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Advogados

Iberê Bandeira de Mello

7 de dezembro de 2022

Uma memória

Dedicado a Hélio Navarro*

Agradeço a honraria para testemunhar sobre minha atuação como advogado de presos políticos.

Faz tanto tempo que não sei se posso confiar na memória.

Não sou de guardar documentos. Caso encerrado é caso findo.

Sempre devolvo a papelada para seus verdadeiros atores, os clientes, que, naturalmente, darão a ela um valor mais adequado, um lugar merecido.

Quanto a mim, guardo em algum lugar, escondido, nas profundezas da minha alma, as emoções alegres ou tristes, os sentimentos positivos ou negativos que eles e suas famílias me ensinaram durante a vivência do processo. Sempre aprendo algo que me serve para o caminhar nesta vida incerta, insegura e cheia de surpresas.

Não acredito que o tempo nos ensine, logo ele, passageiro e cheio de ilusões? Creio com firmeza que somos educados pela vida, o local da realidade objetiva, onde podemos, através das escolhas que fazemos, com as nossas forças mais positivas, deixar as verdadeiras marcas daquilo que fomos.

No que me diz respeito, recebi infinitamente mais do que dei. Aprendi mais do que ensinei. Trabalhei com um misto de medo e prazer para as pessoas mais dignas que, à época, conheci: idealistas, valentes, plenos de amor e ternura que estavam dispostos a dividir com a humanidade. Dizem alguns que foram inocentes, final de contas as forças do Estado que se transformou em Estado terrorista graças a muitos que, mortos vivos, ainda perambulam pela inutilidade das suas vidas sem nada fazer, sem nada criar, sempre buscando as benesses que possam receber. Os mesmos de sempre: pequenos oportunistas que enodoam sua nação.

Minha preferência pelos “inocentes” acentua-se com o caminhar do tempo. Aqueles que sobreviveram estão aí servindo com seus exemplos como marco de uma história que dá seus primeiros passos.

Sou por princípio a favor da teoria evolucionista. Embora ainda não seja um enunciado, ou mesmo consagrada como ciência, é perfilada por inúmeros sábios, pesquisadores e cientistas que realizaram grandes feitos para a humanidade. Estou em boa companhia. Não foi conseguida sua medição ou mesmo seu ponto de partida. Mas a tecnologia, subproduto da ciência, está ai para isso. Esse dia virá e torço para que esteja chegando rapidamente.

Acredito que quando o tema estiver pacificado muitos fatos serão esclarecidos. Por exemplo: não se evolui do mal para o bem. Assim é que os maiores sábios da história, como Sócrates, Buda, Cristo, Maomé e outros nem deixaram seus pensamentos escritos. Não construíram Estados ou mesmo nações. Será porque não tinham ego ou será porque sabiam que para a construção de algo semelhante teria, obrigatoriamente, de haver o conflito, a guerra, o assassínio, a dor e a miséria humana?

Fato é que nos dias atuais sobressai-se, pela grande maioria dos países, uma cantilena sobre os Estados. Eles estão muito pesados, muito dispendiosos, as populações não suportam seus custos, a administração dos mesmos está perto da impossibilidade. A infelicidade das maiorias que neles habitam é permanente, não há saída à vista que não sejam a violência, o terrorismo e o de sempre, a guerra.

Não podemos ser crédulos, isto não vai mudar de forma satisfatória, mas não devemos ser pessimistas: são questões sociais densas, profundas, mas são humanas e os humanos, uma vez convencidos, saberão resolvê-las, entendendo que ninguém está sozinho, que todos nós precisamos do outro, muito mais neste momento de espantoso crescimento demográfico. Que o caminho passa obrigatoriamente pelas práticas que nos legaram os sábios.

Aqui em nosso país, à época do terrorismo do Estado, para aqueles que se opunham às suas práticas o ambiente era de constante desesperança. Aquilo não iria passar tão cedo. No entanto, quando a verdade começou a desvelar-se não houve mais volta. Eles tiveram de fugir para suas cavernas de onde nunca deveriam ter saído. E a luz voltou a reluzir. E espero que por muito tempo.

Naqueles momentos gloriosos, com o povo nas ruas, viemos a tomar conhecimento das inúmeras formas de resistência que estiveram presentes todo o tempo e de várias maneiras. Quanta solidariedade no escuro, quanta aparência de medo travestida em coragem das quais narrarei uma que vivenciei.

Pelos idos de julho 1972, as condições carcerárias dos presos políticos eram lamentáveis. Além das péssimas condições de higiene, a insegurança era permanente; por motivos desconhecidos qualquer um era devolvido ao DOI-CODI, lugar onde todos foram torturados e muitos levados à morte. Indignados, escreveram cartas para todas as aparentes e mesmo não aparentes autoridades. De Juízes Auditores ao Presidente da República. Não foram atendidos por ninguém. Contrafeitos e injustiçados, convocaram seus advogados e pediram que formalizassem uma petição para que tivessem uma resposta oficial. Resolvemos que faríamos uma representação ao Superior Tribunal Militar para que coibisse a prevaricação dos Juízes Auditores da Segunda Região Militar, vez que eram os corregedores dos condenados e condenadas que estavam sofrendo tais agruras.

