José Carlos Dias
Advocacia idealista
Trechos dos discursos proferidos nas Sessões Solenes da Câmara Municipal de São Paulo e da Câmara dos Deputados.
Sessão Solene da Câmara Municipal de São Paulo em 04/12/1998:
Hoje de manhã, quando escrevia um texto que me fora encomendado para uma coletânea lembrando essa fase da advocacia brasileira, realmente fui tomado de muita emoção, porque estes rostos que aqui estão vieram à minha memória, e me veio às memória todo o aprendizado que pessoalmente vivenciei com meus colegas advogados e com todos os prisioneiros políticos.
Agora há pouco, quando refletia sobre o que falar, resolvi fazer algo que não é comum entre nós, advogados, que é despir-me da vaidade e ler o texto que escrevi, porque é curto e, assim, resistirei à tentação de falar mais.
Talvez porque seja a época em que se comemora o cinquentenário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, talvez porque os advogados de perseguidos políticos ficaram escondidos na coxia da História, não sei qual terá sido a motivação preponderante – e hoje nós soubemos de viva voz – que levou o Vereador José Mentor a homenagear um momento importante da advocacia brasileira e seus atores.
A verdade é que cresce de tamanho a homenagem sendo o seu idealizador um advogado, modelo de político e cidadão, cujo passado está marcado desde estudante por sua presença no cárcere em defesa da democracia. Instado a um pequeno testemunho sobre essa advocacia de perseguidos políticos, eu o faço emocionado. Não imaginava, ao sair da faculdade, às vésperas do Golpe de 1964 – nossa festa de colação foi uns vinte dias depois -, que a advocacia criminal que imaginava fazer viesse a ser marcada também com a defesa de pessoas acusadas por crimes políticos.
Eu, pessoalmente, e acredito que a maior parte dos colegas aqui presentes nunca havia lido a Lei de Segurança Nacional – não fazia parte do currículo. Foi, no entanto, cinco anos depois que fiz minha estreia, após o AI-5, na Justiça Militar, sendo meu primeiro cliente o José Mentor, a quem defendi ao lado de Antônio Mercado Neto e de Volney Corrêa Leite de Moraes. Brilhante advogado, Mercado, debutando na advocacia, que nunca militara na área penal, amigo de família do José Mentor. Com que entusiasmo, paixão e indignação nos pusemos na luta contra o arbítrio!
Não me esquecerei jamais daquela noite em que fomos acompanhar a soltura de José Mentor e o levamos até sua casa: “aqui está, entregue”.
A partir daí, com o AI-5 em pleno vigor, as violências policiais num crescendo assustador, com poucos, pouquíssimos advogados na militância direta da chamada advocacia política, passei a atuar intensamente na Justiça Militar. E é aqui que lembro dos rostos que fizeram o mesmo, testemunhando o sofrimento dos familiares, ouvindo relatos de tortura, irmanando-me aos colegas para troca de informações e de experiências, discutindo estratégias para suprir as lacunas legais, a principal delas a supressão do habeas corpus.
Seguramente, bem mais de quinhentos nomes figuram em cada um dos nossos arquivos, a documentar as perseguições e as violências que sofreram. Quase todos nós, militantes mais assíduos, sofremos restrições à liberdade. Mas de um deles lembro-me em especial, porque me coube a honra de sua defesa por designação da Ordem dos Advogados, e a quebra de sua incomunicabilidade depois de 50 dias, o que marcou uma definição corajosa do Superior Tribunal Militar, deferindo representação substitutiva de habeas corpus, que se tornou importante precedente jurisprudencial.
Estou a referir-me à extraordinária figura do advogado e teatrólogo, o Idibal Pivetta, no teatro forense, César Vieira, no teatro por ele criado com tanto talento. O encontro que tive com o colega e amigo, preso no DOI-CODI, foi instante de emoção inesquecível, creio que para nós dois.
O testemunho é mais do sentimento que experimento agora, lembrando-me dos mortos, vidas não libertadas, criaturas, muitas delas defendidas como memórias – como dizia aqui Belisário, sem atestado de óbito, na “vala incomum” dos desaparecidos.
Amadurecemos muito, envelhecemos com o sofrimento, com a angústia da justiça irrealizada, mas aprendemos muito também, uma escola duríssima de advocacia, com riscos pessoais, desgastes internos, patrulhados por todos os lados, incompreendidos por muitos.
Por doze anos peregrinei eu, e tantos de nós – e muitos ainda mais, por mais anos -, pelas auditorias e tribunais na defesa dos perseguidos políticos. Não posso negar que, no meio de todo o sofrimento lembrado, há uma nesga de saudade, marcada pelo cotidiano da advocacia idealista e despojada, desinteressada e dotada de heroísmo, que fez de nós, advogados de presos e perseguidos políticos, uma confraria unida e alegre, à qual vez por outra se alinhavam grandes figuras de advogados que vieram trazer nova força à luta que travávamos.
A homenagem que a Câmara Municipal de São Paulo e as instituições que representam a nossa classe prestam se destina a todos, sem distinção. Àqueles que figuram no cartaz e a outros que de forma mais intensa e de menos realce estiveram presentes nas tribunas de defesa da Justiça Militar.
Homenagem àqueles que foram por nós defendidos, homenagem àqueles que não puderam sequer ser por nós defendidos.
Sessão Solene da Câmara dos Deputados em 04/12/2003:
… Este é um momento, portanto, extraordinário, em que estamos resgatando a nossa história. Nada mais fizemos do que cumprir a nossa função de advogado. Realmente sofremos, muitas vezes, a perda da liberdade. Quase todos nós sofremos por alguns dias ou algumas horas. Outros perderam a vida.
A verdade é que isso tudo significou, mais do que o cumprimento do dever profissional, um indiscutível instante em que a advocacia se exalta por ter sido um dos instrumentos da luta pela libertação do Brasil e não só pela liberdade de alguns companheiros.
Eu agradeço a homenagem que me é prestada e recebo juntamente com tantos advogados e tantos outros que aqui não estão. Que não estão porque não puderam vir ou porque partiram.
E não posso deixar, mais uma vez, de lembrar de um dos que já partiu e que deve estar nos abençoando a todos, Raimundo Pascoal Barbosa.
José Carlos Dias é Advogado Criminalista e Membro da Comissão Nacional da Verdade. Foi Ministro da Justiça, de 1999 a 2000 e Secretário da Justiça do Estado de SP, de 1983 a 1987.
Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014
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