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Advogados

Luiz Eduardo Greenhalgh

6 de dezembro de 2022

A luta faz a lei

Tenho resistido a escrever sobre o tempo da ditadura, da repressão e do arbítrio, época em que atuei como advogado de presos políticos, dirigente do Comitê Brasileiro pela Anistia, do Clamor e militante da Comissão Arquidiocesana de Direitos Humanos e do Centro Santo Dias.

Isso decorre por considerar haver certa distorção nos relatos históricos que são feitos sobre a atuação, a conduta e a postura de muitos que hoje prestam depoimentos sobre aquela época, inclusive sobre a nossa própria.

Às vezes ouço relatos de clientes e amigos sobre aquela época, inclusive de fatos ocorridos comigo, ou como advogado ou como militante, dos quais não guardo nenhum registro. É que a memória vai nos traindo. O tempo vai passando e os fatos vão se apagando. Até mesmo as circunstâncias de fatos não esquecidos vão se alterando.

Essa contradição estabelece um inevitável paradoxo: se não se registra, para a História, depoimentos daqueles que (como os advogados de presos políticos) tiveram papel destacado no enfrentamento ao regime militar de 64, ou na luta pela Anistia, Ampla, Geral e Irrestrita, ou na solidariedade latino-americana e no enfrentamento da Operação Condor, enfim, na defesa da Justiça, dos Direitos Humanos e da Democracia, corre-se o risco de os exemplos da resistência serem esquecidos, distorcidos, alterados e ficarem desconhecidos para as gerações futuras.

Mesmo consciente dessas possibilidades, tenho resistido a escrever sobre aquela época. É que tenho receio de também distorcer fatos. De aumentar, inconscientemente, o papel que neles desempenhei. De esquecer protagonistas da época.

É por isso que, com quase certeza, devo ser o último a atender ao pedido de oferecer o presente testemunho. E o faço em homenagem a José Mentor – companheiro de ideais, de militância estudantil, de profissão, de militância partidária. Ainda guardo na memória a Sessão Solene realizada no Plenário da Câmara dos Deputados, por sua iniciativa, na qual foram prestadas homenagens aos brasileiros advogados de presos políticos durante o regime militar.

Bem pensando, não poderia deixar de atender ao seu pedido, mesmo que esse depoimento possa padecer das imprecisões que acima mencionei.

Um poeta espanhol, Ortega y Gasset, tem um verso que diz “O homem é o homem e as suas circunstâncias.” Mas o tempo é o tempo das circunstâncias do homem. E o tempo pode alterar os fatos. Sei que agora corro esse risco. Já antecipo as desculpas, por isso.

Tornei-me advogado de presos políticos em 1973, quando Idibal Piveta, advogado de presos políticos, foi preso pelo DOI-CODI-II Exército.

Na época em que integrei o Conselho Universitário da USP, na qualidade de representante discente, eu o conhecera. Era diretor do Teatro União e Olho Vivo. Autor de peças teatrais como “O Evangelho Segundo Zebedeu” e “Rei Momo”, ele queria encenar suas peças no Campus da USP e o Reitor Miguel Reale não autorizava, por considerá-las subversivas.

O processo foi parar no Conselho Universitário. Ele veio falar comigo e nós articulamos para que a proibição cessasse, o que de fato ocorreu. O Teatro União e Olho Vivo instalou-se no terreno no Centro Acadêmico XI de Agosto, no Ibirapuera, onde foi montado um circo e as peças foram encenadas por muito tempo.

Assim, quando ele foi preso, resolvi me colocar à disposição do colega e amigo Airton Soares, que era sócio do Idibal no escritório, liberando-o para mais se dedicar à soltura do colega preso. Nunca tinha lido a Lei de Segurança Nacional. Nunca tinha entrado no prédio da Auditoria Militar da Brigadeiro Luiz Antonio. Nunca tinha assistido a um julgamento político. Eu era estagiário no escritório de advocacia de meu pai, na área cível.

Comecei a visitar os presos políticos no Presídio do Hipódromo e no Pavilhão 5 da Casa de Detenção. Comecei a ouvir os seus relatos de tortura, de assassinatos e de desaparecimentos de companheiros. Atrocidades que até então eu desconhecia.

Meses depois o Idibal foi solto. Eu não voltei mais ao escritório de meu pai. Tinha encontrado o meu caminho profissional. Com eles – Idibal e Airton – aprendi a defender presos políticos. E, também, com Miguel Aith, que, de resto, foi professor de todos nós, na vida e na advocacia.

Naquela época contavam-se nos dedos das mãos os escritórios e os advogados que se dispunham a defender presos e perseguidos políticos. Éramos poucos e, por isso, éramos unidos. Tínhamos que ser unidos. Éramos solidários entre nós. Aprendíamos uns com os outros. Além do Airton Soares, do Idibal Piveta, do Miguel Aith, do Paulo Gerab, da Marcia Ramos de Souza e da Stella Bruna Santo, com os quais estive mais perto, lembro-me da atuação destacada de José Carlos Dias (que me convidou para assinar a Carta aos Brasileiros), José Roberto Leal de Carvalho (de quem fui diretor, quando ele foi presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto), Maria Luiza Bierrembach, Arnaldo Malheiros Filho, Belisário dos Santos Júnior (amigo e colega desde os bancos da Faculdade), Maria Regina Pasquale, Antonio Mercado, Rosa Maria Cardoso da Cunha (a quem sucedi na defesa de José Genoino Neto), Virgílio Egidio Lopes Enei, Iberê Bandeira de Melo, Julio Fernando Toledo Teixeira (de quem tive a honra de ser advogado quando ele próprio foi processado na Lei de Segurança Nacional), Marco Antonio Nahum, Mario Simas, Maria Tereza de Assis Moura, Raimundo Pascoal Barbosa (com quem aprendi que paciência também é sinônimo de persistência), Tales Castelo Branco, dentre outros, em São Paulo.

