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Advogados

Élio Narézi

7 de dezembro de 2022

Reminiscências do regime de exceção

Jeanne D’Arc Cruz Lima Narezi *

Fui surpreendida por uma ligação, na qual a pessoa do outro lado da linha procurava pelo meu colega de escritório e marido, falecido há quase doze anos. A interlocutora esclareceu então que, tendo em vista a sua participação ativa nos processos políticos instaurados pelo regime de exceção, e também pela sua luta em defesa dos atingidos naquele negro período da nossa história, desejava um depoimento dele sobre estes fatos, com vistas à inclusão em livro sobre o assunto. Ante a impossibilidade da concretização do objetivo primeiro, delegou-me a incumbência, ao tomar conhecimento de que sou advogada e que, à época, também integrava o escritório.

Assim, as reminiscências que deveriam ser dele, ÉLIO NARÉZI, passaram à minha responsabilidade e, para tanto, vou tentar rebuscar na memória as passagens que me lembro ter vivenciado ao seu lado, como aprendiz do Direito e eterna seguidora do seu exemplo, seja como advogado, seja como ser humano, eis que jamais haverá de existir neste mundo alguém que reúna todas as qualidades morais e intelectuais com que foi abençoado.

Muito se fala, nos dias atuais, sobre a ditadura militar que vigorou no País durante algumas décadas. Hoje já é possível, inclusive, exigir acesso aos documentos secretos do período, mas, naquela época, ai de quem questionasse os atos governamentais ou se atrevesse a solicitar uma simples certidão. Os temerários, que se atreviam a questionar os atos injustos ou a falta de liberdade, eram imediatamente inseridos na “lista negra” e, na primeira oportunidade, quase sempre fabricada pelos detentores do poder, se viam envolvidos nos IPMs e passavam a responder a estes arbitrários simulacros de procedimento legal; isto, quando não eram levados no meio da noite para os porões dos torturadores onde eram “suicidados” ou, simplesmente, desapareciam sem deixar o menor vestígio.

Lembro-me que nos idos de 72 ou 73, nos meus tempos de estagiária de Direito, altas horas da noite, recebi uma incumbência do meu então mentor, o advogado Élio Narézi, de me dirigir à sede do escritório e, de lá, (não de qualquer outro telefone, especialmente o da minha casa) entrar em contato com o nosso correspondente em Brasília, Dr. Luiz Carlos Bettiol, para avisá-lo de que um colega, militante na Comarca de Apucarana, Dr. Henrique Ornellas, havia sido preso, conforme conseguiu apurar o Dr. Valmor Giavarina, Presidente da Subseção, após incessantes buscas desde o seu sumiço, e que o mesmo estaria sendo levado à Capital Federal em avião fretado, por ingerência de um Capitão, cujo nome até me recordo, mas me permito omití-lo nessas reminiscências porque, pelos desmandos cometidos naquela região do norte do Paraná, sequer merece ser mencionado.

O pedido formulado ao Dr. Bettiol era o de que acionasse o Conselho Federal da OAB, para tentar liberar o advogado sequestrado e preservar a sua integridade física, de vez que, fontes seguras afirmavam que ele corria inclusive risco de vida, por ter enfrentado destemidamente o referido Capitão. Contudo, apesar dos esforços conjuntos encetados, soube-se, algumas horas depois, que o desditoso colega teria se “suicidado” em sua cela. A ditadura foi mais rápida.

Melhor sorte tiveram dois estudantes de Direito da Universidade Federal do Paraná, da cúpula diretiva do glorioso CENTRO ACADÊMICO HUGO SIMAS, de tantas lutas, os quais, após uma primeira detenção por atividades “subversivas”, na verdade uma simples reunião de universitários na famosa “Chácara do Alemão”, ante as renitentes perseguições que se seguiram à este episódio, se viram obrigados a abandonar o curso e a fugir para o Chile, quiçá por ser mais próximo e menos oneroso, já que não possuíam recursos para se refugiar na Europa ou na América do Norte.

Como o país em questão também não era exatamente o melhor exemplo de democracia, não fosse o empenho da OAB do Paraná, na pessoa do seu então Presidente ÉLIO NARÉZI, auxiliado pelo Conselheiro JOSÉ LAMARTINE CORREA DE OLIVEIRA, mais os valiosíssimos préstimos do PROFESSOR HELENO CLAUDIO FRAGOSO para retirá-los de lá, os mesmos teriam sido sumariamente executados.

Ainda me lembro do telefonema feito ao Professor Heleno e do nervosismo do Professor Lamartine, com aquele seu jeitão, enfatizando a urgência, de vez que os seus dois pupilos estavam às vésperas de um fuzilamento. Desconheço o motivo que os levou às prisões chilenas, bem como as providências tomadas para a liberação, mas felizmente tudo correu bem, e os dois retornaram ao Brasil sãos e salvos. Um deles nunca mais vi, mas o outro sei que, mais tarde, concluiu o curso de Direito e até foi designado para ocupar um importante cargo no governo estadual.

Outra lembrança que guardo e não é das melhores, diga-se de passagem, refere-se ao famigerado Processo nº 745/75, instaurado perante a Auditoria da 5a CJM contra FERNANDO PEREIRA CHRISTINO E OUTROS, todos incursos nas sanções do art. 43, do Decreto-Lei nº 898, de 29 de setembro de 1.969, no entender do Procurador da Justiça Militar José Manes Leitão, autor da denúncia de 49 páginas.

Um processo volumoso, pois os “outros” eram, nada menos que 64 réus, entre médicos, dentistas, advogados, empresários, agricultores, vendedores, enfim, pessoas de todos os segmentos sociais. Destas, apenas duas eram mulheres.

