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Advogados

Francisco de Assis Pereira

13 de dezembro de 2022

Uma luta por justiça

Por questão de formação pessoal tinha eu especial admiração pelos homens públicos Getúlio Vargas, Jânio Quadros, Juscelino Kubitschek e João Goulart. Nunca vi neste último qualquer tendência ou vocação comunista, roupagem que lhe vestiram injustamente os EEUU, usando docilmente a Igreja Católica, como algoz de João Goulart.

Via em João Goulart uma pessoa profundamente preocupada com o homem brasileiro, com grande preocupação social, aliás, como foram também Getúlio Vargas e Jânio Quadros.

Esta mesma preocupação social tomou conta de mim, como advogado e Vereador na cidade de Cândido Mota, eleito por várias vezes, sempre com expressiva votação, sendo por duas vezes Presidente do Legislativo.

Crescera minha banca de advogados em toda região Sudeste de São Paulo e Norte do Paraná, dando assistência a vários sindicatos de trabalhadores rurais, tendo eu proposto cerca de 120.000 demandas trabalhistas, acidentárias e cíveis de indenização e repetição indébito em todas as comarcas da região.

Isto revoltou os fazendeiros e proprietários rurais, que engendraram várias iniciativas para que me implicassem com as autoridades revolucionárias.

O próprio Ministro da Justiça da época, Dr. Alfredo Buzaid, reuniu-se em Ipaussu, na fazenda de um grande proprietário rural, para onde foram convocados vários juízes, promotores e delegados, todos eles unânimes em isentar-me de qualquer atitude subversiva.

Fazia eu um júri na cidade de Assis, presidido pelo Dr. Raphael de Barros Monteiro Filho, na época jovem juiz, que ao depois galgou o alto cargo de Ministro do Superior Tribunal de Justiça, em Brasília. Chegaram, na sessão do júri, vários Delegados de São Paulo e do Norte do Paraná, pretendendo eles me levarem preso.

Entreguei-me imediatamente. O Dr. Raphael teve uma decisão espetacular. Perguntou aos delegados o que queriam. “Queremos levar preso o Dr. Francisco de Assis Pereira”, responderam eles. Dr. Raphael lhes perguntou: “Têm os senhores o respectivo mandado de prisão?”, “Não”, responderam eles, acrescentando: “Somos agentes da revolução e não precisamos de mandado para prendê-lo”. “Mas na minha comarca prevalecem as leis e a Constituição” disse corajosamente o jovem Magistrado. “Aqui ninguém vai preso a não ser em flagrante delito ou sob regular mandado de prisão.” Voltando-se para o Promotor, Dr. Neuton de Calazans, perguntou-lhe, “Vossa Excelência já está há várias horas na sessão de júri, em companhia do Dr. Francisco de Assis Pereira. Praticou ele algum crime ou está praticando?” Diante da negativa do Dr. Promotor, disse o jovem Magistrado: “O Dr. Francisco de Assis Pereira entregou-se a mim, e não há nenhuma regularidade na pretensão de Vossas Senhorias. Não só não vai preso, como ainda vou colocá-lo sob proteção do delegado local, para que não lhe aconteça qualquer abuso de autoridade. “

Não contentes com o insucesso, fizeram nova tentativa na Comarca de Pirajú, onde era magistrado o Dr. José Eduardo Pinto Sampaio, que chegou a Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, hoje falecido.

A mesma cena, o mesmo diálogo, a mesma coragem, acrescentando-se, ao final do diálogo, a afirmação do Dr. José Eduardo: “No dia em que for abolida a lei em minha pátria e imperar o discricionário, deixo a toga e vou vender pipoca e amendoim nas ruas.”

Fui intimado a comparecer em São Paulo, no DOPS, à presença do temido Delegado Fleury. Apresentei-me perante ele, colocando-me em uma cadeira a sua frente. Ele lia tranquilamente um volumoso jornal, deixandome com os nervos à flor da pele, certamente uma de suas técnicas perante os acusados.

De repente, ele fecha abruptamente o jornal e em voz alta diz: “Então você é aquele subversivo do sudoeste de São Paulo e norte do Paraná?”

Levantei-me e cumprimentei-o cortesmente, fazendo menção de sair da sala. Surpreso, ele me pergunta: “E onde você pensa que vai?”

Disse-lhe: “Vim aqui para ser ouvido, conforme a intimação que recebi, e não para ouvir gritos de ninguém”.

Surpreso, ele me diz: “Vamos sentar e tratar deste caso”.

A partir daí, vi um homem interessado na verdade, que me ouviu longamente, terminando por dizer: “Neste caso o subversivo não é você, Dr. Francisco, mas os fazendeiros e proprietários rurais que escravizam seus empregados”. E o processo acabou sendo arquivado.

Em junho de 1969, o Delegado de Polícia de Andirá, Paraná, bolou um plano para me prender, já que todas as iniciativas não tinham conseguido este objetivo. Começou ele a prender meus clientes. Prendeu-os em número de 130 e, diante do desespero das famílias, fui até Andirá, onde recebi voz de prisão e fui preso com mais 13 pessoas, já que todos os outros desistiram de seus pleitos judiciais em troca de sua liberdade.

Curioso que as petições de desistência eram assinadas na delegacia de polícia, levadas pelos advogados dos fazendeiros e assinadas pelos trabalhadores, que eram colocados em liberdade. Foram 13 comigo a Curitiba, em duas kombis, com vários guardas. No caminho, numa parada, fiz um discurso sobre uma cadeira, num restaurante, denunciando nossa prisão, porque desde Andirá todos nos diziam, vocês sairão daqui, mas não sabemos se chegam a algum destino.

