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Advogados

Obregon Gonçalves

6 de dezembro de 2022

Fatos pitorescos da Justiça Militar

No período de março de 1964 até a restauração da democracia no País, funcionamos na defesa de centenas de brasileiros que foram presos, denunciados, processados e julgados perante a Justiça Militar, com sede em Juiz Fora, 4ª Circunscrição Militar.

Nos inúmeros processos dos quais participamos, aconteceram alguns fatos pitorescos, que bem podem demonstrar a fragilidade das provas e até mesmo o ridículo de como eram conduzidos os procedimentos. Vamos narrar dois fatos.

No primeiro, foram denunciados e processados perante a Auditoria da 4º RM, com sede em Juiz de Fora, dezesseis cidadãos como incursos no art. 2º da Lei de Segurança Nacional, crime dos mais graves. Eram todos funcionários dos Correios e Telégrafos, exercendo a função de carteiros.

Para sustentar a denúncia que veio com o IPM respectivo, o Ministério Público arrolou como testemunha o Sr. Cândido Siqueira que, dentre outras funções, exercia a de Juiz Classista do TRT/MG e também era Presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria.

A instrução criminal foi realizada em Belo Horizonte, através de Carta Precatória que foi distribuída para o Juízo da 8ª Vara Criminal da Capital, que tinha como Juiz titular o Dr. Pedro Anísio Maia e Promotor o Dr. Pedro Rola Sobrinho.

No dia da audiência que estava designada para as 13 horas, a Seleção Brasileira de Futebol realizaria uma das partidas para disputa da Copa do Mundo, reinando, portanto, grande ansiedade do povo brasileiro. Na hora aprazada para a audiência, feito o pregão, compareceu a testemunha Sr. Cândido Siqueira que, depois de devidamente qualificada, ouviu atentamente a leitura da denúncia, confirmando-a na sua integralidade. O Ilustre Representante do MP, diante da confirmação da denúncia, não fez nenhuma pergunta. Os réus, em número de dezesseis, estavam presentes à audiência, pois àquela época encontravam-se presos nos xadrezes do DOPS de Belo Horizonte. Dada a palavra à defesa, indagamos da ilustre testemunha, Juiz Classista, se conhecia o primeiro dos denunciados, Francisco Farias do Nascimento, ao que indagada, a testemunha respondeu afirmativamente. Diante da resposta afirmativa requeremos ao Juiz que indagasse da testemunha se ele podia apontar, dentre os réus presentes, qual era Francisco Farias do Nascimento. A testemunha sem rebuços disse que não podia apontá-lo, já que não o conhecia pessoalmente, mas que tinha ciência que dito acusado era comunista, cidadão perigoso e que havia tentado mudar a ordem constituída do País. Passamos à indagação do 2º acusado, Caricio de Oliveira, cidadão negro, que tinha um vasto bigode, se a testemunha o conhecia. Havendo a resposta afirmativa, repetiu-se a mesma pergunta, ou seja, se podia apontá-lo entre os réus presentes; a resposta veio no mesmo tom de que era comunista e havia tentado mudar a ordem constituída do País. E assim continuamos a inquirir a testemunha, nominando os acusados até chegar ao décimo sexto, sempre obtendo a mesma resposta.

A testemunha não contou nos dedos o número de réus e fomos para o décimo sétimo, que era inexistente, perguntando se a testemunha conhecia o acusado Edson Arantes do Nascimento, tendo a testemunha afirmado, no mesmo tom de arrogância, que o réu era perigoso e comunista, bem como havia tentado mudar a ordem constituída do País.

A testemunha, com sua resposta, disse que Pelé era perigoso e comunista, além de ter atentado contra a ordem constituída do País.

Moral da história, os réus foram absolvidos pela Justiça Militar, porque a testemunha faltou com a verdade.

O segundo caso refere-se a um processo volumoso em que foram denunciados cento e cinquenta e cinco estudantes; dentre os referidos réus tínhamos Hebert de Souza, o Betinho, e o hoje Professor Sacha Calmon Navarro Coelho.

No dia do interrogatório na Justiça Militar, em Juiz de Fora, os acusados iam sendo apregoados pelo escrivão, Sr. Nilson Marques, até que chegou a vez de Sacha Calmon Navarro Coelho, jovem estudante de Direito de pouco mais de 18 anos e que era dotado de um espírito mordaz.

Apregoado, Sacha adentrou o salão de audiência, apresentando-se ao Juiz Auditor, Dr. Waldemar Lucas de Carvalho Rego. Para espanto geral, o Dr. Waldemar determinou ao escrivão que repetisse o nome do acusado para, logo após, dirigindo-se aos presentes, repreender o serventuário, dizendo que não admitia que se pronunciasse o nome dos réus erroneamente, uma vez que o nome daquele acusado não era Sacha, mas sim Sachá! Como no bom francês. O Auditor, dirigindo-se ao acusado, indaga: “Não é meu filho?” Ao que Sacha responde, “não, meu nome não é Sachá, mas sim Sacha, e não é francês, é russo mesmo”.

Faz-se um silêncio sepulcral no auditório, todos esperavam uma reação do Auditor, mas este inteligentemente vendo que a ficha havia caído, retoma a palavra esquecendo-se do incidente e prosseguindo no interrogatório. À época, era cantor famoso Sachá Distel, que era francês.

Obregon Gonçalves é Advogado Criminalista, atuando perante Justiça Comum, Militar, Tribunais Superiores, já tendo realizado mais de 1400 júris. Membro do Instituto de Advogados de Minas Gerais, ex- Presidente da Caixa de Assistência dos Advogados de MG e Vice-Presidente da OAB-MG. Autor dos livros “Do Procedimento do Júri’’ e O Magistrado’’ .

Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014



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