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Advogados

Marcello Alencar

6 de dezembro de 2022

Na corda bamba

Trimmmmmmmm. Eu atendo. Digo “alô”? A voz do outro lado diz “te manda Marcello, que vão te prender agora.” Desliguei. Pensei, é possível, porque eu tinha saído lá do palácio Laranjeiras, incumbido de levar alguns documentos que não interessava deixar lá.

Aí, a voz se confirmou, porque logo em seguida entraram 11 policiais e, entre os policiais, aquele pessoal do Lacerda, do Clube da Lanterna, forçando a porta. Eu disse “o que vocês querem ?” Cozinhei um pouco, mas a minha mulher, que era a Eugenia, ficou irascível, apavorada, com um medo danado e disse, “não, deixa eu servir um cafezinho” …

Bem, a conclusão é a seguinte: eu entrei em cana. Dia 1º de abril de 1964. Parece até o dia da mentira.

Foi então a primeira experiência “boa” que eu tive de como eles procediam. Observação minha: no conjunto destas pessoas do DOPS havia voluntários que andavam de metralhadora e faziam uma porção de arbitrariedades. No primeiro dia, fiquei numa sala do arquivo, onde já estava uma senhora. Logo depois chegou uma moça que era parente dela e lá dormimos juntos, no mesmo lugar. Eu, em cima de uma mesa, ela, coitada, lá numa cadeira, mal alojada.

Aconteceu então o começo da minha experiência como advogado depois do golpe: a partir do primeiro contato que tive com a repressão. Eu ainda não estava atuando em nenhum caso. Mas daí pra frente me engajei. Fui de cabeça, pés, mãos, e passei realmente a socorrer os nossos companheiros. O grande elenco de clientes que tive era, em sua maioria, formado por militares, com posições contrárias às do golpe.

Eu recebia a “Sargentada”, que entrava no meu escritório levando seus problemas, seus sofrimentos.

Comecei realmente a advogar enquanto acompanhava politicamente os movimentos que na época surgiram. Lembro-me muito da passeata dos cem mil. Eu fazia parte do grupo “cabeça” do movimento em que Vladimir Palmeira e os outros jovens expunham suas posições contra a ditadura. Tornei-me advogado dele, que foi preso a seguir, ficando na Vila Militar. Logo me tornei muito próximo da família do Vladimir. Todos eram políticos. Encontrei, no período em que estive no Senado, com o pai dele, que era um homem muito sério e tinha sido eleito pela Arena.

O Vladimir foi um líder extraordinário. Nos momentos mais difíceis, ele se portou com imensa dignidade. Foi vertical, sempre. Os militares, desde o começo do processo, queriam saber coisas dele, saber das suas atividades. Ele repetia: “eu não reconheço em vocês autoridade pra isto.” Ele era assim. Foi muito duro nas respostas dadas aos militares da Auditoria de Marinha, incumbida de julgar o processo. O interrogatório foi muito extenso, e ele resistindo. Indicavam a cadeira para que ele se sentasse e ele respondia que preferia ficar de pé. Ele teve uma brilhante postura de líder. Eu fiquei muito fã dele, especialmente neste aspecto da sua coragem, afinal, era um jovem.

O processo do Vladimir acabou propiciando o meu conhecimento com muitas autoridades, inclusive militares. A bem da verdade, devo dizer que esse negócio dos militares… não foram eles que fizeram esta revolução, não, sabe? Ela veio de fora, mesmo, isto eu não tenho dúvida. Os navios aqui, na costa brasileira, garantindo tudo. Eram o recurso deles. No final, eles assumiram e foi o que se viu depois.

