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Advogados

Hélio Navarro

13 de dezembro de 2022

Legado de coragem e amor

Maria Tereza Ribeiro Lopes de Navarro*

A história de vida de Hélio é a história de um intransigente defensor das liberdades democráticas, que nunca abdicou de seus princípios, muito embora isto pudesse lhe custar a vida ou ainda, o que seria mais importante, sua liberdade. A liberdade sempre era considerada por ele o bem maior.

Dono de uma prodigiosa inteligência, altivez e independência, sua carreira como deputado e depois como advogado e defensor de presos políticos foi pautada pela integridade e coerência. Possuía uma coragem suicida e defendeu ao extremo, no governo militar, o patrimônio da nação ameaçado pela sanha dos interesses estrangeiros e os seguidos atentados contra o parlamento e a oposição. Foi aquinhoado com o dom de uma oratória privilegiada, sendo capaz de prender a atenção de grandes multidões e emocioná-las, discursando e enfrentando a censura, denunciando em praça pública e conferências o desrespeito aos direitos humanos e as prisões daqueles que se opunham a esse governo ilegítimo.

Desde a instauração da ditadura, começaram as prisões ilegais, assassinatos e desaparecimento de notáveis lideranças políticas, torturadas até a morte. E infelizmente, até hoje, aqueles que torturaram e mataram nossos patriotas e mártires ainda permanecem impunes.

Hélio, instaurada a ditadura, militava no Centro Acadêmico da São Francisco, tendo sido seu presidente e orador. Nesta época, firmou-se como uma liderança das mais aguerridas e denunciava o arbítrio contra os estudantes e sempre marcava sua presença na Tribuna Livre do XI de agosto, com discursos inflamados e corajosos.

Terminada sua graduação e não querendo omitir sua participação na luta contra o regime de exceção, decidiu concorrer a uma vaga na Câmara dos Deputados. Totalmente destituído de recursos financeiros, fez uma campanha centrada na televisão e nos comícios, com reiteradas denúncias contra a ditadura. Elegeu-se o mais jovem deputado da Câmara, com apenas 25 anos.

De posse do seu mandato, tornou-se uma das mais atuantes vozes de oposição, com presença constante nas comissões onde se discutia o levantamento aerofotogramétrico do Exército americano, esterilização de nossas mulheres por missões religiosas estrangeiras, defesa de nossa Petrobras, criação de uma Força Interamericana de Paz e prestação de serviço militar obrigatório por médicos e dentistas nos quartéis. Na comissão da Força Interamericana de Paz teve a colaboração de militares nacionalistas e dignos, como o Marechal Lima Breiner, que não compactuavam com os milicos entreguistas.

Tendo consciência da imensa disparidade de forças para enfrentar a ditadura, propôs a criação de uma Frente Ampla, congregando todos os setores de oposição: intelectuais, políticos, militares, estudantes, operários. Cogitava que a união destes setores progressistas teria que ser em torno de uma bandeira e passou a discutir com diversas lideranças a escolha da Petrobras para esse fim. Foi escolhido pelo Comitê de Imprensa, por dois anos consecutivos, como um dos dez melhores deputados do Congresso Nacional.

Até sua prisão, persistiu neste mister e teve adesão de importantes setores políticos, como o do ex- Presidente Juscelino Kubitschek. Mas sua liderança e coragem, que não titubeava em denunciar, seja da tribuna da Câmara ou em programas de televisão, a prisão ilegal de lideranças estudantis, a ameaça de cassação de um seu companheiro de parlamento, atraiu para ele a ira do regime militar.

No dia 13 de dezembro de 1968, o avião que chegava de Brasília foi invadido por policiais federais e ele foi levado, ilegalmente, ainda sem ter sido cassado, para a sede da Polícia do Exército em São Paulo, onde se iniciou seu calvário. Nós, seus familiares, ficamos desesperados e ansiosos, sem saber sobre seu destino ou sua integridade física. Hélio possuía, na época, documentos altamente comprometedores sobre corrupção de importantes figuras da vida pública e entregou a pasta contendo estes papéis a um parlamentar de sua confiança, pedindo para entregá-la a seus familiares. Estes documentos garantiram que ele não fosse submetido às torturas, porque, caso algo ocorresse, os documentos seriam divulgados pela imprensa internacional.

Durante sua permanência na prisão, testemunhou toda sorte de iniquidades, perpetradas pelo regime de exceção. Durante sua estada no DOPS, foi um dos que solidarizou-se com o ex-Deputado Jétero Faria Cardoso, que, após infindáveis sessões de tortura e a ameaça de seus algozes de torturarem e estuprarem sua mulher, tentou o suicídio. Relatou-me, quando pude finalmente estar com ele, que uma criança de um ano de idade fora torturada para que os pais falassem. Este menino, há pouco tempo, atentou com sucesso contra a própria vida, pelas sequelas advindas desse sofrimento.

Já no Presídio Tiradentes, apesar de sua situação, não perdeu a coragem e denunciou, ao Deputado Pedroso Horta, a cela dos incomunicáveis, onde presos mutilados pela tortura necrosavam em vida. A partir dessa constatação, Pedroso Horta, da Tribuna da Câmara, denunciava as torturas contra seres humanos indefesos.

