

Eu era advogado de Barleze em algumas causas cíveis. Anos depois, o defendi em um IPM que tramitava na Auditoria Militar de Juiz de Fora-MG. Lá ele foi absolvido. Mais tarde, pelos mesmos motivos, foi denunciado na Auditoria Militar de Curitiba, pela prática de crime previsto na Lei de Segurança Nacional. Nesse IPM ele foi condenado a 14 anos de reclusão. Foi acusado de manter ligações com um casal contrarevolucionário, responsável pela tentativa de instalar um foco guerrilheiro nas montanhas próximas à cidade de Crisciuma-SC. O advogado de Curitiba provou, com testemunhas, que Romeu não poderia ter se reunido com o referido casal, pois na data assinalada, assistia, com amigos, a uma partida de futebol em Carazinho. De nada adiantou. Para o IPM, esse era apenas um detalhe sem nenhuma importância.

Mas, voltemos ao fato que nos interessa. Três dias antes do Natal de 1965, Dª Noely esteve em meu escritório. Estava preocupada com a demora das providências militares. Paralelamente, um ato discricionário havia suprimido o direito constitucional ao Habeas-Corpus. Estávamos impedidos, por uma determinação iníqua, de invocar a medida excelsa nos casos de prisões ilegais ou decorrentes de falta de justa causa para alguém ser processado.

Frente à perplexidade, ocorreu-me que poderíamos, à vista das circunstâncias, impetrar uma ordem de HC diretamente ao General Justino Alves Bastos, Comandante do III Exército. Eu iria redigir uma petição com todas as características e formalismos de um Habeas, para apresentá-la diretamente ao Chefe Militar.

Traçado o procedimento, entrei em contato com seu Gabinete e solicitei, em nome da mulher e das filhas, que fôssemos recebidos pelo Comandante.

Incrivelmente, a audiência foi designada, se não me equivoco, para o dia 23 de dezembro de 1965. Explicamos ao General a situação a partir de nossa óptica. Mencionamos as festas de Natal e de fim de ano, e apelamos para sua alta compreensão e espírito cristão. Entregamos o “Habeas” e pedimos que o detido fosse posto em liberdade.

O General-Comandante, sabedor dos fatos, olhou para nós e com voz clara, mas cheia de autoridade afirmou: “não vou libertá-lo no Natal, mas garanto que após o Ano Novo ele será solto.”

Saí do Quartel General com a consciência jurídica tranquila, dado o deferimento da medida impetrada, e Dª Noeli, com a convicção de que em poucos dias teria seu marido de volta.

Imaginamos que, daí em diante, Romeu estaria livre de processos penais militares. Doce sonho de uma noite de verão. Condenado anos mais tarde à pena antes referida, escondemos o Romeu por três dias no apartamento do Engº Homero Simon, técnico de som da Rádio Guaíba, que colocou no ar a Rede da Legalidade, e depois viajamos para Santana do Livramento. Àquela altura, eu estava melhorando de vida, já era proprietário de uma flamante Variant. Como estratagema de viagem, minha mulher, Maria Helena, ia no banco dianteiro com um filho nosso no colo. No banco de trás, o “fugitivo” e sua mulher.

Passamos por três postos do Exército. Em todos eles eu deveria exibir os documentos do carro e minha identidade. O nome do Romeu constava nas listas das barreiras. Depois de conferidos os documentos, apenas olhavam para o banco de trás e pediam para onde estávamos indo. Informávamos, sem pestanejar, que nos dirigíamos a Santana do Livramento, para visitar parentes. Atravessada a última barreira, cheguei à praça Internacional de Santana/Rivera, que eu não conhecia. Também não fazia a menor idéia por onde passava a imaginária linha divisória, mas foi o suficiente para ver, do outro lado da praça, uma casa que na parte de cima da platibanda estava escrito CARNICERIA. Gritei ao Romeu: “estamos salvos”, ao que o Romeu retrucou: “Viva a Liberdade!”

Romeu ficou exilado com sua família em Montevidéu até a promulgação da Lei de Anistia. Voltou ao Brasil na mesma época do retorno de Brizola. Dª Noely faleceu. Romeu casou de novo e retornou a sua cidade natal onde vive até hoje.

Omar Ferri é Advogado, ex-Presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos de Porto Alegre e ex-Procurador Federal.

Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014



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