O Vladimir foi preso mais de uma vez, me deu um trabalho danado, porque ele era um réu que não queria se defender. Eu queria defendê-lo. Tanto assim que fui seu advogado! Mas não era qualquer um que topava atuar naquela época. Aponto um fato curioso na defesa do Vladimir Palmeira: a dificuldade para conseguir testemunhas. Eu pensei: tenho que procurar gente identificada com o lado deles. O primeiro que eu procurei foi o Nelson Rodrigues. Fui várias vezes ao Globo. Conversei com ele. “Eu não vou defender um comunista, não”, ele repetia. O Nelson era contra. Mas eu aporrinhei tanto que a um certo momento ele me perguntou: “ o senhor assegura que ele não é comunista?” Eu respondi: “Eu não. Não asseguro nada, não. Mas ele é um rapaz de categoria, universitário”, e fiz uns elogios ao Vladimir. Aí ele disse; “bom, então eu vou ser testemunha.” E foi. E se portou muito bem, defendendo a tese de um editorial que havia escrito, no qual elogiava o Vladimir. Falava bem do Vladimir, lá com aquele jeito dele. Com isso ganhei fôlego.

Além dele, procurei uma moça que era filha de general e que era uma grande artista. Ela também prestou depoimento. A outra testemunha foi o Reitor da Universidade. Um médico famoso. Esqueci o nome dele. Era o reitor da Universidade Federal, na época. Não falou muito bem, mas não falou mal. Foi decente. Também serviu como base para a defesa.

Quando chegamos, enfim, aos debates orais, eu, no meu entusiasmo quase infantil, dei meu coração, dei meus pensamentos todos, dei toda a força que tinha para aquele momento. E ele lá, o Vladimir, duro na queda, no banco dos réus. Davam uma ordem a ele e ele não obedecia.

Era impressionante como ele se portava. Com muita dignidade. Eu tenho respeito pelo Vladimir porque conhecia a intimidade da vida dele. Conheci a mãe dele, bondosa, uma senhora daquelas do interior, fazendeira. Ela era uma pessoa muito querida, muito amorosa, enfim.

O segundo momento que eu vivi com o Vladimir e que importa revelar foi quando ele foi preso em São Paulo. A mãe dele me procurou para dizer que ele tinha sido espancado, torturado. E eu, imediatamente, fui ver quem era o chefe da 2a. Região Militar. Lá eu consegui falar com o General Ayrosa, que era Chefe do Estado Maior do 2º Exército. Ele foi correto comigo. Primeiro, era bem educado, me tratou com alguma reverência. Ele me recebeu, a mim e à mãe do Vladimir. Assim que cheguei, ele me mandou entrar e disse “Senador, como vai o Senhor?” Me tratou de forma educada. Ele queria saber coisas mais relacionadas com a política. E eu me queixei. Disse: “olha General, o meu cliente tá sendo maltratado, levando pancada da polícia. Eu não me conformo com isto.” Fiz o protesto do profissional e ele disse: “ Não, eu vou resolver isto. Eu vou tomar providências.” E tomou.

Voltando a lembrar da minha prisão, falo da última, que foi longa, para mim muito longa. Tem um fato interessante. Eu fui recolhido no Batalhão de Guardas, em São Cristóvão. Jamais consegui esquecer daquele cheiro de gás. Eu fiquei na cela que tinha uma janela pra rua.

A única coisa que eu desfrutei, vejam só a coragem das pessoas, foi a presença de uma namorada que eu tinha e que, no período, foi me visitar. Tremia feito uma vara verde, mas me visitou. Aí eu tive outra surpresa, com um outro militar, que era o Major Sub-Comandante do Batalhão de Guardas. Era um cara que todo dia ia me visitar, me cumprimentava, perguntando se estava tudo bem. Aconteceu também que, na cela em que me alojaram, tinha estado o Antonio Calado, meu dileto amigo. E o Calado me deixou um rádio de pilha. Este fez com que eu me apaixonasse pela voz do Roberto Carlos. Eu ligava e só dava música dele. Eram mensagens de carinho e de amor. A angústia maior é o isolamento em que você fica. E eu lá ficava ouvindo.

