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Advogados

Mario Simas

6 de dezembro de 2022

Tempo de trevas, tempo de lutas

Todo aquele que por opção ou contingência, fezse presente, ativa ou passivamente, no quadro político que se desenvolveu de 1969 a 1979, tem por dever registrar esses momentos através das diversas formas de comunicação, em obediência aos mais elementares direitos da pessoa humana.

Tal quadra de nossa história contemporânea há de ficar indelevelmente gravada na memória do povo, mormente da chamada elite intelectual, não podendo, como pretendem alguns, ser simplesmente apagada ou esquecida, para que a Nação não venha novamente a ser vítima do proceder desvairado de certos setores não submetidos ao império da lei.

Foi tempo caracterizado por duríssimos embates, em que o homem voltado e dedicado às coisas da Justiça viu-se abertamente testado, foi tempo marcado pelo oportunismo, que em falsas reputações se formaram, notadamente por aqueles que, sem qualquer idealismo ou respeito ao privilégio de viver, colocaram-se ao lado da força, em busca exclusivamente de proveitos materiais.

Tal como, em Nuremberg, os criminosos de guerra tentaram se exculpar dos delitos perpetrados contra a Humanidade, alegando aos seus juízes que estavam a cumprir ordens, em nosso País, os torturadores diziam-se obrigados a métodos desumanos para obter “informações”, mais tarde transformadas em “confissões”, porque se estava a viver uma guerra, diversa da tradicional, motivada por razões ideológicas e subversivas, tendo seu ponto alto na traição à Pátria.

É válido, porque ínsito na lei da guerra e na da conservação da espécie, o matar o inimigo; porém, até mesmo a guerra tem seus limites, consagrados em legislação especifica, sendo terminantemente defeso supliciar o inimigo feito prisioneiro. É legítimo e legal matar o inimigo em Combate; mas além de ilegítimo e ilegal, é por demais desonroso o gesto de o torturar depois de cativo.

Não podiam, como não podem os detentores do poder em qualquer época, transmudar o adversário político em inimigo, mormente entre irmãos, mesmo porque “a Pátria não é ninguém, são todos”, conforme muitíssimo bem sintetizou Rui Barbosa. Pior, mil vezes pior, em nossa trincheira como defensores da vida, liberdade e honra alheias, foi ouvir o que ainda se ouve de alguns juízes: ”Qual a polícia do mundo que não tortura?”

Sabemos que todas as polícias, umas mais e outras menos, valem-se de meios condenáveis para obter “confissões”, como também estamos cientes de que a omissão do Judiciário e do Ministério Público, quando ocorre, fingindo ignorar o que muitas vezes é notório, apenas serve para adubar o terreno em que nascem e medram, em nome de uma pseudo-eficiência, os despidos de qualquer respeito à pessoa humana.

A polícia que tortura é polícia incapaz e incompetente, porque é fácil, facílimo obter “confissões” supliciando um ser humano. Cremos que a impunidade de que goza o policial que se vale do torturador – este certamente um insano mental – é a razão primeira da violência que grassa em tal campo na nossa sociedade.

Inaceitável, sob os ângulos moral, jurídico, religioso e político, o conformismo do magistrado, do acusador público e do advogado que justificam a tortura, sob a alegação de que todas as polícias de todos os países procedem da mesma forma.

Lamentavelmente, e o advogado criminalista bem o sabe, há juízes e acusadores públicos que se omitem diante da verdade no que tange ao desrespeito à pessoa do réu. Daí a nossa conclusão de que os co-partícipes da cena judiciária, quando assim se conduzem por convicção, medo ou conveniência, nada mais são do que a voz da incompetente polícia que suplicia e não assume as consequências do ato.

Felizmente, o medo e a conveniência não tomaram conta de todos, pois constituímos um povo que encarna grandes valores.

É fora de dúvida que a tortura ao preso comum, em nosso país, sempre foi praticada sob o olhar indiferente de significativos segmentos da nossa sociedade.

É incontestável que o golpe de Estado de abril de 1964, quando não bloqueou, simplesmente suprimiu os canais de oposição política aos que empolgaram o poder, sendo que as medidas antidemocráticas baixadas no período presidencial do Marechal Castello Branco tinham prazo determinado, como se fossem um mal necessário para atingir o propósito dos mentores da insurreição.

Contudo, houve um crescer, segundo nos parece, que fugiu ao controle de certos setores do poder. Daí resultaram medidas legais altamente draconianas, perseguições na esfera administrativa para satisfação de caprichos e interesses pessoais, repressão e não aceitação de tudo aquilo que, direta ou indiretamente, ainda que em potencial, às vezes de acordo com uma visão puramente subjetiva, pudesse arranhar a tão decantada ideologia da Segurança Nacional.

A reação se fez sentir, como num processo químico, por parte dos grupos politicamente postos à margem desde abril de 1964, engrossados então pelo movimento estudantil, por expressivos setores da Igreja, das Forças Armadas e da elite intelectual.

Ao lado do trabalho desenvolvido pelos liberais e pela esquerda não extremada, no sentido de desobstruir os canais de manifestação política, o “Sistema”, como passou a ser denominada a estrutura de poder, implementava, gradual e paulatinamente, medidas cada vez mais autoritárias, em sintonia com as diretrizes de uma política internacional ditada e estabelecida em nome da sobrevivência dos povos livres do mundo ocidental.

Em consequência, foram arrastados aos cárceres da repressão política estudantes universitários, padres, militares, intelectuais e alguns operários.

