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Advogados

Heleno Fragoso

6 de dezembro de 2022

A defesa de presos políticos

Fernando Fragoso*

Heleno Fragoso nasceu em Nova Iguaçu, Estado do Rio de Janeiro, em 5 de fevereiro de 1926. Habilitou-se ao Curso de Direito da Faculdade Livre do Distrito Federal, onde se bacharelou no ano de 1951.

Estudava religiosamente todos os dias. Escrevia, advogava e estudava. Esta a minha lembrança de nossa vida familiar. Não por outro motivo, sua principal obra, “Lições de Direito Penal”, foi lançada no ano de 1958, contando Heleno 32 anos de idade. No ano de 1961, jovem de apenas 35 anos de idade, desconhecido, disputou a Livre Docência de Direito Penal na Faculdade Nacional de Direito, com a tese “Conduta Punível”, vencendo a disputa contra o prestigiado Desembargador do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, Dr. Cristovam Breyner.

A dita “Revolução” de 1964 trouxe consigo a longa ditadura militar, ditadura que tratou com grave e disseminada violência física e processual os adversários do regime.

Heleno atuou permanentemente em favor de perseguidos pelo regime, desde 1964 até o fim dos procedimentos políticos no âmbito da Justiça Militar Federal, nos primeiros anos da década de 1980, mesmo após a Lei de Anistia (1979).

Advogou, ainda, em outro setor de perseguições realizadas pelo regime, no âmbito das famigeradas Comissões Gerais de Investigação, organismos de caráter totalitário, despótico, que visavam apurar administrativamente alegado “enriquecimento ilícito” por parte de certos atores da administração pública. Nestas CGIs operaram-se variados confiscos de bens de diversas pessoas, submetidas a investigações secretas, a que se sujeitavam inimigos do governo, apontados como corruptos ou autores de estelionatos ou apropriação de verbas públicas. Aquelas investigações, ultra-secretas, se realizavam sem contraditório, permitido o conhecimento do processado apenas no momento de uma defesa final. Inquéritos administrativos que bem corporificavam o timbre autoritário do regime militar.

Heleno faleceu aos 59 anos, em 18 de maio de 1985, tendo realizado uma carreira fulgurante como professor, jurista e advogado. Advocacia criminal que ensinou dever ser eminentemente técnica, ao contrário daquela tradicional, característica da eloquência nos salões do Júri, que tanto destacaram advogados nas décadas precedentes.

A DEFESA DE PRESOS POLÍTICOS

Anos difíceis foram aqueles em que vigorou o Ato Institucional no. 5, editado em dezembro de 1968, que sobrepujou a Constituição de 1967 e foi o instrumento que deu ao regime poderes absolutos e cuja primeira consequência foi o fechamento do Congresso pelo prazo de um ano, suspendendo o habeas corpus, em casos de “crimes políticos”, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e os crimes contra a economia popular. Durante o AI-5, recrudesceu a censura que se estendeu à imprensa, artes, música, teatro e cinema. Os atos institucionais deixaram de vigorar em 01/01/1979.

O fim do AI-5 não representou a revogação da Lei de Segurança Nacional, sendo certo que Heleno continuou a defender pessoas perseguidas politicamente, professores, escritores, políticos, religiosos, sindicalistas, estudantes perante a Justiça Militar.

Em seu livro “Advocacia da Liberdade” (Ed. Forense, 1984), Heleno Fragoso relatou os principais casos em que atuou como defensor de acusados por crime político.

A obra se inicia com o histórico dos inúmeros Inquéritos Policiais Militares que envolveram o editor Enio Silveira, proprietário da Editora Civilização Brasileira, que produzia regularmente uma Revista que acolhia monografias escritas pelos “esquerdistas, comunistas, subversivos, adversários do regime”. Enio frequentou as cadeias militares durante todas as fases do regime de 1964, pontuando que “sempre tinha uma maleta pronta” para levar de casa para o cárcere militar, nas muitas vezes em que sua residência foi invadida e ele conduzido, sem ordem judicial, aos porões em que se realizavam as atividades investigatórias por encarregados de inquéritos policiais militares.

Heleno foi o advogado que impetrou o Habeas Corpus coletivo que libertou os estudantes secundaristas que se reuniram, em Ibiúna, SP, no ano de 1968, entre eles Franklin Martins, Vladimir Palmeira, José Dirceu e vários outros dirigentes da União Nacional dos Estudantes.

Um dos casos marcantes da atuação do advogado Heleno Fragoso constitui-se a defesa da Sra. Niomar Moniz Sodré Bittencourt, proprietária do matutino carioca “Correio da Manhã”. Niomar era uma das mais consistentes adversárias da ditadura militar, tendo reagido duramente, num de seus editoriais, contra o AI-5. Em editorial divulgado no dia seguinte ao Ato, Niomar destacava que ele tornava escancarada a ditadura militar, editado pelo Gen. Costa e Silva, alçado pelas forças armadas à presidencia da República. Costa e Silva sentiu-se pessoalmente ofendido pelo editorial de Niomar e exigiu severa punição da ousada jornalista, por sua atividade subversiva, atentatória à segurança institucional… Era evidente o propósito de atingir a liberdade de imprensa, com a longa prisão preventiva e processo penal contra Niomar Bittencourt.

