Nilo Batista
A coragem de Ângela
Numa ensolarada manhã do outono de 1972, os moradores da rua Inhangá, em Copacabana, escutaram sirenes e berros. Das janelas puderam ver umas dez viaturas oficiais, com suas luzes intermitentes, dispostas em semicírculo diante das portarias de certo edifício, ocupada por homens armados. Logo em seguida, ouviram-se disparos. A vizinhança que assomara às janelas recolheu-se, temerosa, e passou a espiar por detrás das cortinas.
Em certo momento, uma jovem loura, bem trajada, saiu da portaria do prédio sitiado, cumprimentando polidamente os homens armados. Quando ela já estava quase na calçada oposta, os policiais perceberam a mancha de sangue nas costas de seu vestido escuro. Lançaram-se sobre ela, que, já ferida por um projétil que ingressara no ventre e saíra nas costas, pouco resistiu. Algemada e encapuzada, foi jogada na cela de uma das viaturas e levada para o Pelotão de Investigações Criminais que, sob a gestão do DOI-CODI, funcionava no Batalhão de Polícia do Exército da rua Barão de Mesquita, na Tijuca.
Na verdade, Ângela – militante que integrava um grupo político de resistência armada à ditadura – ocupara, com outros companheiros, um apartamento daquele edifício, e nele se encontrava quando da chegada dos policiais e militares. Confrontou-se com eles e, na névoa do tiroteio, logrou, mesmo baleada, chegar às escadas do prédio. Livrou-se da arma pela lixeira, confiou em sua aparência de classe média alienada e resolveu tentar a fuga pela porta da frente. O princípio de que a seletividade do sistema penal se orienta pelo estereótipo foi confirmado: os policiais retribuíram gentilmente o cumprimento de Ângela e lhe abriram a porta. Mas o tiro transfixante não lhe concedeu mais que dez metros de liberdade, denunciando-a a uns olhares que já não eram investigativos.
No quartel da Barão de Mesquita, Ângela começou a ser barbaramente torturada, como tantos brasileiros engajados na resistência ao governo ilegítimo. A hemorragia, contudo, a enfraquecera, e logo ela perdeu os sentidos, sendo removida para uma dependência do Hospital Central do Exército, em Triagem. Só então, estando ela inconsciente, recebeu atenção médica, sendo suturadas as feridas de entrada do projétil, no ventre, e de saída, nas costas.
Quando Ângela voltou a si, percebeu que pretendiam levá-la novamente para a Barão de Mesquita. Afinal, ela praticamente não falara nada, e certamente conhecia personagens e locais que interessavam muito aos torturadores. Ficou atenta, embora simulando uma conveniente letargia. Quando o pessoal do DOI-CODI entrou em seu quarto para levá-la, Ângela foi mais rápida: enfiou o indicador direito na parte inferior da ferida ventral e puxou para cima, estourando todos os pontos. Com isto, foi preciso novo atendimento médico e seu retorno ao DOI-CODI viu-se adiado por algum tempo. Muitas informações de que ela dispunha caducaram. A partir de então, foi ela algemada no leito hospitalar, para não mais retardar a salvação do País do perigo comunista.
Fui, trabalhando ao lado de Heleno Fragoso, advogado de Ângela. Omiti seus sobrenomes, mas não resisti a registrar o verdadeiro prenome dessa corajosa compatriota. À parte alguma imprecisão (talvez não tenha sido no outono de 1972 e sim no inverno de 1973) os fatos e locais são rigorosamente verdadeiros. Ingenuamente tentei visitá-la na Barão de Mesquita, e um oficial superior que me atendeu na porta, e aliás atenciosamente, ajudou-me a compreender as sinuosas relações entre violência e direito; eu ainda não havia lido Benjamin.
Nilo Batista é Advogado Criminalista, Professor Titular de Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014
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