Flávio Flores da Cunha Bierrenbach
Rito de passagem
Terminei meu curso de Direito, no Largo de São Francisco, em dezembro de 1964. Entre o fim do curso e a formatura houve três meses de aflição e incerteza. Incurso no IPM (Inquérito Policial Militar) da USP, por supostas “atividades subversivas”, eu já havia passado um curto período como hóspede do Exército Nacional, no quartel do Parque D. Pedro II.
Naquela época, ainda não havia (pelo menos em São Paulo) nenhum relato de tortura ou violência física praticada contra presos (isso começou mais adiante, em 1967/1968, mas já é outra história). As ameaças, entretanto, eram corriqueiras. A mim, particularmente, o que mais assustava era a possibilidade de ser impedido de colar grau, o que provavelmente ocorreria se o IPM da USP fosse concluído antes da data prevista para a cerimônia de formatura.
Finalmente, em 19 de março de 1965 – dia de São José – lá estava eu de beca e tudo, no Teatro Municipal, para colar grau e receber o diploma. Na manhã seguinte, corri à Praça da Sé para inscrever-me na OAB (naquele tempo não havia o “Exame da Ordem”). Ao voltar para casa, encontrei recado do José Carlos Dias (meu colega de faculdade, formado um ano antes, e meu advogado no IPM da USP), convocando-me para uma reunião urgente. Urgência urgentíssima.
Lá fui eu, alvitrando as mais funestas
possibilidades. Ao menos já estava formado e inscrito na Ordem, com direito, no mínimo, a prisão especial…
José Carlos não perdeu tempo: “Ontem foi a sua formatura, quando é que vai se inscrever na Ordem? “Já fiz a inscrição, hoje de manhã” – respondo – “mas por que a pressa?”
José Carlos tirou algumas pastas da gaveta e disse: “Há mais de setenta presos políticos em São Paulo e, neste momento, só quatro advogados para defendêlos. Tome, aí estão os seus primeiros clientes”.
Ainda tentei protestar: “Mas acabei de me formar… não entendo nada desse assunto.”
“É muito fácil. Passe na Saraiva, compre um Código Penal Militar, um Código de Processo Penal Militar, leia os dois no próximo fim de semana e segunda-feira voltamos a conversar.”
Foi assim que comecei a advogar. Na semana seguinte já estava fazendo audiência na Justiça Militar. Daí para a frente foram alguns anos de muita luta, mas essa também já é outra história.
Flávio Flores da Cunha Bierrenbach é Advogado Criminalista, graduado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, com curso na Universidade Harvard, nos EUA. Procurador do Estado de São Paulo, por concurso público, desde 1970, ex-Vereador de São Paulo, ex-Deputado do Estado de São Paulo, ex-Deputado Federal, Ministro aposentado do Superior Tribunal Militar.
Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014
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