carregando...

Advogados

Elizabeth Diniz Martins Souto

7 de dezembro de 2022

Aconteceu

No ano de 1964, quando eu ingressava na Faculdade de Direito da UFMG, implantou-se neste país uma ditadura militar, que durou até 1985. Ante as resistências de democratas, o regime foi aos poucos endurecendose, culminando, em 1968, com a edição do Ato Institucional nº 05, que suspendeu todas as garantias individuais.

Muitas coisas ruins aconteceram naqueles anos de chumbo. Rasgaram a Constituição Federal, cassaram os direitos fundamentais do cidadão brasileiro, acabaram com o habeas-corpus.

Os brasileiros ficaram privados do seu direito de ir e vir, de expressar suas ideias sem censura prévia, de reunir-se, de acesso seguro ao judiciário, porque os juízes não tinham garantia de estabilidade, vitaliciedade e irremovibilidade, e até o direito de propriedade ficou condicionado, uma vez que os bens particulares podiam ser confiscados em nome da segurança nacional, de que os detentores do poder eram os árbitros supremos.

Criaram as arbitrárias Leis de Segurança Nacional, diante das quais o indivíduo não tinha nenhuma garantia.

Instituíram a pena de morte.

Criaram o conceito de subversão segundo o qual quem se opusesse ao regime era considerado subversivo e podia ser enquadrado na Lei de Segurança Nacional e, sem direito a habeas-corpus, ser preso e preso ficar até ser julgado e cumprir pena. Até prova em contrário, todos os nacionais e não nacionais aqui residentes eram considerados subversivos.

Com a ditadura implantou-se a subserviência, a omissão criminosa, o silêncio complacente, a adesão ao poder, sempre útil àqueles que dele queriam se servir e, porque não dizer, até mesmo a covardia, não só no meio profissional dos advogados, mas também nos tribunais.

Recentemente formada, em janeiro de 1969, comecei a enfrentar os tribunais militares na defesa dos presos políticos, na maioria estudantes. Os poucos advogados que tiveram a coragem e o senso do dever profissional de enfrentar os quartéis e os tribunais militares eram considerados inimigos do regime, subversivos e comunistas, e vivenciaram situações constrangedoras.

Às vezes penso que este triste período, que durou longos vinte anos, deva ser esquecido. Mas logo vem a revolta pelo que vi acontecer e sinto que eles não podem ser olvidados, mas sempre lembrados para que não se repitam. A história precisa registrar estes anos e, para tanto, não pode ser considerada como um escrito lançado numa lousa, onde um mataborrão pode apagar tudo que ali se fez constar.

Os presos políticos eram submetidos a processos regidos pelas Leis de Segurança Nacional, cada uma mais arbitrária do que a outra, torturados até confessar o que não fizeram e o que não sabiam.

Os advogados que os defendiam eram sempre ameaçados e intimidados, mas não recuavam.

Como advogada de presos políticos, passei muitas vezes por momentos difíceis no exercício de minha profissão.

Lembro-me do julgamento dos presos de Ibiúna- SP. Eram estudantes que foram para o congresso da UNE, que seria realizado naquela cidade, e que, pelo simples fato de terem tentado participar do evento, foram denunciados ao Comando Militar, presos e processados.

A tentativa de realização do congresso originou vários processos, divididos em grupos. Os processos foram julgados pela Auditoria Militar de São Paulo. Eu fiquei com a defesa de vários estudantes, que compunham o grupo de Minas Gerais.

Iniciada a audiência, lá estava eu, e quando assumi a tribuna para falar, uma coisa encostou nas minhas costas. Me virei instantaneamente e vi um soldado com a metralhadora em punho, impedindo-me de fazer qualquer movimento. Imediatamente, me dirigi ao Juiz Auditor e lhe disse que, se o soldado não se afastasse, eu deixaria a tribuna, o que seria acompanhado pelos colegas advogados ali presentes.

Em face daquela situação constrangedora, o Juiz Auditor determinou o afastamento do soldado, mas a sala continuou repleta de militares armados, que ali ficaram até o fim da audiência, numa atitude ameaçadora. Não nos intimidamos e a audiência se realizou sem outros incidentes.

Constantemente ocorriam fatos desagradáveis na tentativa de intimidar aqueles que ousavam enfrentar a ditadura militar.

Em Belo Horizonte, o terror dos presos políticos era o DOPS. Coitados dos presos que para lá iam! Lembro-me de vários fatos horríveis que me obrigavam a enfrentar constantemente os terríveis delegados que o dirigiam. Torturavam os presos políticos, jovens que não ofereciam qualquer perigo à ditadura e que nada tinham feito, senão manifestar, de forma pacífica, suas opiniões contrárias ao regime militar.

Dentre tantos fatos, lembro-me de um que me deixou arrasada. Fora preso um jovem estudante que acabara de completar dezoito anos, por estar participando de uma manifestação estudantil, sem maiores consequências para quem quer que seja. Preso, foi levado para o DOPS. Logo fui procurada por sua mãe para fazer sua defesa. Imediatamente fui a este departamento e entrei em contato com o delegado, que me deixou falar com o preso.