Do Rio de Janeiro, atuando em São Paulo, lembro-me também de Eny Raimundo Moreira (com quem aprendi a importância da solidariedade e da generosidade para com os clientes, além da preocupação com a história futura, que resultou no Brasil, Nunca Mais), Sobral Pinto (com quem aprendi que a força moral do advogado na Tribuna de defesa muitas vezes vale mais que a própria análise dos autos), Heleno Claudio Fragoso (com quem atuei no caso dos Padres Franceses Aristides Camio e François Gouriou, na Auditoria de Belém, no processo do Lula e dos metalúrgicos de São Bernardo e no processo do Chico Mendes, do Lula e do Jacó Bittar, na Auditoria de Manaus), Nilo Batista (amigo e companheiro desde sempre, especialmente na atuação do processo da Chacina de Eldorado de Carajás), Nelio Machado (que seguiu a mesma fulgurante trajetória herdada do pai e o exemplo da mulher, Letícia), Antonio Modesto da Silveira (com quem aprendi muito, pelo exemplo, pela dedicação e pela exata compreensão do processo histórico que vivíamos naquela época) e Marcello Cerqueira (com quem dividi a defesa de Aldo Silva Arantes, na Chacina da Lapa, na Auditoria Militar de São Paulo).

De outros Estados, atuando nas Auditorias Militares, defendendo presos e perseguidos políticos, lembro-me de Wanda Rita Othon Sidou, do Ceará (com quem atuei na defesa de José Genoino, José Duarte e Manoel da Conceição Santos), de Egídio Salles Filho e José Carlos de Castro (com os quais atuei na defesa dos Padres Franceses, no Pará).

Com todos eles surgiu, cresceu e se solidificou a amizade e o companheirismo, inclusive entre nossas famílias. Isso persiste até hoje, passados mais de quarenta anos.

Em Brasília, por exemplo, conheci o advogado Antonio Carlos Sigmaringa Seixas, exemplo de tenacidade, de fidelidade às suas idéias, de coragem, de solidariedade. Conheci também seu filho – que até hoje é um dos meus melhores amigos – o advogado Luiz Carlos Sigmaringa Seixas, também defensor de presos políticos (com o qual participei da defesa dos Padres Franceses, da defesa de Lula e dos metalúrgicos do ABC e de tantos outros casos. Participamos da luta pela Anistia, Ampla, Geral e Irrestrita defendida pelo CBA – Comitê Brasileiro pela Anistia. Com Luiz Carlos também participei do projeto Brasil: Nunca Mais. Além disso, fomos colegas de Parlamento).

O escritório dos Sigmaringa Seixas sempre teve as portas abertas para o refúgio de presos e perseguidos políticos. Lembro-me de nele ter encontrado, por vezes, assustados estudantes da UNB, processados pela polícia, com ordem de prisão. Lembro-me do advogado e preso político Afonso Celso Nogueira Monteiro, um dos únicos sobreviventes da Casa da Morte, em Petrópolis, que foi acolhido naquele escritório por muito tempo.

Lembro-me dos gestos dos Sigmaringa Seixas – pai e filho – na defesa das prerrogativas dos advogados e da integridade da OAB/DF, de braços dados, juntamente com outros advogados notáveis, contra a repressão desencadeada, em Brasília, pelo General Newton Cruz.

Lembro-me de José Paulo Sepúlveda Pertence, a quem convidei para ajudar na defesa de Lula e dos metalúrgicos do ABC. Lembro-me dele, também, na condição de Vice-Presidente Nacional da Ordem dos Advogados, numa caravana à cidade de Rio Verde, em Goiás, na busca dos corpos de Maria Augusta Thomaz e Marcio Beck Machado, militantes do Molipo, até então tidos como desaparecidos políticos.

Os advogados de presos políticos daquela época, éramos poucos, é verdade. Mas o fato de combater o bom combate, fazia com que nossa força se multiplicasse por muitas vezes. Tínhamos a certeza de que venceríamos. Que não haveria derrotas definitivas para as nossas causas, nem para a dos nossos clientes e seus familiares, que, no fundo, eram uma só: abaixo a repressão policial-militar-política! Abaixo a ditadura!

Hoje, passados mais de quarenta anos do início dessa caminhada, quando me perguntam se valeu a pena, de pronto respondo, como Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena. Se a alma não é pequena”.

Luiz Eduardo Greenhalgh defendeu presos políticos processados na Lei de Segurança Nacional, durante a ditadura militar. Foi fundador e dirigente do Comitê Brasileiro pela Anistia, integrou a Comissão de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo, foi fundador do Comitê Latinoamericano de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul (Clamor), integrou o Comitê Brasileiro de Solidariedade aos Povos da América Latina (CBS). Como Deputado Federal (PT/SP) presidiu as Comissões de “Constituição e Justiça” e de “Direitos Humanos”. É integrante da Comissão “Memória e Verdade” da OAB/SP.

Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014



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