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Advogados

Luiz Olavo Baptista

13 de dezembro de 2022

Recordações dos anos 60-70

Estive na Faculdade Paulista de Direito, o que foi para mim a descoberta de uma vocação: a advocacia. Antes era uma possibilidade profissional, pensava, então, que iria ser diplomata, o que seria o desejo de meu pai, que me incentivava.

Minha família sempre foi muito católica. Ao ingressar no colegial passei a participar da JEC e, na faculdade, da JUC. Desta para a ação política foi um passo – o da democracia cristã. Franco Montoro, nas suas aulas de Introdução à Ciência do Direito, Chopin Tavares de Lima, Plínio de Arruda Sampaio, Darcy Passos, então três jovens promotores, iam pregar a necessidade das pessoas engajarem-se na política. Convencido, logo fui a congressos da UEE, da UNE, e acabei por ser eleito presidente do DCE da PUC-SP, desempenhando um papel na articulação do que se chamava o “ Grupão”, uma coalizão de católicos e militantes de várias tendências: trotskistas, socialistas, esquerda independente de várias nuances, que se opunha à aliança entre os pelegos da direita com o PCB.

Sempre tive a tendência de empenhar-me em lutas quixotescas ou, pelo menos, arremeter contra moinhos de vento. Sempre me identifiquei com os mais fracos, briguei com os truculentos que os queriam oprimir, procurei reparar o que vi como injustiça, sempre por impulso, quase visceralmente. Foi por isso que me opus aos colegas do Colegial, no Roosevelt da Gabriel dos Santos, quando quiseram fechar o colégio pedindo a renúncia de Getúlio. Quando ele se suicidou, coloquei no jornal mural um artigo dizendo que eles também eram causadores de sua morte. Paradoxalmente, eu não gostava do Getúlio, porque sabia das torturas e barbaridades praticadas quando fora ditador.

A vocação profissional que vive até hoje em mim, definiu-se na Faculdade, com o estudo do Direito. Lá tive a oportunidade de conviver com visões diversas, o monarquismo absolutista de José Pedro Galvão de Souza, o neotomismo de Franco Montoro, o positivismo kelseniano de José Horácio Meirelles Teixeira, nas aulas, e mais as leituras que iam de Teillard de Chardin a Maritain, de Trotsky a Marx e Lenin, passando por Mao e outros, tudo isso permitiu que, no quinto ano, minha turma conquistasse o Professor de Filosofia do Direito, Leonardo Van Acker, de pensamento bergsoniano e gosto pela polêmica, que se permitiu discutir filosofia conosco aula por aula.

Minha colação de grau foi numa sexta-feira célebre na história do Brasil, a do comício da Central. Do bolso das becas saíam os fones dos Spica, que transmitiam os discursos inflamados de Jango, Brizolla e outros. O orador da turma, Antonio Carlos dos Reis, provocou aplausos e protestos pelo conteúdo político de sua fala.

Porém, nessa época, minha preocupação política estava um pouco na sombra, pois minha irmã ia casarse no dia 31. No casamento, é claro que havia gente de todas as opiniões, mas tudo parecia brincadeira.

A gente dizia aos amigos de Minas: agora você vai precisar de um passaporte, já que o Magalhães Pinto separou Minas do Brasil. Outros, ainda, diziam: graças a Deus, livramo-nos do comunismo. Enfim, ninguém imaginava o que viria. Veio o que se sabe: tortura, censura, desaparecimentos, corrupção absoluta (mas também uma visão diferente do desenvolvimento econômico, investimentos em infraestrutura e um nacionalismo de direita).

Logo após o golpe começaram as truculências. Um bando entrou nas Arcadas armado com metralhadoras, para prender colegas. Depois o CCC atacou a Maria Antonia e invadiu a sede da UEE, na Major Sertório; o CRUSP foi invadido pela polícia, teatros foram fechados e a censura amordaçou os jornais. O AI-5 veio para acabar com as garantias individuais.

Concluí, então, que o positivismo do Kelsen era doutrina que servia às ditaduras, pelo fato de querer tornar abstrato e lógico o que não o é. Acredito que antes do direito positivo há direitos das pessoas, que a ordem jurídica não pode revogar.

Dentro de mim, o desejo de defender quem não tinha defensor, os perseguidos políticos, foi natural, e assumi-o como advogado nessa nova situação.

