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Advogados

Humberto Jansen Machado

12 de dezembro de 2022

Os vivos e os mortos

“Puedo escribir los versos más tristes esta noche” (Pablo Neruda)

Como o poeta da América, posso fazer esta noite a defesa mais triste de quantas já fiz. E quantas vezes já falei de coisas profundamente tristes? Quantas vezes contei para os juízes as histórias terríveis que ouvi dos clientes. Quantas vezes eram os próprios acusados que narravam diante dos Tribunais as torturas e longos sofrimentos. Quantas vezes senti a angústia de saber que era tudo verdade e era uma verdade que mais pesava, porque não ultrapassava as paredes do Tribunal, para chegar ao conhecimento de toda gente. E, na sala de julgamento, vivia a defesa solitariamente o drama da nação estraçalhada, sofrendo a dor dos torturados e a certeza de saber da existência de homens que torturavam.

Muitas vezes denunciamos as misérias daqueles tempos difíceis, mas não esgotamos as poss ibilidades de eliminar as desgraças da nação dominada, porque os pedidos da defesa esbarravam sempre nas razões do Estado, nas razões da segurança, nas razões do poder mais forte, na cumplicidade de homens mais fracos. Tempos negros e difíceis, de dor e vergonha.

Hoje venho para a defesa mais triste. Para a defesa que gostaria de nunca precisar fazer. Venho para ir além, para pedir uma libertação maior. Venho para defender, não este ou aquele cliente, mas a nação ferida em sua dignidade pelos que, usando seu nome, cometeram os crimes mais torpes. Venho para requerer que a nação seja libertada e condenados os que a subjugaram. E se peço é porque confio no Tribunal ao qual me dirijo, que o sei a consciência da nação e, por isso mesmo, revestido de autoridade incontrastável e livre para julgar.

Egrégio Tribunal:

Agora, passados os momentos negros em que os governos se lançaram contra a nação, quando todos se dizem sinceramente empenhados em promover o reencontro dos brasileiros em torno de instituições democráticas duráveis, verificamos que muitos não mais estão presentes para participar. São aqueles que estão etiquetados como “desaparecidos”. E que muitos querem ver esquecidos para sempre, como se nunca tivessem existido, porque só assim se libertarão da pesada responsabilidade que têm para com a nação.

Mas há os desaparecidos, medidos pelo espaço vazio que deixaram na casa, no congresso, no partido político, no centro acadêmico, na esperança dos amigos, na angústia dos parentes. Há os desaparecidos como débito de todos nós, como obrigação não cumprida, como dívida a ser resgatada. Presentes como nunca, cobrando de cada um e de todos, porque somos a nação, o restabelecimento da legalidade perdida, o restabelecimento da dignidade e da honra. Ninguém fará deste país uma democracia, por mais que jure, por mais que queira, sem esclarecer por que e em que circunstâncias tantas pessoas “desapareceram”.

Em 1º de abril de 1964, as forças armadas deram um golpe, interrompendo o processo democrático e excluindo da vida pública todos os que discordavam. Chamaram a isso revolução e em seu nome instalaram uma ditadura, regida pela onipotente ideologia da Segurança Nacional, transformada em doutrina oficial do Estado. Amparado nos falsos conceitos dessa doutrina, o governo desencadeou uma guerra permanente contra seus opositores. E em nome da segurança nacional, que se dizia ameaçada pela guerra revolucionária, tudo era permitido para destruir o “inimigo interno”. Guerra revolucionária que compreendia qualquer espécie de contrariedade que se opusesse ao regime e que transformava em inimigo qualquer dissidente.

E os governos sucessivos, para manter o poder ilegítimo, levaram essa guerra a extremos jamais conhecidos na história da repressão em nossa terra. As prisões se multiplicaram aos milhares e, nas prisões, a tortura foi aplicada como sistema, como método, como norma, nunca como exceção, como erro de um subordinado. Foi parte do exercício do poder, foi a decorrência natural da violência instalada no poder, foi a última expressão da doutrina da Segurança Nacional. A tortura foi ensinada em aula, aqui mesmo no Brasil ou no Panamá e nos Estados Unidos, para onde centenas de agentes foram enviados para cursos de aperfeiçoamento.

Já não bastavam mais a ilegalidade das prisões, as investigações intermináveis à procura de crimes hipotéticos: as autoridades passaram a prender em segredo, a sequestrar as pessoas nas ruas, sem que ninguém ficasse sabendo, sem que nem mesmo a justiça tomasse conhecimento. Simplesmente as pessoas sumiam, eram levadas para lugares secretos, torturadas à exaustão e depois apareciam presas em alguma delegacia de polícia, respondendo a inquérito… ou não mais apareciam. Era como se delas nada se soubesse, como se nunca tivessem sido presas.

