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Advogados

Idibal Pivetta

6 de dezembro de 2022

O advogado nos tempos de cólera

Durante cerca de vinte anos, o Brasil viveu uma época cinzenta de repressão e de ausência de liberdade. Na fase mais dura desse período difícil, exercitaram a profissão de advogados na justiça militar não mais do que duas dezenas de cidadãos.

Sem heroísmos, mas conscientes de seus deveres, não deixaram jamais de estar presentes nas portas das masmorras da ditadura, no consolo às viúvas e companheiras dos desaparecidos, no apoio aos torturados e suas famílias e, principalmente, esgrimindo as toscas espadas que as draconianas leis de segurança lhes permitiam. Esses advogados tiveram suas correspondências censuradas, seus telefones grampeados, eram seguidos por todos os lugares por onde iam, seus honorários eram poucos ou nenhum e boa parte deles foi ameaçada, presa, torturada…

Em 26 de setembro de 1976, a Ordem dos Advogados do Brasil, Secção de São Paulo, em Ato Público, desagravou o advogado Idibal Almeida Pivetta, por ter sido preso e impedido de exercer sua profissão.

A solenidade transcorreu sob clima de tensão, com dezenas de policiais posicionados à porta da OAB e ameaças de bomba. O pronunciamento do advogado desagravado, ao agradecer a seus pares, é o retrato, sem retoques, em preto e branco, desse tempo de brumas, de cólera e rancor que, infelizmente, deve ser sempre lembrado para que jamais volte a repetir-se. Seguem trechos da minha fala durante a sessão de desagravo:

“ Senhor Presidente da OAB, Doutor Cid Vieira: Doutor José Carlos Dias, conselheiro que, com coragem, competência e dedicação acompanhou nossos passos na prisão, tanto no DOI-CODI (Operação Bandeirantes), como no DEOPS e no Presídio do Hipódromo.

Senhores Conselheiros: Amigos, Amigas, Companheiros do Teatro Popular União e Olho Vivo: Esta é a segunda vez que falamos nesta casa. A primeira vez ocorreu há alguns anos. Recém saídos dos bancos da academia e dos embates da política estudantil, fomos escolhidos para falar em nome dos colegas que, nesta Casa, recebiam suas Carteiras da Ordem. E recordo que iniciamos nossa saudação citando um encontro de Napoleão com Robespierre. Robespierre, o executor da Revolução, e Napoleão, à época desse encontro, apenas um jovem General, uma espada em busca de ascensão. E ao correr do diálogo, Napoleão afirma:

“Não gosto de advogados…” E ante o olhar duro de Robespierre;

“Não gosto de advogados que estão contra o governo.” Robespierre, ríspido, responde:

“Não gosto dos militares…” Não gosto dos militares que estão contra a Lei, contra a Justiça e a Liberdade.

Passaram-se anos. Mudou o Brasil. Transformouse o mundo. Mudaram os colegas. Mudamos nós. Mudou o Brasil, passando no decorrer de todo esse tempo, de uma Liberal-Democracia, embora eivada de falhas, a um Estado em que a força é a lei!

Mudamos nós, nos embates da vida. Nos entrechoques da vivência da profissão. Na visão cotidiana de uma Justiça lépida e célere ao atender o poderoso. Lenta e tardia ao se oferecer ao desprotegido! E mudamos nós, de uma crença pura e acadêmica na liberal-democracia, para a certeza concreta de que a Justiça – a Justiça no seu sentido amplo de propiciar que cada um tenha direito a uma vida digna – só ocorrerá através do Estado de Justiça Social! Num Estado de Justiça Social dinâmico e em permanente aperfeiçoamento.

Essa nossa mudança se originou na contemplação impotente das demoras marmóreas dos processostartarugas e no olhar de descrença dos humildes diante das portas dos Tribunais, onde suas vidas se decidem. E, mais do que tudo, nossa transformação foi motivada pela mudança do País.

Vivemos hoje a dura realidade de um Sistema Legal de Encomenda. Um sistema legal feito “a pedidos” por juristas de aluguel e por homens das fórmulas salvadoras do momento. Um sistema que fechou partidos, amordaçou a imprensa, transformou o Congresso num conglomerado submisso e apático, estremeceu o Judiciário, extinguiu o Habeas Corpus, tentou alienar os estudantes e marginalizou a maior parte da população de uma vida digna e de uma participação nos destinos nacionais.

Com base em meras ordenações e não em Leis, esse Sistema Legal de Encomenda gerou Leis de Segurança, Leis de Imprensa e decretos de teor de um 477. Ordenações, sim! Pois que nenhuma delas traz em si a marca que as legitime: a de terem se originado na única e verdadeira fonte de Lei que é a vontade popular. Ao contrário, todas trazem a mácula do pecado original de serem outorgadas pela vontade de uns poucos para submeterem a muitos.

Hoje estamos nesta casa dos advogados de São Paulo, recebendo um desagravo promovido pela nossa entidade de classe. Há três anos e meio – no exercício da profissão – no dia 05 de Maio de 1973, fomos detidos, fomos algemados, fomos encapuzados. Tivemos nossa casa invadida. Nosso escritório devassado. Nossos escritos particulares e textos teatrais consumidos. Cópias de processos levadas. Questionou-se honorários profissionais, perguntou-se endereços de clientes.

