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Advogados

Fahid Tahan Sab

6 de dezembro de 2022

Advogados – mãos que descortinam a liberdade

Parte da história do Brasil que muita gente quer esquecer, o regime ditatorial implantado em 1964 seguiu a cartilha de quase todas as ditaduras: tentou disfarçar sua imagem autoritária, para efeito de propaganda interna e imagem externa.

Um dos disfarces, amplamente usado para encobrir o arbítrio, foi lançar mão da Justiça Militar para julgar adversários e desafetos políticos. Circunstâncias e tramas do destino levaram-me a participar desse cenário na condição de defensor. Foi-me fácil perceber a importância e a magnitude do trabalho do advogado. Mesmo dentro de condições absolutamente adversas, de uma justiça que o poder autoritário pretendia manipular, foi possível buscar frestas e atalhos que levassem alguns raios de luz às trevas do autoritarismo e da brutalidade.

Por meio desses instrumentos salvaram-se vidas e amenizaram-se sofrimentos. Vou aqui fazer um breve resumo de algumas ocorrências das quais participei, elencando prioritariamente as que envolviam meu irmão, que estava sendo perseguido, mais para ser eliminado do que preso. Isso me foi revelado por destacado agente da repressão, sem qualquer constrangimento, como se não estivéssemos falando de um ser humano.

Gravemente ferido, respirando por uma traqueostomia improvisada na abertura provocada pelo tiro em seu pescoço, tornava-se imperativo leválo para um hospital, na tentativa de salvar sua vida.

Apenas como familiar, seguramente não teria êxito nessa complicada e difícil empreitada. Mas como advogado, com ajuda de dois colegas de São Paulo e os brios humanos de um Procurador da Justiça Militar, felizmente foi possível. Isto custou aos advogados a detenção no DOI-CODI, como “prêmio” à grandeza do ato humano e, pelo que soube mais tarde, problemas profissionais para o referido Procurador.

Num segundo momento, com meu irmão já internado no Hospital Militar do Cambuci, em São Paulo, as visitas foram vedadas, aumentando o sofrimento da minha mãe e a minha angústia, enquanto advogado. Suspeitando de que se tratava de uma tentativa sutil e insidiosa de eliminação física, solicitei ao Juiz Auditor da 4ª Região Militar, em Juiz de Fora, Minas Gerais, onde ele respondia a outros processos, que tomasse o seu depoimento com urgência, pois duvidava das razões da sua incomunicabilidade. Fui atendido. Ao ser ouvido, meu irmão revelou ao juiz que estava preso a uma cama, cujas amarras foram desatadas pouco antes da chegada do magistrado e sendo alimentado apenas de líquidos, por meio de gastrostomia. Ele denunciou, ainda, que sua alimentação consistia de uma sopa rala e quente que, ao ser derramada no tubo, respingava em seu abdômen, deixando-o marcado por queimaduras. Não fosse a ação do advogado e a grandeza humana de um juiz, talvez houvessem consumado o propósito real, que era eliminá-lo.

Outro episódio marcante do qual participei e que comprova a importância da atuação do advogado na construção das democracias, foi o processo no qual defendi um acusado para quem se pedia a pena de morte, com base na Lei de Segurança Nacional, vigente à época. Esse processo corria na Auditoria 65 da 4ª Região Militar e as versões apresentadas pelo acusado contrariavam as que constavam dos autos. Eu e outro colega que também o defendia, fizemos discretamente uma investigação no local em que ocorrera tiroteio que vitimou um adolescente. Comprovamos que a versão do nosso defendido era correta, então pedimos ao Juiz Auditor que solicitasse o laudo médico citado e que inexplicavelmente não constava dos autos. Não o fizemos por escrito, para não despertar a atenção da repressão. O laudo que foi encaminhado em atendimento à solicitação do juiz havia sido rasurado, para confirmar a versão contida no inquérito e na denúncia.

Inverteram a trajetória da bala para configurar falsamente uma situação que incriminasse o nosso defendido como autor do disparo. A grosseira adulteração só foi revelada por nós, advogados, no dia do julgamento. Ela ensejou a absolvição do nosso defendido, quanto à pena de morte, com a prova material da adulteração do laudo. Destaco, nesse episódio, o semblante de alívio dos membros do Conselho de Sentença, composto por quatro Coronéis do Exército e um Juiz togado. Senti neles o conforto por não terem sido levados a cometer perversa injustiça de uma condenação desumana, com o fuzilamento ou a prisão perpétua de um inocente. Mais uma vez, destaco o papel do advogado de conseguir tal façanha, diante de um quadro que consagrava o arbítrio.

De certo os leitores se lembram das greves de fome feitas por presos políticos. A primeira delas não foi a mais famosa, estas foram muito noticiadas por acontecerem no eixo Rio-São Paulo. Mas a primeira aconteceu na penitenciária de Juiz de Fora e, mais uma vez, os advogados foram protagonistas de uma história de sucesso. Como condutores da esperança dos presos, postulamos a quebra da incomunicabilidade dos grevistas e conseguimos constranger a repressão por ordem da Justiça, que lhes permitiu o reencontro com seus familiares.

A missão de advogado me trouxe também fatos curiosos, não digo hilariantes, porque não havia nada hilariante àquela época. Mas vejam: as visitas de advogados e familiares aos presos políticos na penitenciária do Bairro de Linhares, em Juiz de Fora, eram antecedidas por autorização do Serviço de Justiça da 4ª Região Militar. Numa dessas ocasiões, ao preencher autorização para que eu visitasse alguns de meus defendidos, o funcionário o fez, por equívoco, com o nome do meu irmão, que estava preso do DOPS, em Belo Horizonte, para tratamento de urgência no Hospital das Clínicas, por problemas ainda decorrentes do tiro no pescoço. Ao depararem com o nome, comunicaram ao comando, que colocou o quartel em alerta. Sem uma palavra sequer, fui deixado em uma sala a tarde inteira, até que o Promotor encerrasse uma audiência, para discretamente me reconhecer e desmanchar aquela cena surreal. Pensaram, certamente, que meu irmão, disfarçado de advogado, iria promover ‘heroicamente’ a libertação dos presos de Linhares.

O constrangimento ficou estampado na fisionomia dos oficiais, pelo papel ridículo a que foram expostos, em razão da paranoia do seu comandante.

Há muito que se falar sobre aquela época. Situações que constrangem e emocionam. Propositadamente não citei nome de nenhum dos colegas advogados que participaram de episódios narrados aqui e de outros tantos. Não o fiz, menos pela preocupação de esquecer algum nome, mas principalmente porque todos nós, advogados que defendemos os perseguidos políticos, temos um só nome e uma só face. A nossa face é a do mestre Sobral Pinto, de cujos ensinamentos e exemplo fomos discípulos e seguidores. O nosso nome: Advogados da Liberdade.

Fahid Tahan Sab é Advogado, militou na defesa de presos políticos de 1969 a 1976, em Auditorias Militares de Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná, além do Superior Tribunal Militar

Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014



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