Eis que, para nossa surpresa, poucos dias depois, numa tarde/noite de uma sexta-feira, fomos nós, os advogados, presos nos nossos escritórios e transportados para o DOI-CODI, sem termos sido informados sobre a motivação do ato. Éramos os advogados: ROSA MARIA CARDOSO, MARIA REGINA PASQUALE, AIRTON SOARES, BELISÁRIO DOS SANTOS JR., IDIBAL PIVETTA, HÉLIO NAVARRO, VIRGILIO EGYDO LOPES ENEI e, eu, IBERÊ BANDEIRA DE MELLO.

Em seguida, recorremos à Ordem dos Advogados do Brasil – Sessão de São Paulo, que prontamente convocou uma sessão de desagravo para a noite do dia 22 de agosto de 1972, era seu presidente o advogado CID VIEIRA DE SOUSA. Já a Associação dos Advogados de São Paulo, presidida por JOSÉ DE CASTRO BIGI, imediatamente se associou à homenagem.

Coube a mim, indicado pelos colegas, fazer o discurso, mais ou menos falado assim:

A OAB- Secção de São Paulo e a Associação dos Advogados de São Paulo, neste ato representam o pensamento dos advogados de São Paulo e do Brasil.

Foram inúmeras as demonstrações de solidariedade que recebemos do Brasil e de algumas outras nações.

Os advogados do mundo e de todos os tempos não poderiam se calar diante do sucedido.

Oito colegas seus, no exercício profissional, foram detidos nos seus escritórios e residências, identificados e fotografados de frente e de perfil, interrogados horas a fio, sobre temas de nenhuma importância.

Tudo porque peticionaram em nome dos seus clientes. Pugnaram por condições humanas para seus clientes.

Mas os advogados do mundo e de todos os tempos não ficam surpresos frente a fatos como estes.

A história nos dá incontáveis exemplos semelhantes:

NAPOLEÃO tentou extinguir a profissão. HITLER E MUSSOLINI demonstraram repulsa aos advogados, encarcerando, quando não, matando os mais brilhantes, os mais idealistas, os mais notáveis.

LENIN dizia: advogados, nem os do partido.

Atualmente, nos países totalitários vêem-se os governos tentando transformar os advogados em simples defensores dos interesses do poder. Castramlhe as prerrogativas, transformando-os em meros tecnocratas.

Mas a história também nos diz que os advogados jamais cederam. Sempre representando os anseios mais profundos dos seus povos, conseguiram fazer triunfar o respeito à lei e os direitos inerentes à pessoa humana.

E nós advogados com uma ponta de orgulho até, afirmamos que jamais cederemos.

Jamais cederemos, venham de onde vierem as ameaças e coações.

Jamais cederemos, sejam quais forem os detratores e os perseguidores.

Jamais cederemos, porque entendemos que a causa maior é a da luta pela liberdade e pelo direito. E liberdade não é algo que se dosifique. É um estado: existe ou não existe.

Jamais cederemos, porque entendemos, como Romeiro Netto, paradigma do nosso ofício, quando afirma que a advocacia é:

“a auxiliar da justiça, amiga natural da liberdade, inimiga capital da tirania, insuflando coragem aos perseguidos para afrontar os poderosos, e a estes se impondo, por sua sobranceira independência.”

E, como ele, entendemos também que é função do advogado a humanização da justiça.

“E justiça sem humanidade, dizia o grande tribuno, será qualquer coisa de imperfeito.

Como seria a virgem que não guardasse, em seu corpo intacto, a pureza da sua alma;

O mar sem a palpitação das vagas;

O campo florido na primavera, sem que nele se sentisse o perfume de uma flor;

A prece balbuciada sem o calor da fé;

Enfim, o próprio céu, se nele jamais fulgisse o áureo sorriso das estrelas.

Tudo isso seria qualquer coisa de imperfeito, como qualquer coisa de imperfeito é a justiça distribuída sem a ação do advogado que tem por missão humanizá-la.”

E nós, hoje, nesta casa, ousamos ir além, porque julgamos que não só devemos humanizá-la como também lutar pela sua independência, para que ela possa ser exercida sem teias, com toda a sua força e viço.

Para que possa ser exercida sem injunções.

Para que possa ser exercida sem rancores.

Esta é uma homenagem despretensiosa que presto ao nosso amigo, que já se foi, Dr. Hélio Navarro. Foi ele líder estudantil, presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto da USP – São Paulo, Deputado Federal cassado no primeiro Ato Institucional, tendo cumprido pena no Presídio Tiradentes. Ao ser libertado, com toda a coragem que lhe era marca, juntou-se a nós para defesa dos presos políticos. Grande homem, grande perda.”

*Iberê Z. Bandeira de Mello é Advogado em São Paulo.

Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014



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