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Advogados

George Tavares

12 de dezembro de 2022

A advocacia na ditadura militar

Estávamos em plena ditadura, quando decidi aceitar a defesa dos perseguidos políticos. Naquela época, para a missão que me impus, tive que deixar o medo de lado.

Comecei primeiramente defendendo militares, porque fui do Colégio Militar e já tinha certa projeção na advocacia, embora muito jovem. Passei a ser procurado por ex-colegas e oficiais militares, que tinham uma posição política de não adesão ao Golpe de 64 e, por isso, foram perseguidos e processados. Nas Auditorias Militares, consegui obter até muito sucesso nessas defesas, num primeiro momento, porque eles adotavam uma posição legal. A contestação mesmo começou mais tarde. Conforme o conflito se aguçou, a resistência foi aumentando, principalmente a de esquerda, e passei a defender também os processados políticos civis, opositores da ditadura.

Por causa da minha atuação, sofri duas prisões. A primeira, quando defendi o jornalista Gerardo Mello Mourão, num processo de calúnia e difamação movido por Paulo Lefévre, por ter escrito um artigo denunciando os falsificadores da obra da Djanira da Motta e Silva. Uma integrante da quadrilha de falsificadores, que parece até tinha parentesco com um senador, conseguiu, no Exército, que prendessem o Mourão, sem nenhuma base legal.

Na defesa, contei os fatos e citei tudo que haviam falsificado, atacando assim as práticas da quadrilha. No final, terminei dizendo: “Agora, por acão dessa mesma corja, o infeliz do querelado amarga por mais de 90 dias no cárcere do I Exército. É um sinal dos tempos”. Depois disso, o Paulo Lefévre pegou a página final da minha defesa, mas não a parte inicial do texto, e levou ao I Exército, afirmando que eu usara o termo “corja” em referência ao Exército, não à quadrilha. Assim, determinaram que eu fosse preso imediatamente.

Sem saber disso, fui ao I Exército para ver o irmão do Antonio Evaristo de Moraes Filho, meu sócio por muito tempo, não de escritório, mas funcionávamos associados na advocacia. O irmão do Evaristo, mais velho que ele 18 anos, foi meu professor na faculdade e tinha sido preso. Fui lá para soltá-lo e procurei o Subchefe do Estado Maior do I Exército, o Coronel Pimentel, que me tratava com muita consideração, tanto que o Evaristo pediu para eu ir lá, em vez de ir ele mesmo.

Logo que entrei, o Pimentel disse “Olha, vamos ver o que posso fazer sobre a prisão do professor, mas quero dizer que estou com um mandado de prisão para você, aqui na minha mão, e não vou querer que você saia daqui preso. Então, me diga quando quer ser preso e vá para casa. Você terá direito à prisão especial, pode escolher onde ficar, mas não escolha o Exército, porque está sendo muito malquisto, por ter chamado o Exército de corja.” Expliquei que não havia me referido ao Exército, mas a ordem tinha de ser cumprida.

Fui para o Regimento Caetano de Farias. Eu era muito conceituado e o comandante me ofereceu uma sala ao lado do gabinete dele, mas não quis ficar isolado e respondi que gostaria de ficar com os outros presos. Ele, então, me disse que eu ficaria no quartel com menagem, que é uma prisão especial em que o preso pode circular à vontade e ficar em qualquer dependência, como se fosse um hóspede.

Por sorte, o advogado que atuava na acusação do Mourão era o Heleno Fragoso. Nessa época, tínhamos uma ligação ainda insipiente, mas quando ele soube que eu estava preso, foi lá me visitar e disse que estava desistindo daquele processo e levaria ao I Exército o texto completo da minha defesa, para provar minha inocência. Ele fez isso e eu fui solto, fiquei lá só uns três ou quatro dias.

Essa minha primeira prisão foi uma coisa leve, mas a segunda, no final de 1970, foi pesada. Eu tinha 35 anos, mas já era muito conhecido como defensor de perseguidos políticos. O DOI-CODI resolveu simplesmente mandar prender os advogados. Prendeu também o Sussekind de Moraes Rego, já um senhor idoso e doente, e o Heleno Fragoso, que, igualmente, não estava com saúde.

Assim que levaram o Heleno, no meio da noite, eu fui procurado pelo filho dele, o Fernando Fragoso, e saímos a sua procura. Fomos a vários locais onde ele poderia estar preso, mas não o encontramos em lugar nenhum. Quando voltei e fui falar com a esposa do Heleno, ela disse “olha, acho melhor você ficar aqui, não ir para casa, porque eles vão te apanhar.” Ela teve uma premonição. Mas eu resolvi ir para minha casa, mesmo assim.

