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Advogados

Nelson Trad

7 de dezembro de 2022

As sandálias do Padre Jentel

Fábio Trad*

Nos anos de chumbo, a advocacia era a única tribuna de que dispunha o jovem Nelson Trad, cassado pela ditadura militar após ter sido eleito, com votação consagradora, à Vice- Prefeito de Campo Grande, pelo PTB.

O escritório situava-se no centro da cidade e nele constantemente reunia-se o pessoal do PTB janguista, para discutir política e outros assuntos. Claro, tudo na moita.

Em uma dessas manhãs que insinuava rotina, a secretária anotou o recado e foi ter com seu destinatário, na sala onde estava peticionando na velha e amiga Remington:

“Do Rio, Dr.Heleno Fragoso quer lhe falar com urgência.”

Surpreso e, porque não dizer, curioso com a ilustre ligação de um dos mais famosos advogados brasileiros, professor consagrado mundialmente, retornou a ligação com a presteza da urgência pedida:

“Bom dia, Querido Professor, a que devo a honra?”

“Nelson, preciso de você aí em Mato Grosso, para me ajudar na defesa de um padre processado na auditoria militar. É o Padre Jentel, François Jackes Jentel.”

O padre francês estava sendo acusado de subverter a ordem junto aos posseiros e colonos da região noroeste de Mato Grosso, na cidade de Santa Therezinha, enfrentando os interesses de uma grande agropecuária chamada Codeara.

Jentel era um padre missionário conhecido por sua simplicidade e carisma. Pregava com a eloquência dos justos e caminhava grandes distâncias com suas sandálias empoeiradas, para cumprir sua missão sacerdotal.

Heleno Fragoso solicitou a Nelson Trad que conduzisse a fase instrutória do processo. É bom lembrar que, nesta época, Nelson, o advogado de presos políticos e cassado, era vigiado pelo sistema militar.

A instrução processual se deu sem intercorrências, e as provas produzidas revelavam a absoluta improcedência da acusação.

Designada a data para o julgamento, Heleno Fragoso viajou para Campo Grande, a fim de realizar, em conjunto com Nelson Trad, a defesa oral no “júri” militar.

O evento jurídico gerava muitas expectativas, afinal, não era comum o julgamento de um padre, tendo na tribuna de defesa um dos mais combativos advogados do país e o vice-prefeito cassado da cidade. Campo Grande só falava do júri!

Hospedado no hotel Campo Grande, o Professor Heleno ligou para o seu colega de defesa e combinaram de repassar os principais pontos da defesa que fariam da tribuna.

Depois de algumas horas de trabalho no hotel, Heleno Fragoso e Nelson Trad tomam o elevador em direção ao térreo, para se despedirem, já que no dia seguinte ocorreria o julgamento.

Antes de chegar ao destino, o elevador para e entram dois homens conversando de forma distraída. Ambos de uniforme do Exército brasileiro.

Sem se darem conta de que aqueles dois supostos hóspedes que desciam no elevador eram os advogados de defesa do Padre Jentel, as autoridades abriram o verbo:

“E amanhã, quantos anos vamos aplicar no padre comunista?”

“Acho que uns dez anos é suficiente para aquele subversivo. O que acha?”

“Dez? Só pode estar brincando… Tem que dar uma pena mais dura, pra ele aprender…”

Abrindo a porta do elevador, com os dois continuando a conversa normalmente em direção à saída do hotel, o olhar estarrecido do Professor revelava o desalento daquele inesperado, mas providencial encontro involuntário com os julgadores do dia seguinte. Nelson Trad, perplexo!

“E agora, Professor?”

“Precisamos falar com o padre. Ele precisa saber.”

No dia seguinte, instalada a sessão, os advogados de defesa, embora cientes da antecipada condenação que se vislumbrava, vocalizaram um dos mais brilhantes discursos de defesa que se viu em toda a história forense do Estado de Mato Grosso.

Auditório lotado, não houve quem, findos os debates, apostasse na vitória da acusação, com exceção, é claro, daqueles que já sabiam que o julgamento tinha um roteiro predeterminado.

A condenação do padre se confirmou exatamente como a conversa flagrada havia prenunciado.

Tempos depois, o Padre Jentel, já fora do país, recordou todas as nuances do processo em carta endereçada ao seu advogado, Nelson Trad. Com ela, encaminhou os seus honorários:

“A quem lutou pela causa da Justiça e da Liberdade sem temer a força do arbítrio e da prepotência, os meus respeitos. Que Deus o abençoe!”

Foi assim que, pela última vez, Nelson Trad teve contato com o seu cliente, não sem antes abrir a caixa onde estavam os “honorários” por ele enviados pelo correio: as sandálias do Padre Jentel!

E Nelson Trad chorou a emoção do autêntico advogado criminalista.

*Fábio Trad é Advogado, Deputado Federal e filho de Nelson Trad.

Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014



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