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Advogados

Egídio Sales Filho

12 de dezembro de 2022

Fomos torturados no Ministério do Exército

Desde o Ato Institucional n° 2, de 27 de outubro de 1965, a Justiça Militar passou a processar e julgar civis por crimes contra a segurança nacional, então previstos na Lei n° 1802, de 5 de janeiro de 1953, que definia os crimes contra o Estado e a Ordem Política e Social. Antes disso, a Justiça Militar julgava apenas os crimes definidos em lei como militares, praticados por militares e civis. Não por outra razão, as Auditorias Militares que eram, e são, a primeira instância da Justiça Castrense, tinham seus Conselhos de Sentença formados por quatro oficiais, ou do Exército ou da Marinha ou da Aeronáutica, em revezamento, e mais um Juiz Auditor. Só podiam assim resultar, nas Auditorias, pela formação militar e não jurídica da quase totalidade de seus membros, julgamentos tendenciosos e direcionados à condenação daqueles opositores do Regime Militar, que não rezavam no credo da Segurança Nacional.

A doutrina da Segurança Nacional acabou produzindo raízes institucionais e motivando leis cada vez mais rigorosas e contrárias aos princípios do Direito. Coincidindo com o caráter cada vez mais ditatorial do Regime Militar, as Leis de Segurança Nacional foram se tornando a via pela qual se exercia a repressão política mais ostensiva. A outra via foi a tortura. Os presos por motivação política eram submetidos a longos períodos de incomunicabilidade, de violência física, nos DOI-CODI, ou outros organismos de repressão das forças armadas – CENIMAR – CISA – CIE, antes de serem apresentados às Auditorias para julgamento. Muitos presos políticos denunciaram nos seus interrogatórios terem sido vítimas de torturas, sem que esse fato fosse capaz de afastar severas condenações, baseadas em provas imprestáveis juridicamente.

Em agosto de 1978, o jornal “Resistência”, órgão de divulgação da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos, publicou matéria cujo título foi “Fomos Torturados no Ministério do Exército” – “Período Médici foi o mais sanguinário”, onde os ex-presos políticos, Paulo Fonteles de Lima e sua mulher Hecilda Veiga Fonteles de Lima, descreviam pormenorizadamente as torturas das quais haviam sido vítimas quando estiveram presos em Brasília e Rio de Janeiro, nas dependências do PIC – Pelotão de Investigações Criminais do Exército.

Estava em vigor a LSN n° 6620/78, que havia, no geral, abrandado penas e suprimido a pena de morte e a prisão perpétua, antes previstas nos Decretos Leis n° 314/67 e 898/69, que eram as Leis de Segurança anteriores. Os dois ex-presos políticos e mais o editor do jornal, Luiz Maklouf Carvalho, foram processados com a base, naquela altura, nova, da Lei de Segurança Nacional, sendo apreendidos quase todos os exemplares do jornal pela Polícia Federal. A acusação era a de que os três haviam infringido o art. 14, que dizia ser crime “Divulgar por qualquer meio de comunicação social, notícia falsa, tendenciosa ou fato verdadeiro truncado ou deturpado, de modo a indispor o povo com as autoridades constituídas.”

O fato divulgado pelo jornal “Resistência”, isto é, a tortura que os dois ex-presos políticos haviam sofrido, teve grande repercussão. À época da tortura, Hecilda estava grávida, o que levou os autores do livro “Brasil Nunca Mais”, a relacionar esse caso como um daqueles em que se demonstrava que as forças repressivas torturavam indistintamente homens, mulheres, inclusive gestantes (v. pág. 49, BNM, 6° ed., 1985).

Outro fato fez com que o caso ganhasse dimensão inesperada: o título da matéria, “Fomos Torturados no Ministério do Exército”. Em 1978, ainda eram tênues os sinais de que os militares estavam recuando de suas pretensões ditatoriais. As repercussões negativas, no plano internacional, das denúncias de torturas e assassinatos de presos políticos no Brasil, levava a comunidade internacional a pressionar os militares pelo restabelecimento das liberdades democráticas no País. Desse modo, associar o nome do Exército à tortura, parecia ser muita ousadia.

Tanto o assunto era sensível que os próprios militares se deram conta da necessidade de afastar a tortura das dependências militares, daí porque criaram lugares onde a violência não corresse riscos de ser testemunhada, inclusive por militares contrários a essa prática.

Assim, o processo do “Resistência” gerou muitos protestos vindos de todos os lugares do Brasil, especialmente dos comitês de anistia, dos sindicatos de jornalistas e entidades de direitos humanos, inclusive no exterior.

Ao final, o Conselho de Sentença da Marinha da 8a Auditoria Militar, acolheu a tese da defesa onde atuaram os advogados João Marques, Deusdedith Brasil, Carlos Sampaio, Luis Otávio Bandeira e Egídio Sales Filho, no sentido de que a narrativa das torturas e sua divulgação no “Resistência” não tiveram o condão de atingir a segurança nacional. Esse entendimento foi mantido pelo Superior Tribunal Militar e o caso foi remetido para a Justiça Comum, onde foi arquivado.

Egídio Sales Filho é Advogado no Pará.

Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014



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