Pela manhã, chegaram dois homens com carteira da Polícia Federal e pediram que os acompanhasse. Saí de casa com eles, me colocaram no banco de trás de um carro, depois me puseram um capuz e me levaram para o Alto da Boa Vista, conforme fiquei sabendo depois. Fui conduzido a um corredor de celas, um poço gelado no subterrâneo, onde encontrei os outros dois. Não nos vimos, mas, a certa altura, o Sussekind falou com o carcereiro e reconheci a voz dele, depois, o Heleno reconheceu minha voz. Fui para uma cela que só tinha uma cadeira, não tinha cama. Passei uma noite horrorosa.

No segundo dia, o Sussekind, que já estava doente, piorou e disse “eu vou morrer, preciso de um médico, não estou aguentando.” Foi quando comecei a gritar, pedindo ajuda. Logo veio um boçal qualquer e disse: “cala a boca ou vou aí te dar porrada.” Eu respondi, sem paciência, “olha o que você vai fazer, porque não vai ter coragem de ir até o fim. Se entrar aqui pra me dar porrada, vou me defender, vou revidar e você vai ter que me matar. Então, só venha se for pra me dar logo um tiro na nuca.” Ele recuou. E eu continuei a berrar, porque o Sussekind estava passando mal. Em seguida, trouxeram uma pessoa que dizia ser médico, para dar um remédio a ele.

Depois veio um dos chefes. Só que esse chefe era o Capitão Zaíro de Pontes, que foi meu colega de colégio militar e se dava bem comigo, na época de escola. Ele ficou surpreso, não sabia que me encontrava ali. Ele não estava envolvido com as prisões, fora enviado para inspecionar o local onde havia “uns presos importantes”. Ele perguntou o que eu estava fazendo ali e me deu um abraço. Quis saber do que precisávamos. Eu disse, primeiramente, de colchões. Estava, há dois dias, dormindo numa cadeirinha escolar, sem poder botar os pés no chão por ser extremamente gelado, foi um sofrimento enorme. O Zaíro mandou os colchões e disse que faria tudo para sermos libertados. Realmente, no dia seguinte, saímos. Eu vi o Sussekind sair encapuzado. Como o Heleno estava na cela do lado direito, não o vi passar, mas sei que saiu, e depois saí eu. Me deixaram num local distante e desabitado, no meio da noite, e ainda, por maldade, simularam que iriam me fuzilar; ouvi o tiro e, logo após, eles entraram no carro e saíram em disparada. Procurei ajuda e, mais tarde, consegui um táxi e fui para casa.

Defendi centenas de perseguidos políticos, civis e militares. Um deles foi o Nelson Lott, filho de Edna Lott e neto do Marechal Henrique Teixeira Lott. Nesse caso, a perseguição foi maior justamente pelo ódio que nutriam pelo avô, um legalista que apoiou a posse do presidente João Goulart.

O Nelson começou a militância política de contestação e respondeu a doze processos. Ele confessou vários assaltos a bancos, as chamadas expropriações da burguesia, para levantar fundos para a luta armada, mas não havia provas da participação dele, só havia a confissão que obtiveram sob terrível tortura. Ele ficou 43 dias incomunicável, emagreceu dez quilos e estava devastado. Nos interrogatórios feitos nas Auditorias, o Nelson negou tudo que tinha confessado no inquérito policial, dizia que não havia participado dos assaltos, que não pertencia à ALN e nem o carro usado nos assaltos pertencia a ele, pois havia vendido meses antes. Ele declarou que assinou depoimentos sem ler e em branco, porque ameaçaram prender e torturar também sua mulher, grávida.

Defendi o Nelson nas Auditorias, mas não adiantava, ele era sempre condenado, só foi absolvido em um dos processos, se não me falha a memória. Eles não tinham nada, só a confissão dele. Não era reconhecido por testemunhas, não fizeram acareação, não tinha nenhum tipo de prova, só a confissão arrancada sob tortura. Nessa época, a Justiça estava muito dura. Quando acabou, entrei com recurso no Superior Tribunal Militar e consegui a absolvição dele nos outros processos, menos na condenação pelo assalto ao Banco da Bahia. Fui, então, a Brasília, para recorrer no STF. No Supremo, o relator foi o Aliomar Baleeiro, que reconheceu, perplexo, que realmente não havia nenhuma prova contra o acusado, só a confissão. Ele não havia sido preso em flagrante, nem reconhecido por ninguém, não possuía os frutos do crime, enfim, não havia nenhum respaldo probatório. O ministro Aliomar absolveu o acusado e reformou a decisão, mas disse: ”como está evidente que ele faz parte de uma organização política, eu o condeno por participar de organização contrária a Lei de Segurança.” Ele não absolveu o Nelson totalmente, mas condenou o rapaz a cinco anos, com redução de um quinto, por ser réu primário e menor de 21 anos, na época dos crimes. Enfim, devido ao tempo que o Nelson já estava preso, foi solto depois de um mês. Apesar do autoritarismo e da grande violência do regime militar, o STM e o STF funcionaram com independência.

George Tavares é Advogado Criminalista, Professor aposentado de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, ex-Professor de Direito Processual Penal da Universidade Gama Filho, ex- Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, ex-Procurador Geral da Justica Militar, ex- Presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro

Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014



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