Em compensação, havia um coronel que foi muito amargo comigo. Ele dizia: “O senhor é advogado do Sargento…” e dava o nome do Sargento, um dos meus sargentos. Eu respondia: “sou.” Ele me interpelava “como é que o senhor recebe dinheiro pra defender esta gente?” Eu olhava pra ele e falava: “Coronel, eu sou advogado.” “Quanto é que o Senhor ganha?”, ele me perguntava. E eu respondia: “Não ganho nada, sou advogado por convicção de que estou numa boa causa.” Ele insistia querendo saber mais e mais.

Eu olhava pra ele com firmeza. Fui duro também. Porque uma coisa é certa: se você “galinhar” com eles, eles pisam em você. Este foi um canalha de quem eu guardo uma péssima recordação. Eu passei estas fases com quatro prisões. De vez em quando lembravam de mim, o que eu ia fazer?

Topei a parada e fiz o que tinha que fazer, como advogado. Era uma luta. Precisávamos de muitos artifícios. Usamos todos eles. Foi uma época muito dura, mas proveitosa pra mim também.

Eu vivi um pedaço de vida que nunca tinha imaginado que fosse viver: prisão, isolamento, a irritação de alguns militares.

Outro caso que me lembro agora foi o do Professor Bayard Boiteux. Figura dessas encantadoras também. Sujeito livre por dentro. Ele era um explosivo, dizia o que pensava. Eu e a mulher dele viajávamos todo fim de semana para ir visitá-lo, em Juiz de Fora.

Defendi também gente de Caparaó. Em Caparaó a barra era pesada. Tinha arma, tiro. Lembro de um que pertencia a uma família só de militares. Quase morreu, atingido pelos tiros.

Eu me liguei à área mais perigosa na época, que eram os jovens. Eles são ativos, não têm medo das coisas, das consequências. Eles vão à luta.

Acabei absurdamente processado na morte do Edson Luiz, na primeira Auditoria da Aeronáutica. O Edson Luis, com quem eu não tinha nenhuma ligação, era a razão de ser daquele processo. Apesar disso, em primeira instância fui absolvido e, para minha surpresa, o Juiz Auditor, que era um bom homem, foi o único que me condenou. Havia muita pressão. Eu me convenci de que fui processado pela minha atuação como advogado. A acusação contra mim era desconectada da realidade. Queriam me pegar e me puseram lá, num processo sobre fatos que não tinham nada a ver com minhas atividades políticas. O STM me absolveu por unanimidade.

Nós não podemos nos queixar muito do STM nessa época, porque eles também viviam sob a pressão do poder, que era um caso duro. O General Peri Beviláqua tinha um comportamento espetacular. Era um grande Ministro, era uma voz dissonante no Tribunal e arrastava com ele , muitas vezes, outros Ministros.

Na advocacia, fui feliz. Ainda estudante fiz um escritório ali na Avenida Rio Branco, 120. Levei comigo Moisés Palatinick e mais dois advogados, sendo que um deles, depois, fez concurso e se tornou Juiz. Era muito estudioso. Chegou a Desembargador e se aposentou. Foi assim que comecei a minha vida. Lembro do meu primeiro cliente: o cara que levou meus móveis para o escritório. Ele tinha um aparelho de transmissão, no qual ouvia muito corrida de cavalo. Aí ele foi preso como bookmaker. E eu fui o advogado dele.

Nestas poucas linhas, deixei a memória fluir, disse um pouco sobre algumas lembranças de minha vida como preso político e como advogado. Ao largo ainda há muito: minha vida fora do país, meu retorno, sempre passando pela militância política, mesmo depois de terem me “roubado” mais de vinte anos de vida pública, com a chibata asquerosa do Ato Institucional nº 5, quando era Senador da República. Não me queixo. Eleito pelo povo, tive o privilégio de ser Prefeito da minha Cidade, Governador do meu Estado. Mas esta é uma outra história, para uma outra ocasião. Aqui, o que vale é ter sido um advogado militante, esta grande profissão que me abriu todas as portas para a luta pelo Direito e pela justiça.

Marcello Nunes de Alencar é Advogado, ex-Senador, ex-Prefeito e ex-Governador do Rio de Janeiro

Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014



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