Mas quem são esses desaparecidos? Eram políticos profundamente engajados na luta contra a ditadura e seus governos. Eram trabalhistas, socialistas, comunistas, simples estudantes rebeldes, todos do lado da oposição militante. Não há desaparecidos do lado do governo. Isso aumenta a responsabilidade do governo, porque desapareceram pessoas que eram suas adversárias e que por ele, governo, já haviam sido perseguidas, cassadas, presas, torturadas e condenadas.

Cabe ao governo responder, por ser detentor do poder de polícia e ter a obrigação legal de zelar pela segurança de cada um e investigar os crimes que lhe são denunciados. O que se pede, portanto, é que a justiça mande as autoridades investigarem os desaparecimentos. E as autoridades têm a dupla obrigação de promover essa investigação: primeiro, por força do dever legal de investigar qualquer crime e, segundo, porque a suspeição recai justamente sobre o aparelho policial do governo. É exatamente aí, no conflito entre o dever de investigar e o suspeito, que se localiza o ponto de dificuldade. É aí que está a questão principal a ser resolvida.

Toda denúncia de lesão aos direitos deve ser apurada. E por que não se apura? Não se apura, porque se confunde a ação criminosa, praticada como decorrência de uma doutrina de segurança nacional antidemocrática, com as instituições nacionais, que foram por ela submetidas e transformadas em instrumento de uma política contrária à vontade da nação. Quer-se crer que a condenação dessa doutrina e dos que em seu nome cometeram crimes seja a condenação das Forças Armadas, tomadas em sua dimensão histórica como organização indispensável à existência da nação politicamente organizada.

Feita essa confusão, impede-se a apuração dos crimes denunciados, com a alegação de que se deve proteger a instituição, como se fosse ela quem devesse ser trazida ao banco dos réus. Mas não se está pedindo contra a instituição armada ou contra cada um dos que a integram, porque se sabe que são imensa maioria os que nunca aprovaram sua transformação em órgão de repressão política.

Os crimes cometidos contra presos políticos não foram eventuais. Os métodos da tortura foram codificados em manuais secretos, com o que havia de mais sofisticado e eficiente. Nu e encapuzado, o prisioneiro perdia o contato com o mundo, passando a conviver amesquinhado com a própria nudez. E se acrescentavam o frio, a fome, a sede, o ruído infernal alternado com o silêncio absoluto, o choque e as sevícias.

E tudo isso foi planejado com frieza profissional e aplicado sobre os prisioneiros. Foi nesse quadro que muitos sumiram para nunca mais aparecer, sem que sequer se tivesse notícia oficial de suas prisões. Como as prisões eram feitas clandestinamente, como os presos passavam dias e até meses mergulhados nos porões da tortura, só os sobreviventes se transformaram em presos entregues à justiça, os outros simplesmente desapareceram.

Egrégio Tribunal:

Estou dirigindo esta defesa da nação ultrajada a um tribunal talvez hipotético e indeterminado, mas certamente um órgão da Justiça regular e nunca de exceção, porque é uma face da própria nação. Excluo por princípio qualquer apelo à vingança e à retaliação. Invoco a serenidade da Justiça, peço a aplicação da lei previamente estabelecida, com todas as garantias da ampla defesa, e não a vingança travestida de lei.

E nada mais próprio que estar um advogado pedindo o cumprimento da lei. Porque durante esses longos anos, nada mais fizemos senão pedir e exigir que as autoridades cumprissem a lei. A cada dia, demonstramos que a autoridade não cumpria a lei. Agora, ainda uma vez e sempre, o advogado invoca a lei para que em seu nome se faça justiça. Que os desaparecimentos de presos políticos sejam apurados, que pelo menos se dê aos mortos o respeito que não foi dado aos vivos.

Espero que o Tribunal liberte a nação e condene os acusados, porque assim se fará justiça.

Humberto Jansen Machado é hoje Advogado Trabalhista, mas ainda mantém a defesa, nos requerimentos de anistia, dos que foram perseguidos pela ditadura militar. Foi Vice-Presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/RJ – 2009/2012. Em discurso proferido no Instituto dos Advogados Brasileiros, em setembro de 2009, sustentou que a Lei 6683/79 não anistiou os agentes do governo que cometeram tortura, uma vez que se trata de crime comum. Anistiou apenas os que cometeram crimes políticos.

Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014



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