Maria Regina Pasquale
Recordando tristemente
Hoje é o sétimo dia do ano de 2014. Os jornais, as pessoas, a internet… relembram que, em 1964, a ditadura militar foi instalada no Brasil. Cinquenta anos!!!
Pediram-me um relato, uma recordação, um fato, enfim, uma descrição sobre o que vi, ouvi e vivi à época em que exerci a minha profissão, como advogada, na defesa daqueles que foram perseguidos, detidos, torturados, processados, condenados, durante a ditadura militar.
Olho a tela do computador e, na minha cabeça, ou melhor, na minha recordação, na minha emoção passa, talvez, um “filme”.
Será que aconteceu? Foi verdade?
O filho de cinco anos de um casal que representamos viu o pai ensanguentado? jogado no chão?… a mãe ouviu pelo rádio a ordem de não entregarem a criança (o menino de cinco anos!!!)… levariam-no para DEOPS? Alguém com um pouco de razão não levou. Perguntou: “Tem com quem deixar o menino?” A resposta foi sim e o menino não adentrou às dependências do DEOPS com seus pais presos.
Aconteceu? Foi verdade?
A menina de 1 ano e seis meses, de fraldas, embaixo da chuva, à noite, num lugar escuro, foi usada para que a mãe contasse onde morava uma companheira?
Aconteceu? Foi verdade?
O nosso escritório de advocacia, num certo dia, por volta das 13 horas, recebeu a visita de agentes do DOI–CODI procurando pelos meus sócios? Proibiram a saída de qualquer pessoa que lá estivesse ou chegasse;… impediram-me de sair para cumprir um compromisso profissional no escritório de outro advogado, anteriormente agendado? …permitiram que eu telefonasse para adiar o compromisso sem, entretanto, dizer a razão? …para ter certeza que eu não diria o motivo, ficaram ouvindo numa extensão? A secretária, uma senhora idosa que de há muito tinha por hábito descer para fazer um lanche, por volta das 13:00 ou 13:30 horas, foi impedida de fazê-lo?
Aconteceu? Foi verdade?
Certo dia, fomos procurados por um casal de idosos dizendo que o filho fora preso numa comemoração de 1º de maio. No dia seguinte, fui ao DEOPS para saber sobre a situação do rapaz. Informação obtida: não consta da lista de presos. Volto para o escritório e lá encontro os pais, dou a informação e eles retrucam, chorando: “recebemos um telefonema e alguém disse que o corpo dele foi achado no Museu do Ipiranga e está no IML…”
Aconteceu? Foi verdade?
Paro. Olho a tela do computador outra vez. As lembranças vão chegando devagar, dolorosas. Ouvi, certa feita, um advogado iniciar sua defesa perante a 2ªAuditoria Militar, dizendo não saber se defendia uma pessoa, uma memória ou um cadáver.
Aconteceu? Foi verdade?
Num sábado, fui ao escritório para pegar documentos, porque precisava trabalhar em casa. Ao sair do elevador (estava acompanhada de meu irmão), vi a porta do escritório semiaberta, com sinais de arrombamento. Não entrei. Fomos para a rua, telefonar para meu companheiro de escritório, Dr. Belisário dos Santos Júnior. Esperamos por ele e, ao depois, entramos. Arquivos revirados. As gavetas de nossas mesas estavam jogadas no chão e todos os papéis também. O zelador (um velhinho) não ouvira nada!!! Fomos à Delegacia de Polícia dar queixa… parecia que já esperavam por ela.
Aconteceu? Foi Verdade?
Poderia passar horas, dias e noites olhando a tela do computador, lembrando-me de fatos, defesas, tensões, julgamentos, resultados inesperados.
Penso que o quase nada que até aqui escrevi é o retrato de um tempo que não pode voltar.
Tempo em que, no exercício da minha profissão, meu local de trabalho foi violado. Tempo em que, no exercício de minha profissão, fui detida por duas vezes, numa delas fichada e fotografada.
Tempo em que as garantias e direitos individuais assegurados pela Constituição não foram respeitados.
Maria Regina Pasquale é Advogada em São Paulo
Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014
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