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Advogados

Dyrce Drach

13 de dezembro de 2022

Uma advogada solidária

Muito já se falou das experiências dos presos políticos e seus advogados, que se jogavam de corpo e alma, mesmo sabendo que pouco iriam conseguir, mas que estava em jogo a vida dos presos.

Conheci pessoas maravilhosas, de coragem e caráter raramente vistos; e eram muitos. O escritório onde eu trabalhava, LINO MACHADO, assumiu muitas causas, a maioria gratuitamente, onde eu e minha colega Terezinha Gentili assumimos o desenrolar dos processos e o Lino ia fazer a defesa final. Eram todos grandes advogados e eu aprendi muito com eles, por exemplo, Heleno Fragoso, Técio Lins e Silva, Nilo Batista, que eram insubstituíveis no que faziam.

Voltando aos presos, sem repassar à tortura e quase morte, eu teria episódios para contar.

O primeiro, em São Paulo, onde eu fui atrás de uma cliente, Estrela Bohadana, que me causava muita preocupação, porque estava sendo presa pela segunda vez. Fizeram-me esperar horas. Enquanto isso, eu tentei puxar conversa com o funcionário que estava na sala, aparentemente tomando conta de mim. Na parede, havia um cartaz dos procurados e eu, me fazendo de ingênua – coisa que tenho certeza não colou – disse:

“Esse quadro está superado. Há aí muita gente que já está presa e nós mesmos estamos procurando alguns. Estou procurando a Ana Maria Nancinovick.”

E ele me respondeu com toda a tranquilidade:

“Com essa a senhora não precisa se preocupar, porque quando a gente encontrar, mata.”

E mataram! Acredito que pesava nessa decisão, além da militância dela, o fato dela ter sido casada com um oficial da ativa e nora de um militar de alta patente. Tanto que o nome dela completo – que nunca aparecia – era Ana Maria Nancinovick Correa.

Outro preso que era do escritório, de maior coragem e melhor caráter que eu já conheci na vida, ia vê-lo com frequência, porque temia pela vida dele. Ficava horas na Vila Militar, até conseguir vê-lo. Uma vez, o oficial S2 veio falar comigo: “Doutora, leva esse preso daqui. Eu não consigo gostar dele.”

Eu pesquisava outros quartéis, onde a pressão era menor. Movia céus e terra para removê-lo. Quando eu conseguia, o quartel que era melhor ficava pior.

Jose Roberto – era o nome do preso – nunca se queixou. Só perguntava pelos companheiros. Ele não pedia nada; exigia seus direitos de preso político (parece piada). Uma vez, estando com uma alergia, exigiu um médico. De tanto exigir, um dia, o sargento trouxe um oficial que portava uma metralhadora. Este entrou na cela e enfiou a metralhadora na barriga de Jose Roberto, que pegou o cano da mesma e o mandou enfiar “naquele” lugar. E disse:

“Se eu tivesse medo de metralhadora não estaria aqui.”

Diga-se de passagem que ele nunca me relatou tal fato. Só tomei conhecimento porque o preso da cela que ficava em frente à dele me contou.

Jose Roberto tinha 12 processos, inclusive dois sequestros. Jose Roberto saiu com a anistia, se formou e estava advogando em Belo Horizonte, quando teve um infarto fulminante. A morte dele, para mim, foi uma dor imensa, pois ele dizia que era meu preso preferido. E era mesmo.

Ele escreveu um livro que não chegou a ver publicado. O título é “Ousar, Lutar – memórias da guerrilha que vivi”.

Espero que nunca mais os advogados tenham que passar pelo que nós passamos. Transcrevo um trecho desse livro, que faz menção a mim:

“Dyrce, uma advogada solidária”

Preso no Becondive recebia a visita de uma advogada do escritório Lino Machado Filho, advogado de vários presos, inclusive meu, na época. Era Dyrce Drach, que se tornou minha grande amiga. Uma pessoa que fazia muito mais do que um preso podia exigir de qualquer advogado. No tempo que estive em Bangu, perdia-se um dia inteiro para falar com o preso. E ela nunca faltou, nunca deixou de atender a um pedido meu. Brincava, dizendo que eu era o preso preferido dela.

Mas, voltando ao Becondive, eu ainda estava sob a guarda do Capitão Moreira e vi que ele era mesmo um sujeito que agia como falava. Ele claramente falou para a Dra. Dyrce:

“Isso aqui não é dependência apropriada para manter um ser humano. Se você denunciar as condições carcerárias, eu informo à Auditoria que o local é mesmo inadequado.”

Eu percebia que esse capitão se sentia extremamente incomodado por ter que cumprir o papel de carcereiro de preso político.

Dyrce Drach é Advogada Criminalista, Militante dos Direitos Humanos, recebeu a Medalha Chico Mendes e a Medalha Sobral Pinto (pela OAB).

Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014



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