A polícia, que sempre torturou o preso comum com a complacência dos setores privilegiados, passou a usar dos mesmos métodos para com o preso político, submetendo-o a humilhações e suplícios.

A celeuma não se fez esperar. O protesto pela tortura infligida ao perseguido político, que adotara a luta armada como proceder, varre o País em todos os quadrantes, ressoando no Exterior e nos organismos internacionais preocupados com os direitos humanos.

Em contrapartida às prisões de centenas de criaturas, de famílias inteiras, do desaparecimento de pessoas, da tortura institucionalizada, de métodos sofisticados de suplício e do terror friamente calculado, manifestaram-se, como podiam e no espaço que restava, a Igreja, a Ordem dos Advogados do Brasil, a Associação Brasileira de Imprensa e organismos como a Anistia Internacional e a Associação dos Juristas Católicos, esta com sede em Paris.

Não tendo mais a quem pedir ajuda, os perseguidos ou suas famílias, após súplicas que encontraram pouquíssimo eco no Congresso Nacional, clamaram à Igreja e à Ordem dos Advogados do Brasil para uma tomada de posição que colocasse um basta na onda de bestialidade, porque a vida não mais contava, a liberdade era pisada e achincalhada, os juízes eram subservientes à vontade dos carcereiros e a lei era alvo de escárnio.

A insensatez chegou ao ponto de erigir, como mansa e pacífica jurisprudência, a prisão preventiva de um preso político por tempo igual ao mínimo da pena cominada ao crime que lhe era atribuído.

A grande conquista no terreno dos direitos fundamentais da pessoa humana, que significa o habeas-corpus, esteve durante muitos anos banida do nosso Direito Positivo, para os réus acusados de violarem a Lei de Segurança Nacional.

A SOCIEDADE REAGE

A Ordem dos Advogados do Brasil não podia ficar silente em face de tantas ofensas ao Direito e à Justiça. Um veemente protesto do Sodalício, especialmente do Conselho Federal, tomou corpo, ganhou singular envergadura, invadindo sob a forma de avalanche libertária os pretórios e as faculdades de Direito. O “Sistema” quis impor-lhe o silêncio e tentou amordaçála, vinculando-a ao Ministério do Trabalho; porém a classe dos advogados, de passado honroso e de incontestável independência, resistiu galhardamente, pois ainda conta em seu seio com homens de grande estofo moral. Assim, os propósitos governamentais sucumbiram.

A Igreja, em perfeita sintonia e obediente à palavra de Cristo, ao empunhar a bandeira dos direitos humanos assumiu a vanguarda na luta pelo respeito à pessoa. Floresceram as Comissões de Justiça e Paz, os bispos elaboraram seguidos documentos apontando e divulgando os crimes de lesa-humanidade que estavam sendo praticados. D. Paulo Evaristo, cardeal Arns, quantas vidas terá salvo? Ciente das torturas e sevícias infligidas aos presos políticos em São Paulo, não vacilou em lançar um repto aos responsáveis pela Segurança Pública. Quando interpeladas por Sua Eminência, as autoridades mentiram, dizendo-lhe que não havia tortura em São Paulo, que tudo não passava de invencionice dos subversivos. Todavia, o autêntico pastor, em visita-surpresa que fez sozinho ao Presídio Tiradentes, em São Paulo, viu homens que traziam no corpo os sinais dos maus-tratos. Deixando aquele prédio, de triste lembrança, dirigiu-se ao edifício do DEOPS, no Largo General Osório, pois queria ver as câmaras de tortura. Obviamente, o acesso a tais dependências lhe foi negado e, mais uma vez, disseramlhe os responsáveis não haver tortura em nosso País, que tudo era obra dos terroristas, objetivando denegrir a imagem do Brasil no Exterior. Em vão o embuste oficial, porque ele vira e testemunhara. A partir de então, desencadearia uma luta constante em prol do fraco, atendendo ao clamor do povo e tornando-se a voz dos violentamente emudecidos.

Ministros, governadores, militares, parlamentares e secretários de Governo passaram, daí por diante, a ser cobrados por aquele estado de coisas, por aquela ignomínia. As mortes covardes de Alexandre Vannuchi Leme, estudante da Universidade de São Paulo, Wladimir Herzog, jornalista, e Manoel Fiel Filho, operário metalúrgico, nos indevassáveis porões da repressão, fizeram o povo se unir ao redor do verdadeiro pastor.

Protestantes, judeus, católicos e materialistas se juntaram na Catedral da Sé, para, a uma só voz, em nome da vida, da liberdade e da dignidade humana, dizerem “não” à estupidez desenfreada que assolava a Nação.

Os primeiros passos para o processo de abertura política estavam sendo dados, graças ao sangue de um jovem exemplar, de um jornalista de escol e de um trabalhador metalúrgico sindicalizado.

Os filhos das trevas, os que agem à socapa na calada da noite, porque temem a luz e sob os seus raios não sobrevivem, recuaram. Enganam-se os que pensam que bateram em retirada, porque apenas mudaram a estratégia, passando a agir de acordo com a nova realidade.

Em suma, aos pregoeiros da guerra permanente, que nela veem a verdade absoluta, seja qual for o matiz, contra-argumentamos que a grande família humana caminha por obra e graça do trabalho que enobrece e dignifica o homem, porque os filhos do amor respeitam a Natureza, uma vez que são parte integrante dela.

Mario de Passos Simas é Advogado, defensor dos Direitos Humanos.

Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014



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