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Advogados

Belisário dos Santos Jr.

6 de dezembro de 2022

O advogado, o bêbado e a equilibrista*

A RESISTÊNCIA

“Caía a tarde feito um viaduto…”

No Brasil, a partir de 1964, houve a substituição pura e simples da ordem jurídica existente por outra, imposta, de tom preponderantemente militar. Mantinham-se as aparências das instituições. E passamos a ver a convivência do país formal com o país real (algum marciano, chegando de fora, não acreditaria: Será que bebi?). Brasileiros foram mortos, sofreram no exílio, ficaram e resistiram. Houve os que foram heróis. Houve gente brava. Houve gente coerente. Houve gente normal indignada.

“A lua, tal qual a dona do bordel, pedia a cada estrela fria um brilho de aluguel…”

A seguir, com a Carta Constitucional de 1967, houve tentativa de institucionalizar o regime. A posse do triunvirato militar e o AI-5, em 1968, implicaram o recrudescimento da repressão política, o uso da tortura em larga escala, o desaparecimento forçado e o assassinato de centenas de militantes políticos. Ter militância política dentro do país e permanecer em liberdade era a demonstração da arte do equilíbrio, senão fator de pura sorte.

“Uma dor assim pungente não há de ser inutilmente…”

Nessa fase que terminou nos anos 80, com a posse dos primeiros governadores eleitos e com a primeira eleição direta para presidente, não foi exclusiva dos advogados a luta pela defesa dos direitos humanos no Brasil, mas foi a luta deles, ao lado dos jornalistas, dos parlamentares e dos estudantes, que mais sensibilizou a sociedade e mais incomodou a ditadura militar.

O PAPEL DO ADVOGADO

“Um bêbado trajando luto me lembrou Carlito…”

Muitos advogados foram presos por militância partidária, mas foi a defesa técnica e política exercida nas tribunas das Auditorias Militares que galvanizou a opinião pública.

O advogado foi o escolhido para denunciar a tortura do cliente pela polícia política. A perseguição aos parentes, a tortura, as revistas vexaminosas, o largo tempo de encarceramento, tudo militava contra os presos, dividindo famílias. O advogado era a família dos presos políticos.

Denúncias contra a atuação do Esquadrão da Morte, no Presídio Tiradentes, foram feitas pela voz dos advogados. E seguiu-se a prisão de oito advogados paulistas, em vez do criminoso denunciado. Seus escritórios foram invadidos.

“Dança na corda bamba de sombrinha…”

Colocar na emergência de um hospital de São Paulo um perseguido político baleado – figura de cartaz (aquela ignomínia que reproduzia a cara de patriotas e a expressão “procura-se”) –, a três advogados custou a prisão, a um digno procurador militar a carreira, mas valeu a vida, e isso ainda emociona, àquele mineiro calado e simpático, que a polícia política queria matar.

“O bêbado com chapéu-coco fazia irreverências mil…”

Como saíram dos presídios políticos as denúncias escritas e assinadas contra a tortura, as mortes e os desaparecimentos? Pelas mãos de algum advogado, certamente.

Entre os que nacionalmente viabilizaram campanhas contra a tortura, a favor da anistia, contra a lei de segurança nacional, estavam os nomes de valorosos advogados. Junto com um advogado, hoje Ministro, vivi e ainda me recordo vivamente do gesto de afastar baionetas para entrar no presídio, onde clientes, presos políticos, faziam greve indispensável ante o indefectível interrogatório pelo DOI-CODI, que se seguia a todo o regresso de exilados políticos.

O que saía nos jornais a respeito da violação dos direitos humanos vinha entre aspas e, seguramente, era atribuído a algum combativo advogado. O advogado, operário da palavra, era, muitas vezes, o protagonista de um filme mudo, entremeado de emoção, angústia e, às vezes, alegria.

A cidadania brasileira tem um grande débito com a Advocacia e, a partir de um determinado momento, com a Ordem dos Advogados do Brasil.

A LUTA PELA ANISTIA E PELA DEMOCRACIA

“A esperança equilibrista…”

O dia nos tribunais militares. A noite nos teatros, contra a lei de segurança, pela anistia. A vida era assim.

A anistia assim construída não foi concebida apenas como “esquecimento” das condutas políticas cometidas contra a lei penal durante o período de chumbo. A anistia foi pensada, e só teria sentido assim, como forma de restabelecer a igualdade em relação àqueles que usaram do direito de insurgência contra a opressão, no caso, a ordem autoritária constituída e, assim procedendo, foram processados, presos, afastados ou demitidos de seu trabalho, cassados em seus mandatos parlamentares. Por isso, não havia e não há sentido em se falar de anistia para os crimes comuns cometidos por agentes do Estado. Estes não cometeram crimes políticos…

“Meu Brasil que sonha com a volta do irmão Henfil…”

A luta pela anistia foi a luta pelo retorno do exílio, pela saída da prisão de brasileiros, mas foi principalmente a forma da cidadania brasileira gritar o seu sonho por um Estado de Direito, por uma nova sociedade. Que vem vindo, vamos reconhecer os avanços. Há o que comemorar. É uma obrigação pensar assim, em homenagem a tantos companheiros que lutaram com tanta grandeza. Mas, saibamos identificar os nós, as muitas resistências. A democracia é um processo. É bom saber disso, para não desanimar. A luta segue. A indignação ante a injustiça não pode ser guardada no baú. A esperança está em saber que “o show tem que continuar”.

*Música incidente de João Bosco e Aldir Blanc, compositores da anistia, e que ainda circula pelo éter na voz emocionada da brava Elis Regina.

Belisário dos Santos Júnior é Advogado, Membro e Vice-Presidente da Comissão da Verdade da OAB/SP, foi defensor de presos e perseguidos políticos, durante o regime militar, ex-Secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo.

Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014



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