Não tive a vocação ou pensei em ser criminalista, nem estudei muito Direito e Processo Penal na faculdade. Já atuava em outro campo. Comecei como generalista, atuando no campo do direito de família, no civil e, em especial, no direito empresarial, onde sempre me fascinou o desafio intelectual de defender minorias numa sociedade ou criar um contrato equilibrado, colaborar com os clientes em difíceis situações. O panorama pós 64 abriu um parênteses nesse percurso e nele estive criminalista, atuei na defesa de presos políticos.

Tenho orgulho de ter sido o primeiro advogado, não de ofício, a ingressar em autos na Auditoria Militar, assim como de ter impetrado o primeiro habeas corpus coletivo, de ter tentado uma possessória para recuperar a sede da UEE, na Major Sertório e, sobretudo, de ter usado criatividade na defesa dos meus clientes, que, só na Auditoria, ultrapassaram a centena.

Tive a oportunidade, então, de conviver com os grandes tenores do júri, os “príncipes do foro”, figuras respeitadas, como José Carlos Dias, dos primeiros a vir, corajoso, impulsivo e brilhante, ou o aristocrata ituano, nascido no Ceará, Raimundo Pascoal Barbosa (que vivia me amolando quando defendi o Monsenhor Carvalheira, dizendo aos milicos na hora do café: “o cliente do Luiz Olavo é o maior culpado, pois ele é Monsenhor, então é o chefe de todos…” Brincadeira que me deixava sem sono, porque o cliente não negava os fatos, apenas dizia que não eram crime, e não me permitia que os negasse, a despeito disso facilitar a defesa, já que o que havia contra ele eram depoimentos colhidos sob tortura (o que era regra nos IPMs). Flávio Bierrenbach, meu amigo desde a infância, também advogava na Auditoria e fazia o périplo das delegacias e as visitas à casa de Detenção, como nós. Marilú Bierrenbach começou a frequentar a Auditoria como estagiária em meu escritório (das mais brilhantes e eficientes que por lá passaram) e, depois, como advogada, no escritório do José Carlos. Veio a ser presa e torturada, em 1971, se não me falha a memória, pelo Major Ustra, lá na delegacia da rua Tutóia, o qual queria saber quem pagava os honorários pela defesa dos presos. Não falou e, quando a libertamos, o torturador teve o desplante de dizer ao Dr. Flávio, pai de Marilú e Flávio: “ sua filha é mais corajosa que muito barbado, não falou nem com os choques.”

Havia a figura veneranda do Aldo Lins e Silva, o advogado dos comunistas, Anina Alcântara Machado, feminista e militante, e outros que a Câmara homenageou, havia o Mário Simas, meu contemporâneo de escola. Começando a advogar chegaram o meu grande amigo, companheiro e antecessor na presidência da AASP, Miguel Reale Júnior, e o santo leigo que é Belisário dos Santos Júnior. Com este fomos ao Paraguai, ensinar aos colegas de lá como recorrer à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a levar os problemas aos foros internacionais, assim como ensinamos a muitos outros como recorrer, como agir na defesa dos seus clientes. Antonio Funari Filho foi um fenômeno. Foi meu estagiário, foi réu e meu cliente e foi advogado da Auditoria. Só lhe faltou ser juiz e promotor.

Em 1974, fui para a França. Lá estudei, preparei meu doutorado. Ao voltar, fui encerrando progressivamente minha incursão na seara dos criminalistas de verdade; os tempos já começavam a mudar. Advogados de luxo, gente que entre amigos havia aplaudido ou aprovado a tortura, que participava do CCC ou de movimentos assemelhados começava a aparecer pela auditoria, visando honorários polpudos. Os idealistas já eram minoria. Achei que os quixotes não eram mais necessários e a nova companhia não me agradava.

Afinal, se fui defensor de presos políticos é porque sou advogado, porque gosto de brigar por causas difíceis, às vezes dadas por perdidas. Fiz isso, por anos, ao Direito e à profissão. Das centenas de pessoas que atendi, sequer uma dezena pagou modestos honorários. Valia para mim ser coerente e atender minha consciência.

Não vou falar mais, não só porque o espaço escasseia, mas porque outras lembranças desse tempo, penosas, começam a voltar e antes de reviver os sofrimentos e as angústias, é melhor que fiquem esquecidos e sejam, para sempre, passado que nunca mais deve voltar.

Luiz Olavo Baptista é Advogado, Professor e Árbitro. É Doutor em Direito Internacional – Paris II (1981), Doutor honoris causa – Universidade de Lisboa (2009), ex- Membro e Presidente do Órgão de Apelação da OMC (2001-2008), ex- Presidente da Associação dos Advogados de São Paulo (1979-1980).

Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014



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