Chegando a Curitiba, fomos a várias delegacias de polícia, quando dizia eu aos delegados: “Cuidado, nossa prisão é ilegal e os senhores responderão por ela.” Nenhum Delegado da Polícia civil nos quis receber. Fomos entregues à Polícia Federal, onde ficamos nove dias, em um quarto sem colchões, sem banheiro, sem janelas e nossa única chance era pedir para ir ao banheiro. Numa dessas ocasiões, deparei-me com quem hoje dá o nome ao Estádio de Futebol, o Major Couto Pereira, e como o conhecia, pedi a ele que avisasse meu irmão, Dr. Cylenio Pessoa Pereira, advogado em Mandaguari, na época, e foi a partir disso que minha família me localizou.

No nono dia pretendiam nos transferir para a penitenciária do AHU, em camburões fechados, ocasião em que não aceitei este tratamento e diante de muita gente que estava no pátio fiz um pequeno discurso, denunciando nossa prisão e a injustiça dela. Entre as pessoas que assistiram ao meu discurso, vi meu pai, o Dr. João Thomas Pereira, homem muito rigoroso e, por um instante, temi sua reação. Chegando perto de mim, ele me abraçou e disse: “Filho, estou muito orgulhoso de você, continue assim.”

Fui levado para a penitenciária do AHU e, à falta de prisão especial, colocaram-me na enfermaria, onde passei duas noites e um dia, ouvindo gritos, lamúrias e toda sorte de expressão de dor. Ao depois deram-me uma “cela especial” de onde pude elaborar minha defesa e a defesa de muita gente presa e lá abandonada.

Aos 23 dias de prisão, recebi a liberdade e, alguns meses depois, recebi a sentença que me inocentou totalmente, sendo talvez o único brasileiro que tem um atestado judicial de que não é subversivo.

Esta prisão teve um efeito devastador em minha vida. Preso em Curitiba, não recebi uma visita sequer, a não ser de minha parentela mais próxima, apesar de ser o vereador mais votado de Cândido Mota, Presidente da Câmara e advogado de muita gente. Fatos que entristecem as pessoas presas, aconteceram comigo.

Durante minha prisão, houve uma audiência cível importantíssima e, naquela época, havia uma punição para o cliente, quando seu advogado não comparecia. Era a temida absolvição da instância, quando o processo era finalizado, não prosseguindo e cabendo à parte recomeçá-lo, se quisesse, do início.

O advogado exadverso era meu inimigo e, embora soubesse que eu estava preso, pediu “absolvição de instância” que, se aceita, colocaria fim ao processo, com condenação em custas e honorários. Era Juiz do caso o Dr. Wanderley Raccy, que indeferiu o pedido do malicioso advogado.

Há no processo muita declaração e testemunhas a meu favor. Mas há muitos tendenciosos e inverídicos como o que relato a seguir.

Havia um Delegado de Polícia, em Cândido Mota, que tinha umas esquisitices. Intimava todo mundo para comparecer à delegacia às 13:00 horas, mas só ia atender as pessoas à partir das 21:00 horas, passando a noite nessa atividade.

Instalou ele na delegacia um stand de tiro ao alvo, onde fazia todo mundo demonstrar a pontaria, e andava com dois revolveres 38 sobre suas ilhargas. Várias vezes instou ele comigo para demonstrar-me no tiro ao alvo. Um dia, após muita insistência dele, pedi explicações como deveria fazer, como empunhar a arma e como atirar. Ele pacienciosamente me explicou e, pegando eu a arma, atirei, pasmem, acertando na mosca.

Quem nunca atirou e no primeiro tiro acerta na mosca, nunca mais vai atirar, para não perder o glamour do acerto na mosca. Mas não foi este o entendimento do ilustre delegado de polícia. Sua informação no processo foi: “Apesar de todas as iniciativas para disfarçar sua grande habilidade em manejar arma de fogo, o Dr. Francisco de Assis Pereira demonstrou-se exímio atirador, que não consegue esse feito, senão através de custoso e longo treinamento, acreditando eu, diz o Delegado, ter ele treinamento de guerrilha, no Brasil ou exterior, o que deverá ser longamente pesquisado no inquérito.”

Ao entrar na prisão, afiancei aos que comigo foram presos que eu seria o último a sair dali, e só sairia depois que todos saíssem. No momento de nossa libertação, postei-me à porta e disse aos 13, “saiam todos, porque conforme prometi, seria o último a sair.” Após a saída de todos, fui colocado em liberdade.

Ao chegar a Cândido Mota, tive uma consagração pública: Prefeito, Vice, Vereadores, Juiz de Paz, Cartorários e Colegas foram me receber na entrada da cidade, com banda de música e a cidade inteira nas ruas, demonstrando sua alegria com minha liberdade.

Com tudo isto, porém, a prisão me deixou profundas marcas, sempre relembradas pelos inimigos de plantão, sempre de maneira impiedosa e maliciosa. Restame a consciência tranquila do dever cumprido, sem olhar o poder dos opositores entres os quais registro: Governador de São Paulo, Ministro da Agricultura, banqueiros, fazendeiros, caciques da indústria paulista, usineiros de cana, Deputados, Senadores, Prefeito, Vereadores, vários cidadãos poderosos, todos réus de mais de cem mil ações distribuídas nas várias comarcas onde atuei.

Foram momentos intensos que vivi e os viveria de novo.

Francisco de Assis Pereira é Advogado, Professor de Línguas Neolatinas, Teólogo, Pastor Evangélico e Contador. É casado há 56 anos, tendo 2 filhos e 2 filhas, 13 netos e 3 bisnetos

Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014



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