No presídio chegavam sempre informações sobre atentados contra jovens e mortes ocasionadas pela tortura, como o assassinato de Stuart Angel, amarrado por correntes ao escapamento de um jipe. Apresentou-me Frei Tito, que estava no pátio do presídio, muito abatido e com os pés extremamente inchados pelo pau de arara, após tentativa de suicídio, decorrente de intermináveis horas de tortura.

Indignado com a situação dos presos políticos e o desrespeito aos direitos humanos e às Convenções Internacionais, das quais o Brasil era signatário, Hélio escreveu uma carta denúncia sobre este estado de coisas, que foi levada clandestinamente do Presídio Tiradentes para a França e publicada no Jornal Le Monde. E assim, sempre pronto a enfrentar a situação e colaborando com os companheiros mais fragilizados, ao galgar a liberdade, desistiu de um convite para lecionar na França e decidiu permanecer no País e defender presos políticos.

Logo ao sair, tratou de conseguir sua carteira da Ordem dos Advogados e teve como seu primeiro cliente o Padre Manuel Valiente, preso por ter dado abrigo aos freis dominicanos perseguidos pelos carrascos da ditadura. Como enfrentávamos dificuldades financeiras, apesar de ser acadêmica de Medicina, nas horas vagas eu fazia o papel de sua secretária e o ajudava com a datilografia. Sua defesa competente conseguiu a absolvição de Padre Manuel.

Hélio passou a integrar um pequeno grupo de advogados que, em São Paulo, inicialmente era composto por apenas oito profissionais, devido ao risco que envolvia a defesa de presos políticos.

Sua proposta era defender todos e somente cobrar daqueles que pudessem pagar. Teve inúmeros casos graves, um de seus clientes perdeu o uso da razão, devido ao sofrimento advindo das torturas, e sua condenação foi transformada em reclusão em Hospital Psiquiátrico. Parecia que voltávamos aos tempos em que o manicômio era o lugar destinado aos que desafiavam a opressão.

Sempre muito zeloso, Hélio tirava fotocópias de todo processo para estudar com afinco e descobrir brechas que pudessem auxiliar na difícil defesa de presos políticos. Num processo totalmente copiado, ao examinar o original, constatou que havia troca da denúncia. Possuía um importante trunfo, que poderia ser usado como moeda de troca, e assim o fez. Nesta época, estava presa uma sua colega de faculdade, ameaçada com duríssima penalidade. Foi ao tribunal e, de posse da documentação, atestando a ilegalidade da troca da denúncia, negociou a libertação desta e foi vitorioso, conseguindo a soltura de sua amiga. Foi advogado de Vanderlei Caixe, que era membro de um grupo de oposição de Ribeirão Preto, no qual também fazia parte um seu companheiro de cela, Guilherme Simões Gomes, professor de Dentística da Universidade de São Paulo. Defendeu Madre Maurina, uma religiosa de Ribeirão Preto, que emprestava o porão de sua Ordem Religiosa para que militantes imprimissem um jornal. Ela foi presa e barbaramente torturada, nos interrogatórios realizados pelo Delegado Sérgio Paranhos Fleury. A madre foi trocada pelo cônsul japonês Nokuo Okuchi, sequestrado por militantes da esquerda, e levada a Roma. Outro cliente de Hélio foi Samuel Barnsley Pessoa, Professor Emérito da Faculdade de Medicina da USP e, apesar de longevo e estar presidindo, na ocasião, um Congresso Internacional de Parasitologia, foi preso e examinado por médico que se prestava a este indigno papel, para verificar a possibilidade de poder ser submetido a sessões de tortura. Hélio prontamente entrou com pedido de habeas corpus e anexou um livro dos títulos e trabalhos que constituíam o currículo deste professor, uma autoridade mundial em Parasitologia Médica. Felizmente, conseguiu sucesso e o professor foi posto em liberdade. Quando indagado pelo professor sobre honorários, solicitou um livro de Parasitologia autografado, para que fosse dado a mim, para meus estudos médicos. Este livro, verdadeira relíquia, foi dado depois a nossa filha Eneida, estudante de Medicina.

Hélio foi procurado por José Carlos da Mata Machado, a quem tinha conhecido no Presídio Tiradentes, preso por participação no Congresso de Estudantes. José Carlos era filho de um deputado de Minas, seu colega de legislatura e, naquele momento, estava em estado de penúria, perseguido pelos militares, e pediu guarida. Dada a situação de debilidade física de José Carlos, levei-o à Universidade Federal de São Paulo, onde estudava, para ser submetido a exames de laboratório. José Carlos propugnava-se, ao melhorar de sua condição física, encontrar-se com a família e permanecer num sítio, para completar seu restabelecimento e entregarse às autoridades, a fim de legalizar sua situação.

Entretanto, no caminho para Minas, por denúncia de um colaborador infiltrado na organização, com parentesco com sua mulher, Madalena, José Carlos foi preso e levado posteriormente para Recife, onde foi torturado até a morte, tendo seu corpo sido entregue em caixão lacrado para a família. Madalena, depois, foi atendida por mim em São Paulo e relatoume que foi barbaramente torturada e, como estava grávida, abortou em consequência das sessões de tortura, com todas as atrocidades perpetradas, na época, contra as mulheres.

A luta contra as injustiças de todos os matizes foi a luta da vida de Hélio Navarro, um homem íntegro e generoso, de fé inquebrantável de que é possível construir um mundo melhor.

*Maria Tereza Ribeiro Lopes de Navarro, viúva de Hélio Henrique Pereira Navarro, é Médica e avó de dois meninos.

Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014



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