Manuel de Jesus Soares
Alguns episódios da ditadura
Durante o período revolucionário muitas amizades foram abaladas, como também se viu o verdadeiro caráter de certas pessoas, que eram consideradas como legalistas, mas que se aproveitaram do poder de comando que exerciam para praticar verdadeiras atrocidades.
Sem indicar nomes, refiro-me ao caso que envolveu um filho de um Coronel do Exército, que já se encontrava na reserva, que foi preso por envolvimento nas chamadas atividades subversivas. Como normalmente acontecia, as prisões não eram comunicadas à Justiça Militar, em face do que os advogados, mesmo não dispondo do habeas corpus, que havia sido abolido pelo Ato Institucional nº 5, utilizavam o mesmo perante o Superior Tribunal Militar, apontando todos os órgãos de segurança como autoridades coatoras, para ver se os mesmos informavam qual deles havia efetuado a prisão e onde a custódia era mantida. Neste caso, depois de mais de um mês, soube-se que o preso estava recolhido em dependências da Policia do Exército, mas, incomunicável.
Naquela época, eu ainda não era formado, mas, como solicitador, acompanhava o Dr. Augusto Sussekind de Moraes Rego, participando, inclusive, de alguns julgamentos. Pois bem, o Dr. Sussekind informou ao Coronel o local onde seu filho se encontrava preso e este recebeu a informação com grande alívio, afirmando que o Comandante era seu colega de turma e que, portanto, nada de mal lhe ia acontecer.
Entretanto, passado mais de um mês, o preso foi apresentado perante a Auditoria, ocasião em que afirmou que fora barbaramente torturado, exibindo, inclusive, marcas da crueldade porque passara. Isto foi uma profunda decepção para o Coronel, que tinha o seu colega de turma como um homem comprometido com a legalidade e não o monstro que se tornou.
Como se sabe, em face do Ato Institucional nº 2, à Justiça Militar foi atribuída competência para julgar os crimes contra a segurança nacional. Como não poderia deixar de ser, havia Auditores que estavam seriamente comprometidos com o regime de exceção que se instalou no País, mas havia alguns que nunca se afastaram do compromisso de julgar os acusados de acordo com a lei e a prova dos autos.
No caso que vou narrar, o Juiz Auditor era um daqueles que primou pela observância dos ditames legais. Perante a sua Auditoria foi julgado um dos processos envolvendo integrantes do PCBR e esse julgamento prolongou-se por vários dias, eis que muitos eram os acusados, sendo que, em certo dia, ao ser suspensa a sessão para almoço, foi notada a ausência de uma senhora, que era irmã de uma das acusadas, sendo desse fato comunicado o Auditor, o qual negou-se a reiniciar a sessão até que fosse esclarecido o sumiço dessa senhora.
Colhidas algumas informações com pessoas que se encontravam na plateia, apurou-se que essa senhora havia sido retirada do recinto por dois homens que teriam se apresentado como agentes do CENIMAR. O Auditor, então, dirigiu-se ao Gabinete do Almirante Waldemar de Figueiredo Costa, que era o Presidente do Superior Tribunal Militar, e este manteve contato com o referido órgão de segurança, alertando que o julgamento não seria reiniciado enquanto não fosse tal senhora recolocada no local de onde havia sido sequestrada. Depois de algumas horas de espera, esses mesmos agentes chegaram à Auditoria e entregaram essa senhora ao Auditor, recomeçando, então, o julgamento.
Um outro fato que ficou marcado na minha memória foi a prisão que sofri por ordem do General Olympio Mourão Filho.
Antes da entrada em vigor do Código de Processo Penal Militar, o Código da Justiça Militar previa que os julgamentos das apelações interpostas pelo Ministério Público contra sentenças absolutórias fossem realizados pelo Superior Tribunal Militar, em sessão secreta, a fim de permitir a expedição de mandados de prisão antes que o resultado fosse publicado.
No Superior Tribunal Militar havia uma seção que era encarregada de preservar esse sigilo e fazer as comunicações às Auditorias, a qual era dirigida por uma senhora. Pois bem, certo dia fui ao Tribunal, o que fazia quase que diariamente, e, para minha surpresa, vi essa senhora falando com o Ministro Mourão Filho, fazendo um sinal em minha direção. O Ministro determinou que eu fosse à sua presença e ordenou que o seu ajudante de ordens me conduzisse ao seu gabinete, onde deveria ficar recolhido até o intervalo da sessão.
Durante o intervalo, o Ministro foi ao seu Gabinete e me explicou a razão da minha prisão, afirmando que a chefe da mencionada sessão estava me acusando de ter violado atas de sessões secretas. Expliquei ao General que tal acusação era de todo improcedente, pois, nesse dia, sequer tinha percorrido qualquer dependência do Tribunal, sendo que a minha ida ao mesmo resultava de um único fato, qual seja, falar com o Ministro Grun Moss, em companhia de seu genro.
O General Mourão Filho chamou o genro do Ministro Grun Moss que confirmou todas as minhas afirmativas, sendo, então, liberado. Não estivesse em companhia do genro do Ministro Grun Moss, certamente, teria sido recolhido a uma prisão.
Manuel de Jesus Soares é Advogado Criminalista e Professor de Direito Penal na Universidade Cândido Mendes.
Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014
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