Era um rapaz franzino, muito magro, que mais parecia uma criança. Estava aterrorizado por estar naquele lugar. Mesmo sem convicção de que nada iria lhe acontecer, procurei acalmá-lo.

Ao deixar o recinto, estranhamente, o delegado disse-me que se os familiares quisessem levar as refeições para o rapaz, poderiam fazê-lo. Comuniquei este fato a sua mãe, que se prontificou a levar o almoço e o jantar para ele. No dia seguinte, ela deixou no DOPS a marmita com o almoço e disse ao atendente que voltaria à tarde para buscar o vasilhame e deixar o jantar. Assim o fez. Ao sair, após a entrega do jantar e receber a marmita que tinha levado com o almoço, a sentiu um pouco pesada, abriu-a e, desesperada, verificou que dentro dela estava a camisa do filho, com a qual tinha sido preso, toda ensanguentada. Correu para o meu escritório e, em prantos, mostrou-me a peça manchada com o sangue extraído nas torturas feitas ao jovem. Ao ver aquela mãe em prantos, me senti totalmente impotente. A quem reclamar? Abracei-a e choramos juntas.

No dia seguinte, fui ao DOPS e, com veemência, registrei a ocorrência, que parece ter surtido algum efeito, pois a mãe não recebeu mais roupas ensanguentadas.

A cada dia ocorria um fato novo referente a torturas dos presos políticos e a imprensa nada podia publicar.

Dentre todas as situações constrangedoras que ocorreram com os advogados que atuavam na defesa dos presos políticos, participei de uma que aconteceu numa audiência realizada na Auditoria de Juiz de Fora, que pode ser taxada de pitoresca e entrou para os anais dos absurdos que aconteceram durante os julgamentos dos processos dos presos políticos.

Na Justiça Militar, os processos são divididos entre os Conselhos Permanentes de Justiça, que de permanentes nada têm, pois seus membros são substituídos de três em três meses. A competência é definida levando-se em consideração o lugar da infração. O Conselho era formado de quatro militares e um juiz togado, que era o Auditor. O militar de maior patente era o Presidente do Conselho. Os Conselhos eram do Exército, da Marinha e da Aeronáutica.

Marcada uma audiência naquela auditoria, para o julgamento de presos políticos que tinham participado de um fato ocorrido em área da Aeronáutica, em Minas Gerais, lá compareceram os advogados dos acusados e, dentre eles, eu.

Tão logo instalado o Conselho, verificamos que ele era do Exército e não da Aeronáutica. Os advogados presentes escolheram o saudoso, sábio e intrépido colega, Dr. Geraldo Magela, para arguir a incompetência do Conselho do Exército para apreciar aquele caso.

Ele assumiu a tribuna e pediu uma questão de ordem. Ao começar a falar, disse que os advogados arguiam a incompetência daquele Conselho do Exército porque… não teve condições de completar a frase, pois foi, imediatamente, interrompido pelo Presidente do Conselho, sempre um militar que, com o dedo em riste e muito nervoso, disselhe: “o senhor está muito enganado e está nos ofendendo, não somos incompetentes, somos cultos e temos condições de julgar este processo, eu sou formado…” e não terminou a frase, pois foi interrompido pelo Juiz Auditor, que lhe informou que a incompetência arguida não era contra a pessoa deles, mas de natureza processual, em razão do lugar da ocorrência do fato, pois este acontecera nas dependências da Aeronáutica e não do Exército e os advogados estavam corretos. O Conselho competente para o julgamento daquele caso teria que ser o da Aeronáutica.

A interferência do Presidente do Conselho nos deixou assustados com tamanha incompetência, o que veio confirmar que, na verdade, a incompetência não era apenas relativa, de natureza processual, mas se relacionava ao universo jurídico. Por fazerem parte de um Conselho Permanente de Justiça, tinham a obrigação de ter maiores conhecimentos jurídicos.

Houve um grande mal estar entre todos, mas o militar Presidente do Conselho, com a sua peculiar prepotência, não se desculpou com os advogados. A audiência foi suspensa e noutra data instalou-se o Conselho da Aeronáutica, para o julgamento do feito.

À medida em que a ditadura enfraquecia, com o distanciamento popular, a violência aumentava e barbaridades eram cometidas, tudo em nome da segurança nacional que, na verdade, era uma insegurança nacional.

Isto, leitor, eu vi com meus próprios olhos e vivi em minha alma e posso dar o testemunho de que aconteceu, como aconteceram muitos outros incidentes desagradáveis, cujo relato não cabe nas ligeiras linhas que me foram propostas, mas que espero se tornem públicos para que nunca mais venham macular, tornar pequeno e indigno qualquer ambiente que se reserve à feitura da justiça.

Elizabeth Diniz Martins Souto é Advogada em Brasília, formada pela Faculdade de Direito da UFMG, em 1968. A partir de 1969, atuou na advocacia dos presos políticos, em vários estados brasileiros e junto ao STM, até o advento da anistia. Após esta, passou a militar em favor dos presos políticos que tinham deixado o País, na tentativa de trazê-los de volta.

Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014



Conheça mais advogados

Newsletter.

Assine e receba os conteúdos no seu e-mail.