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Advogados

Nelio Machado

13 de dezembro de 2022

Honra e Glória

O que dizer e lembrar sobre tempos não tão distantes assim, em que o País se defrontou com um golpe de Estado?

Alguns reacionários, as mais das vezes, chamavam o movimento de 1964 como “Revolução”. Nada mais equivocado, pois o que ocorreu, induvidosamente, foi a ruptura do Estado de Direito, com garantias individuais reduzidas a coisa nenhuma.

Não bastasse a violência do período que então se iniciara, no ano de 1968, quando parecia, no Brasil e no mundo, particularmente, na França, que tudo iria mudar, tantas as manifestações em antítese à realidade repressora e sinistra, aconteceu o pior, eis que em 13 de dezembro de 1968, surgiu no acervo de normas criadas pela Ditadura o ignominioso e nefando Ato Institucional n.º 5, suprimindo-se o habeas corpus, instrumento clássico da formação sócio-política do País, cujo elastério é devido, em larga medida, ao insuperável Rui Barbosa.

Em 1965, através do Ato Institucional n.º 2, conferiu-se à Justiça Militar a competência para processar e julgar os crimes de natureza política, utilizando-se, como Diploma incriminador, a famigerada Lei de Segurança Nacional, com tipos abertos e penas timbradas por desmedido rigor, constando dentre elas a cominação de prisão perpétua e mesmo a de morte.

Pela participação dos militares da derrubada do Presidente João Goulart, a expectativa dos integrantes do chamado “comando supremo da Revolução” era a de que os julgamentos fossem verdadeiros massacres, pois, afinal, como dito por vários dos advogados de então, especialmente pelo saudoso Evaristo de Moraes: “os vencedores julgariam os vencidos”.

Pouco restava aos advogados, senão levantar a força de suas vozes, em alto e bom som, clamando e verberando por julgamentos justos, valendo-se para tanto de Lei concebida, também, nos desvãos do Estado de exceção, a saber, o Código de Processo Penal Militar, o qual, repleto de imperfeições, continha alguns preceitos que viabilizavam um mínimo de contenção contra os que pretendessem se transformar de julgadores em justiceiros.

Imaginava-se que a Justiça Militar fosse repetir, com todos os seus desvios e perversidade, o Tribunal de Segurança Nacional, o qual, ao tempo do Estado Novo, no período de Ditadura do Governo Getúlio Vargas, não passava de uma Corte em que se simulava fazer Justiça. Naquela época, nos idos de 1937, já se erguia o corpo franzino, com a postura intimorata e intrépida de Sobral Pinto, exemplo de paladino das liberdades, cuja resistência se projetou, estendendose em nossa história, como baluarte, igualmente, da defesa de perseguidos políticos no golpe de 1964.

Ao lado de tal personagem emblemático, pode ser dito – quanto aos outros que se incorporaram à luta – que lhe seguiram o exemplo.

Da minha experiência como advogado militante, já depois do Ato Institucional n.º 5, pude participar de várias defesas ao lado de figuras exponenciais deste ofício sem igual, o de defender o semelhante, sem medo, sem trégua, sem se dobrar à covardia de um regime que não tinha compromisso com a ordem jurídica, que fora solapada e era remota a esperança de que voltasse, ao menos com brevidade, a ser restabelecida no País.

Dos poucos advogados que assumiram o encargo destas defesas pode-se afirmar, com justiça, que, ao fazê-lo, atingiram os umbrais da honra e da glória da profissão.

Mal se conheciam, mas atuavam como se fossem uma irmandade, uma confraria, criando-se ambiente de tal solidariedade que seria impensável e até mesmo incompossível que a defesa de um réu pudesse implicar em atingir a de outro. Havia, por assim dizer, um partido político, o da defesa sem peias e sem medo, denunciando-se torturas e violências ocorridas nas masmorras do País.

Passou-se o tempo, ficou a história da honra e da glória, e os exemplos marcantes dos advogados que se faziam iguais, os quais procediam como se fizessem parte de outra revolução, a repetir, em realidade, o lema “igualdade, liberdade e fraternidade”. Noutras palavras, o que se via na atuação dos advogados era a observância de uma regra cunhada em metal precioso, a repetir expressão de antanho, “um por todos, todos por um.”

Não haveria um melhor e outro menos bom. Todos atingiam o cume da montanha, pelo denodo e dedicação; honorários não importavam, raramente eram cobrados, vários dos causídicos jamais os receberam; não se dava importância ao pão. Prevalecia o brado pela liberdade e a solidariedade diante da dor dos perseguidos e de suas famílias, quando a nação periclitava, nas sombras de um desordenamento que só fazia com que as noites se prolongassem e o sol da manhã fosse sonho, quimera, fantasia.

Vencemos a luta, com resistência digna e altiva, para a honra e glória da advocacia brasileira. Lamentavelmente, nos tempos atuais, procura-se apequenar-se e abastardar-se o papel dos defensores da liberdade, prestigiando-se a repressão com base em metodologias modernas e invasivas, tão perversas quanto os métodos do regime de exceção.

Por isso, é imperativo recordar, reviver, rememorar o que foram os advogados de ontem, sobretudo para que a imagem deles, muitos já distantes deste mundo, se projete como referência e norte dos que guardam idênticos compromissos em favor de uma Democracia efetivamente real e mantenedora das liberdades fundamentais.

Impossível terminar estas linhas sem destacar que minha modesta participação resultou do fato de trabalhar com o advogado Lino Machado Filho, meu pai, o qual mereceu inolvidável homenagem póstuma do Superior Tribunal Militar: a honraria e a glória de que a sala dos advogados daquela Corte tivesse seu nome: “Lino Machado Filho, o Advogado da Liberdade”. Tal fato justifica meu orgulho à vista de sua permanente e inesquecível dedicação à causa da Justiça, na qual acreditava fervorosamente com paixão juvenil, que o acompanhou até o fim de seus dias.

Digo finalmente que esta distinção prestada aos advogados que defenderam pessoas processadas no regime militar, sem a garantia do habeas corpus, enfrentando as vicissitudes de uma lei draconiana – a de Segurança Nacional – inscreve seus nomes no panteão da glória dos profissionais do Direito, verdadeiros sacerdotes da liberdade.

Nelio Machado é Advogado Criminalista, ex-Presidente do Conselho Penitenciário do RJ, Conselheiro Federal da OAB, no período de 2007/2010. Publicou o livro “Liberdade Liberdade, Habeas Corpus Sobre nós

Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014



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