A certeza de que não haveria julgamento justo e imparcial, pela Auditoria do Exército, onde a ação penal tramitava, levou Heleno a solicitar e ver atendida a presença de um observador indicado pela Comissão Internacional de Juristas da ONU. Veio ao Brasil o Prof. Sebastián Soler, penalista argentino, cujas entrevistas com autoridades locais tiveram significativa repercussão na solução do processo.

A absolvição de Niomar, entretanto, não desanimou o governo em sua campanha aberta para fechar o jornal que ela presidia. O Correio da Manhã não sobreviveu ao regime militar, vindo a cerrar suas portas em 1974.

Outro importante cliente de Heleno Fragoso foi o escritor Caio Prado Junior, processado por suas afirmações em entrevista concedida a estudantes da Faculdade de Filosofia da USP, em1967, a propósito de idéias contidas em seu livro “A Revolução Brasileira”, entendidas como incitação subversiva. Afirmado pelos juizes da Auditoria de São Paulo como sendo “um comunista”, Caio Prado foi condenado à pena máxima, por ser um revolucionário ao dizer que as pessoas devem lutar, e assim entendido como incitador dos estudantes contra a ordem política vigente. O Superior Tribunal Militar manteve esta condenação de primeira instância, mas acabou revertida pelo Supremo Tribunal Federal, que o absolveu unanimemente.

Heleno defendeu inúmeros religiosos católicos, vários dos quais atuavam em regiões muito carentes do país. A Igreja Católica era entendida adversária do poder e protetora dos subversivos. Nesta linha, qualquer opinião em pregações que pudessem realçar a usurpação de direitos civis era considerada atividade subversiva.

Ainda no seu livro “Advocacia da Liberdade”, Heleno refere a defesa de Stuart Angel Jones, quando este já havia sido assassinado nos porões do regime, especificamente na Base Aérea do Galeão. A Justiça Militar, por uma das Auditorias de Aeronáutica do Rio, se recusou a reconhecer a morte de Stuart, mantendo os processos e realizando seus julgamentos. Foram defesas de um réu morto! Filho de uma brava mulher brasileira e de pai naturalizado americano, o desaparecimento de Stuart foi objeto de denúncia a vários organismos de defesa dos direitos humanos em todo o mundo, que cobraram noticias e posicionamento de parte do governo militar brasileiro. E tão divulgada a violência praticada, teve sua trajetória levada à cinematografia, no filme”Zuzu”, apelido de sua mãe, Zuleika Angel Jones.

Heleno Fragoso era um dos membros da Comissão Internacional de Juristas da ONU, com sede em Genebra, utilizando sua posição internacional para diuturnamente denunciar a violência do regime militar brasileiro. A tortura tornou-se, após 1968, o método corriqueiro de obtenção de confissões nos inquéritos policiais, civis ou militares. Sim, porque as Delegacias de Ordem Política e Social, os famigerados DOPS das Polícias Estaduais e os SOPS da Policia Federal igualmente exerciam violências físicas inomináveis aos investigados, diuturnamente sequestrados e conduzidos presos, sem ordem judicial.

Heleno Fragoso denunciava a tortura em todas as salas da própria Justiça Militar, ainda que nenhuma das denúncias tenha sido objeto de apuração. Em uma destas defesas orais perante o Superior Tribunal Militar, o Ministro General Rodrigo Octavio Jordão Ramos pretendeu que fosse Heleno preso e processado por ofensa, calúnia subversiva, praticada contra as autoridades que investigavam crimes políticos. Heleno dirigiu a ele e aos demais ministros da Corte uma correspondência exemplar sobre as prerrogativas do advogado e a liberdade da defesa, inviolável na tribuna! Em boa hora, o STM abortou a proposta de Rodrigo Octavio.

As detenções ilegais de investigados se faziam sem ordem judicial e, pior, sem se produzirem comunicações destas prisões, constitutivas de crime de abuso de autoridade, mesmo sob o ordenamento jurídico vigente.

Desconheço a aplicação da lei de abuso de autoridade a qualquer policial em decorrência dos intoleráveis abusos que cometeram naqueles anos obscuros. A Lei de Anistia foi, lamentavelmente, interpretada por nossa Suprema Corte como abrangente aos autores de crimes contra os presos políticos. Tempos que, confio, nunca mais retornarão à cena brasileira.

Não por outra razão, por suas reiteradas denúncias das torturas impostas a acusados, Heleno Fragoso foi sequestrado em nossa residência em novembro de 1970. Levado por agentes não identificados naquela noite para local desconhecido, sem exibir qualquer mandado judicial ou de qualquer autoridade.

Ficou por dois dias desaparecido e ao tempo em que exercia a Vice-Presidencia da Ordem dos Advogados do Brasil na Guanabara. As autoridades negaram a prisão de Heleno. Ao final do segundo dia, foi liberado, encapuzado, no alto de um morro no bairro de Laranjeiras, comandado a caminhar sem rumo, sem ver o caminho. Imaginou que seria fuzilado, o que afinal não aconteceu.

Eis um pouco do muito que os advogados brasileiros realizaram, na trincheira da defesa de presos políticos, no Brasil da obscuridão da ditadura militar, de triste memória.

*Fernando Fragoso é Advogado Criminalista, Professor de Direito Penal, Presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros e filho de Heleno Fragoso.

Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014



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