Nessa ocasião, já formada, tive a oportunidade de participar, juntamente com os demais colegas da bancada de defesa, de pelo menos duas sessões do Conselho Especial de Justiça para o Exército da 5a CJM, presidido pelo então Juiz Auditor Dr. Darcy Ricetti. Os demais componentes deste colegiado eram militares, dos quais me recordo somente de dois: do Coronel Santana, simpático, atento e educado, sempre demonstrando interesse nas intervenções feitas pelos advogados, e de um tenente, alto, claro, magro, carrancudo, impenetrável e inatingível, sistematicamente passando a irritante impressão de que nos olhava, mas não nos via.

Foi com este que, do alto das minhas tamancas de recém formada, afinal eu era advogada e ele não, tive um bate-boca jurídico sobre questão relativa aos nossos seis ou sete clientes, e da qual já nem me recordo bem, parecendo-me que tinha algo a ver com o deferimento da prisão especial a que faziam jus, incidente que arrepiou alguns colegas presentes levando-os, assim que chegou o advogado Élio Narézi, vindo de um julgamento inadiável perante o Tribunal de Justiça, a comunicar-lhe incontinente o acontecido.

Embora, àquela altura, o Doutor Darcy – único juiz togado daquele Conselho Especial de Justiça e de cuja amizade, nascida dos contatos profissionais, me orgulho de ter privado, pois sempre tinha uma palavra de simpatia e paciência com os iniciantes – já houvesse colocado “panos quentes” na situação e prosseguido com a sessão, esta foi a última de que participei.

Por questões de segurança, convencionou-se que, melhor seria, fosse a defesa dos réus exercida exclusivamente pela ala masculina, pois, se para eles, os homens, esse munus já se constituía num risco, esboçando um futuro incerto, imagine para as mulheres…

Assim, as duas únicas representantes do contingente feminino, eu e a Doutora Regina Helena Affonso, hoje Desembargadora do Tribunal de Justiça do Paraná, não mais nos fizemos presentes às sessões daquele Conselho.

Penso que, tanto eu quanto ela, de certa forma, nos sentimos aliviadas, não por medo do que pudesse vir a ocorrer com quem patrocinasse defesas de presos políticos, mas porque não há nada mais frustrante do que discutir questões de Direito com quem as desconhece.

Acredito que este tenha sido o último processo político perante a Auditoria Militar da 5a CJM e, tendo em vista o retorno paulatino do país à normalidade democrática, presumo que o recurso necessário interposto das absolvições decretadas, sequer tenha sido objeto de acatamento pelo STM. Pelo que sei, os autos se encontram arquivados em Brasília, porém ignoro o seu desfecho naquela Corte.

Mas, tratando-se de reminiscências, não poderia deixar de mencionar aqui os valorosos e destemidos advogados que promoveram a defesa dos vários réus, e colocaram em risco a sua própria liberdade, quais sejam, além de ÉLIO NARÉZI já mencionado acima, os colegas René Ariel Dotti, Antonio Acir Breda, Otto Luiz Sponholz, Paulino Andreoli, Oldemar Teixeira Soares, Albarino de Mattos Guedes, Joel Gama Lobo D’ Eça, Reginaldo Condessa Beltrami, Luiz Carlos Borba, Fernando Ramos David João, Layr Ferreira, Aurelino Mäder Gonçalves (pai do nosso ex- Presidente Alfredo Assis Gonçalves Netto – OAB/PR), Edilson M. Sperandio e Ataliba Alvarenga (genitor da ilustre Procuradora do MP/PR Celita Alvarenga Bertotti), dentre muitos, escusando-me de antemão com os outros tantos, que a memória não me auxiliou a citar nominalmente. Digna de registro, também, a participação do Dr. Augusto Sussekind de Moraes Rego, advogado no Rio de Janeiro, membro do Conselho Federal e decano perante a Justiça Castrense, que desde as primeiras prisões neste processo moveu céus e terras em defesa dos acusados, obtendo junto ao mesmo Conselho o envio de um Representante para aferir as condições prisionais daqueles, recaindo a escolha na pessoa de ninguém menos que o insuperável jurista FRANCISCO DE ASSIS SERRANO NEVES.

Também não merece ser esquecida a pessoa que organizou e manteve sempre em ordem um processo com tantos volumes, réus e advogados: o exemplar Escrivão Telmo Boeira, insuperável na sua função, o qual tive o prazer de conhecer ainda na antiga sede da Auditoria Militar, instalada no Quartel da Praça Rui Barbosa.

No impecável Cartório do Thelmo nada se perdia, tudo se encontrava, e as certidões solicitadas eram fornecidas no ato, sempre com a maior cortesia e aquele largo sorriso sob os bigodões.

Estas, enfim, as imagens que me acorreram à mente, quando efetuei um mergulho de 38 anos de profundidade… Sei que o saudoso Élio teria ido bem além, pois, muito antes do meu ingresso na Faculdade de Direito da UFPR, já estava ele no campo de batalha, travando os seus embates contra as arbitrariedades perpetradas pelos representantes da ditadura.

Todavia, para que a prematura partida deste homem admirável não deixasse uma lacuna quanto ao seu desejável depoimento pessoal, acredito que me desincumbi a contento da tarefa que me foi confiada, com esta narrativa despretensiosa e sincera, esperando, do fundo do coração, que a atual geração e todas as que se seguirem, jamais tenham que passar pelos desmandos e iniquidades que nós, seus antecessores, fomos obrigados a presenciar.

*Jeanne D’Arc Cruz Lima Narézi é Advogada Criminalista no Paraná e viúva de Élio Narézi, falecido em 2001.

Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014



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