Ficamos detidos 67 dias! Sendo 37 deles incomunicáveis. E o coronel encarregado do “inquérito” queria saber “qual é a nossa organização subversiva? Onde ficava nosso “aparelho”? Quem chefiava os 10.000 homens em armas nas fronteiras do Rio Grande do Sul? Como convencê-lo de que nossa organização era a OAB? Era a SBAT – Sociedade Brasileira de Autores, onde estávamos registrados com o nome artístico de César Vieira, para tentar escapar da censura? Que o “aparelho” ficava situado, corriqueiramente, no nosso escritório à Travessa Brigadeiro Luiz Antonio n° 22? E que os 10.000 homens em armas no Rio Grande do Sul estavam num mapa do General Assis Brasil, que se reportava à “Guerra Guarani dos Sete Povos das Missões”, acontecida por volta de 1750, e que servia de pesquisa ao trabalho de criação de uma peça para o Teatro Popular União e Olho Vivo?

Fizemos nossa auto-defesa oral perante a 2a Auditoria de Guerra, da II Circunscrição Militar, voltamos a fazê-la, pessoalmente, no Superior Tribunal Militar, em Brasília. E fomos absolvidos, por unanimidade! E fomos julgados por coronéis, por almirantes, por brigadeiros e por generais. E a sentença trouxe candente, gritante, a assertiva de que o Auto de Busca e Apreensão – motivo de nossa detenção e de todo o feito – Fora Forjado pela Autoridade!!!

Colegas advogados:

O processo que sofremos, como quase todos os que tramitaram e tramitam na Justiça Militar, foi falho, lacunoso e cômico, se não fosse trágico. Como subversivos foram apreendidos, em minha residência, os livros: “O inimigo do povo”, de lbsen; “Os Miseráveis”, de Victor Hugo; “Palavras sobre a Inquisição”, de Espinosa e muitos outros que poderiam estruturar o Festival de Besteiras e Iniquidades que assola o País! Apreendeu-se também a letra do hino “A Intemacional” e a resenha histórica “A Força Expedicionária Brasileira na Itália”!!!???

Ridiculamente aparece no inquérito um revolver que este advogado “carregava (SIC!?) na cintura”, lado a lado com a Constituição e os códigos. Essa arma, no transcorrer do feito, serviu de prova, sim, para mostrar como os autos de busca e apreensão são forjados da forma mais vil e mais tacanha!

E o que visavam com essa prisão e esse processo? O que visavam com a prisão e a intimidação de quase todos os advogados que militavam na Justiça Militar? Almejavam que deixássemos de exercer a profissão nessa área. E nesse afã prenderam, intimaram, invadiram, algemaram e processaram.

Mas não conseguiram. Nós continuamos resistindo. Continuamos porque não estamos sós. Porque conosco está a justiça que pode mais que todos os exércitos, quando seus depositários não esmorecem. Porque sentimos a nosso lado toda a classe, e mais do que a própria classe, o sentimento impávido de resistência de um povo ultrajado, mas não subjugado, não conquistado!

E nunca, no decorrer dessa tumultuada trajetória, estivemos sós. Contamos sempre com os familiares, liderados por meu pai, Thomas Pivetta, incansável nas suas mudanças; com meus irmãos jurídicos e de boemia, mestres de vida: Paulo Gerab e José Carlos Roston; com os companheiros de teatro: Luisa Barreto Leite, Neriney Evaristo Moreira e o diretor francês Roger Planchon, e com os colegas e amigos: Ayrton Soares, Belisário dos Santos Jr., José Carlos Dias, Rubens Damato, Roberto Cunha Azzi, Iberê Bandeira de Mello, Márcia Ramos, Antonio Mercado Neto, Maria Luiza Bierrenbach, Mário Simas, Eny Moreira, Joaquim Cerqueira César, Virgílio Eney, Luiz Eduardo Greenhalgh, Raul Soriano, José Roberto Maluf, Luiz Alberto Piscina, Antonio Funari Filho, Aldo Lins e Silva, Raimundo Pascoal Barbosa, Juarez Alencar, Rosa Cardoso e tantos outros cujo nome peço me perdoem por não citá-los, mas a quem também quero registrar o meu mais profundo agradecimento.

E lembrar ainda as entidades que, além da OAB e apesar da situação, fizeram soar suas vozes de solidariedade e apoio: a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, a União Nacional dos Estudantes, a Anistia lntemacional, a Rádio Vaticano, a Rádio Havana, o Sindicato dos Artistas de São Paulo, o CA XI de Agosto, o CA 22 de Agosto, o CA Casper Líbero e outras, muitas outras.

Finalizando, resumo minha saudação final numa só pessoa. Personalidade emblemática. Ser humano como poucos. Representante legítimo da nossa OAB, meu defensor. Um advogado que minha geração aprendeu a respeitar como jurista e a venerar como amigo. Um advogado, quase Quixote, arremetendo e derrubando muralhas e gigantes. Um advogado, quase Cyrano – sem a César dever a mínima parcela – colaborando para o caminhar sereno da história rumo ao seu destino! Esse advogado – cavalgando o Código, brandindo a Constituição e tendo por escudo a Lei – aponta, confiante, os caminhos da Liberdade e as trilhas da Cidade do Sol. Esse moço e sempre moço. Mestre e sempre amigo, como Paulo Gerab. Jurista e sempre humanista, como José Carlos Roston. Rara mistura de Quixote e Francisco de Assis. Acenando sempre com a pureza do lenço branco de um Teófilo Otonio… E com saber jurídico, impregnado de suor e vida, de um Ruy… Esse moço, talvez hoje, mais um Sancho, no físico, que um Quixote (com perdão a sua companheira Adma) é Miguel Aldrovando Aith!

Com homens dessa têmpera, com a certeza na verdade, com a fé inabalável na justiça, com a crença indestrutível na sabedoria do povo, nós confiamos que agora agoniza (ainda em estertores), a longa noite. É chegado o dia de adivinhar o porvir! É chegado o dia de apressar o futuro!

Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014



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