carregando...

Advogados

Marco Antonio Rodrigues Nahum

13 de dezembro de 2022

O advogado e o estado democrático de direito no Brasil

Nos anos da ditadura, defender perseguidos políticos era um risco. As pessoas que possuíam atividade social e política (tais como advogados, jornalistas, artistas etc., e que exerciam ações – ainda que pacíficas e profissionais – contra os interesses da ditadura) tinham medo de serem presas, porque os governos militares não possuíam muito critério. Se interpretassem que, no caso, o advogado tinha uma postura de esquerda, mandavam prender. Com o recrudescimento do regime radicalizaram e prenderam até advogados que, de maneira evidente, não adotavam ideologia de esquerda, como foi o caso de Sobral Pinto.

Um dia, cheguei ao escritório e encontrei um recado do meu sócio, Iberê Bandeira de Mello: recomendava que eu saísse e me escondesse, porque os militares tinham iniciado a fazer prisões de advogados no Rio, e iriam começar a prender os de São Paulo também.

Peguei meu carro, um fusca, e saí da cidade. Não sabia para onde ir, pois se fosse à casa de meu pai, em São Sebastião, certamente me procurariam lá. Por isso, resolvi ir para a casa de parentes, em Minas Gerais. Os agentes da ditadura utilizavam, quase sempre, veículos “Chevrolet-Veraneio”. Na estrada, quando um veículo semelhante se aproximava, a iminência da prisão me atormentava.

Fiquei lá uma semana, assustado, com receio de me encontrarem. Não podia sair, era arriscado dar uma volta na rua ou na praça, então tinha de ficar dentro de casa o tempo todo, sem fazer nada. Tinha medo de me comunicar com parentes em casa. À noite, não conseguia dormir, o menor ruído me sobressaltava. Eu pegava os jornais de São Paulo, que sofriam muita censura, e encontrava notícias sobre denúncias de sequestros feitas por deputados e senadores no Congresso Nacional.

Meus parentes de Minas não sabiam de nada. Não quis envolvê-los e não falei nada. Mas estranharam eu ir para lá sem mais nem menos, sem ser um momento de costumeiras reuniões familiares. Dei a desculpa de que estava deprimido e precisava descansar. Não colou muito, nunca fiquei deprimido na minha vida. A tortura psicológica foi muito grande e, depois de uma semana, não aguentei mais e voltei a São Paulo, decidido a enfrentar a situação.

Em outra ocasião, meu sócio foi preso, além de outros advogados. Dessa vez me escondi numa chácara do meu sogro. Sofri a mesma tortura psicológica. Quando via uma Veraneio, corria me esconder, com muito medo. Logo em seguida a essas prisões, houve o assassinato do Herzog. Depois disso, a grita da imprensa aumentou muito e resolvi voltar para o escritório. A gente não conseguia largar aquele trabalho, mesmo com todo o medo, porque a necessidade de lutar pela liberdade e o direito de exercer livremente a profissão era maior.

Em verdade, naquela época, a pessoa não era presa no sentido jurídico do termo. Era sequestrada pelos agentes militares ou por policiais que lhes prestavam serviços. Este sequestro era praticado em qualquer lugar. Dentro dos lares, na frente das famílias ou na rua. Em seguida, desapareciam com a pessoa sequestrada sem que ninguém soubesse de seu paradeiro. O primeiro trabalho do advogado era garantir a vida, tornando público o sequestro. Nós procurávamos algum amigo deputado ou senador, que denunciava no Congresso Nacional o sequestro e, com isso, registrava em ata que a pessoa havia sido sequestrada. Às vezes, a imprensa publicava a denúncia do deputado ou senador, e a notícia era ainda mais divulgada. Nesse primeiro momento, o advogado lutava, com todos os meios, para conseguir que o Estado admitisse a prisão e, assim, assumisse a responsabilidade jurídica pela vida do prisioneiro. A publicidade da notícia também limitava a possiblidade de tortura, uma vez que, da mesma forma, o Estado seria responsabilizado pela sua integridade física. Sem isso, o risco de a pessoa sequestrada ser assassinada era enorme.

A lembrança mais marcante para mim, e que nunca sairá da minha cabeça por ter sido uma experiência profundamente desagradável, aconteceu com o meu amigo Jaime Estrela. Éramos amigos desde a faculdade, ele não era advogado, mas frequentávamos os mesmos lugares, éramos muito próximos.

Ele foi preso e fiquei desesperado para garantir a vida dele. Saímos correndo, eu, o Iberê e o Belisário, para denunciar a prisão. Passei vários dias lutando para localizá-lo, até que um dia consegui. Um delegado do DOPS avisou que eu poderia vê-lo numa delegacia da Polícia Civil, localizada no Cambuci. Fui correndo, pois tinha medo que fosse assassinado. Assim que o prisioneiro era apresentado ao advogado, sua integridade física estava segura. Nesse momento, a tortura parava, já tinham feito tudo que queriam e o preso não interessava mais.

Quando o trouxeram de dentro da prisão, foi uma emoção muito forte, um misto de alegria por encontrá-lo vivo e de profunda tristeza pelo estado em que se achava. O Jaime não conseguia pisar. Veio andando como podia, apoiado nas laterais dos pés, porque a sola dos pés e também as palmas das mãos estavam em carne viva, devido às palmatórias. Estava muito machucado e sujo. Eu tive de ir atrás de remédios para evitar infecções. Denunciar as lesões, no caso, fazia com que ele corresse o risco de voltar aos porões da ditadura. A revolta foi imensa. Anos depois, já quando vivíamos a democracia, ele veio a falecer.

Eu ficava pensando como era possível um torturador ir para casa e dormir em paz. Não posso admitir que alguém tenha a consciência em paz após torturar um semelhante. Lembro-me de uma passagem do livro “Quarup”: o personagem militar e torturador ia à missa todo domingo e comungava!

Vivíamos a sofrer com os clientes. O trabalho dos advogados dessa época, que exerciam sua profissão em prol da democracia, foi muito importante. As gerações atuais não conseguem imaginar o que foi aquele período. O que me acalanta é saber que o ser humano é capaz de se indignar nas piores situações. Mesmo acuados, mesmo sofrendo ameaças à liberdade do exercício profissional, e até prisões, os advogados enfrentaram as Auditorias Militares e tiveram a coragem de defender o Estado Democrático de Direito.

Marco Antonio Rodrigues Nahum foi Advogado Criminalista, de 1970 a 1996, Juiz de Direito do Tribunal de Alçada Criminal e Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, de 1996 a dezembro de 2013, quando se aposentou

Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014



Conheça mais advogados

Newsletter.

Assine e receba os conteúdos no seu e-mail.